Raça, classe e fascismo no Brasil – Parte I

UMA Senhora Brasileira em seu Lar. 1823, Jean-Baptiste Debret. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

Por: Gustavo Zullo

De início, é importante destacar que esta é uma sequência de alguns ensaios que apontam para os eixos de um projeto de pesquisa que articula raça, classe e fascismo. Nesta primeira parte, apresento alguns determinantes sociais, socioeconômicos e psicossociais importantes para entender a estrutura da segregação social no Brasil, do que destaco a formação do trabalho informal e suas relações raciais. No próximo artigo, me detenho no período mais recente, onde articulo a estrutura social apresentada aqui a alguns aspectos da economia contemporânea nacional e internacional. Já o terceiro texto, embora tenha uma maior autonomia relativa com relação aos dois primeiros, ele se projeta a partir da estrutura socioeconômica brasileira apresentada nos dois primeiros textos para estabelecer alguns nexos importantes do fascismo brasileiro contemporâneo.

O padrão de exploração do trabalho no Brasil se consolidou como uma adaptação das formas de proscrever e marginalizar o negro forjadas na colonização e adaptadas ao regime de classes sociais (Fernandes, 1965, vol I). A extrema intolerância ao conflito, típico da sociedade moderna que conviveu por mais tempo com a escravidão, desaguou em um padrão de exploração do trabalho assalariado que não generalizou o trabalho como elemento de classificação social. O trabalhador de baixa escolaridade e que não possuía maior especialização foi obrigado a buscar estratégias de sobrevivência, o que hoje é identificado à informalidade e ao emprego informal (Fernandes, 1968; Portugal Júnior, 2012). Ao contrário das economias capitalistas desenvolvidas, essa sempre foi a norma da economia brasileira, acostumada a conviver e articular estas duas dimensões da existência social, o que muitas vezes foi confundido com dualidade.

Essas formas de atrofiar o elemento do trabalho no Brasil não apenas se baseou na exploração do trabalho escravo, que consolidou um nível tradicional de vida muito baixo, como preservou o negro na parte de baixo da pirâmide social. Em outras palavras, o nível de exploração da escravidão no Brasil e o nível tradicional de vida do escravo se constituíram no parâmetro histórico da constituição e consolidação do padrão de exploração do trabalho assalariado. Ao mesmo tempo, na medida em que as hierarquias raciais foram preservadas, o trabalhador negro teve de se contentar com as posições sociais que na maioria das, sob o regime de classes, não classificava nem valorizava socialmente o indivíduo. Nos primeiros 50 anos após a abolição praticamente não havia indivíduos negros que trabalhavam como médico, dentista, jornalista, proprietário de pequeno comércio, etc. E os pouco que superaram a barreira imposto pelo preconceito e discriminação o fizeram sob grande terror psicológico em meio às formas adaptadas de proscrever o negro.

O movimento negro que se consolidou nos anos 1930, embora de orientação varguista, foi importante para impulsionar mudanças neste padrão (Fernandes, 1972). Embora este movimento tenha alcançado uma parcela relativamente reduzida da população negra naquele momento, ele foi o gérmen de movimentos importantes, como o Teatro Experimental do Negro, o TEN, liderado por Abdias Nascimento. Essas e outras expressões do movimento negro no Brasil foram importantes para educar a população negra a navegar no regime de classes, inclusive no que se refere a ocupar melhores postos de trabalho, e a criar redes de proteção e amparo social e psicológico (Fernandes, 1965, vol. II). Mais que isso, esse movimento educou também o branco que, em alguma medida, teve que aprender a conviver com o negro no trabalho, no sindicato e em outros lugares sociais novos para o negro – o que não significa que esta convivência estivesse livre de formas de proscrever o negro. Se o golpe militar de 1964 e outros processos autoritários não tivessem concorrido para a sua interrupção e articulação com outros movimentos mais amplos de luta pela democracia no Brasil, talvez hoje vivêssemos uma sociedade mais livre e afastada do fascismo. Além de possíveis benefícios sociais, econômicos e políticos, a consolidação de formas mais tolerantes e construtivas de vida seguramente teria conformado indivíduos psiquicamente mais inteiros, isto é, menos cindidos pelas frustrações que estruturam a psique autoritária (Reich, 1933).

De todo modo, a história não levou a uma modificação significativa do padrão de exploração do trabalho nem da convivência social. Pelo contrário, as formas violentas de impor padrões, além da própria violência desses padrões em si mesmos viabilizaram a continuação de estruturas senhoriais e escravistas em meio à democracia formal no Brasil.[1] A estrutura da segregação social no Brasil, inclusive no que se refere a sua fundamentação racial, não foi modificada (Fernandes, 1975).

Não apenas a expansão da riqueza preservou uma enorme concentração de renda, riqueza e poder, como estes continuaram a ser processos fortemente racializados. Embora as possibilidades de ascensão social tenham sido aproveitadas senão por alguns poucos indivíduos brancos e negros, a escala em que estes o fizeram foi enormemente inferior, evidenciando o racismo das estruturas de poder que controlam e estabilizam a hierarquia social no Brasil. Não por outra razão a informalidade no país possui uma cor, que é a cor negra de milhões estigmatizados pela cor de sua pele e por toda e qualquer expressão cultural de matriz africana, que é um dos gatilhos do que Florestan Fernandes denominava como medo-pânico. Desta maneira, não só as possibilidades racializadas de ascensão social evidenciam a natureza da segregação no Brasil, como a articulação destes processos segregacionistas, de raça e classe, aproximam o país de uma divisão que autoriza gestões sociais autoritárias.

REFERÊNCIAS:

FANON, Frantz (1952). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

__________ (1961). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

FERNANDES, Florestan (1972). O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007.

__________ (1965). A integração do negro na sociedade de classes – vols. I e II. São Paulo: Editora Globo, 2008a.

__________ (1968). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global, 2008b.

PORTUGAL JÚNIOR, José Geraldo. Padrões de heterogeneidade estrutural no Brasil. Campinas: IE-Unicamp (tese de doutorado), 2012.

REICH, Wilhelm (1933). Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


[1] Para uma inspiração mais geral desse processo, que não se restringe ao Brasil, ver Fanon (1952, 1961).

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