Baseado no trabalho de
Alice Zaroni Nicolella
Júlia América de Paula Santos
Juliana Caroline Bonetti
Tatiana Bartolomei Sarnelli
Com o tempo, as divisões geográficas e políticas de um país podem mudar bastante. Uma das regiões mais importantes do Brasil, há alguns séculos, era a capitania de Pernambuco, que tinha um enorme poder político sobre outras regiões do nordeste. Após 119 anos de influência pernambucana, a então capitania do Siará se tornou independente, graças à decisão da Rainha Maria I no dia 17 de janeiro de 1799. Para comemorar a data, uma lei estadual declarou, em 2004, o “Dia do Ceará”.
A língua, assim como as relações políticas regionais, também mudam. Mudam no tempo e mudam no espaço. E contribuindo para as comemorações do Dia do Ceará, falaremos de uma produção bastante curiosa:
Cine Holliúdy (2012)
Se você já assistiu ao filme “Cine Holliúdy” (2012), deve se lembrar do recado inicial:
Além disso, também é dito logo no início que
“Este filme contém cenas de cearensidade explícita”.
Estes avisos podem ser compreendidos como uma simulação das fichas de verificação de conteúdos artísticos, aprensentando avisos ao público.
Se você ainda não conhece, “Cine Holliúdy” é um filme brasileiro, dirigido por Halder Gomes, inspirado no curta-metragem “Cine Holiúdy: O Astista Contra o Caba do Mal”, de 2004 que, por sua vez, também teve uma parte 2, intitulada “Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral”, lançada em 2017. Essa “franquia” inspirou a criação da série homônima produzida e exibida pela TV Globo desde 2019 e que lançou sua segunda temporada em 2022 [alguma similaridade com as séries e filmes dos heróis da Marvel?].
Voltando ao filme e sem muito spoiler, ele conta a história de Francisgleydisson, pai de família que decide migrar para uma outra cidade e abrir um cinema. Toda a história se passa na década de 1970 no interior do Ceará, quando a TV ainda começava a se popularizar e a ameaçar os cinemas das pequenas cidades. Com muito humor e muito “cearensês”, Francisgleydisson luta para manter o seu cinema, bem como para despertar e manter a paixão das pessoas pelas exibições cinematográficas.
Mas o que nos interessa mesmo nesse post é esse tal de “cearensês”! O que seria isso? Para podermos compreender, vamos precisar falar um pouquinho de:
Sociolinguística
As pesquisas científicas sobre a linguagem, a depender de seus objetivos, podem adotar como foco o estudo das características que permitem que a sociedade influencie a forma como uma língua se apresenta.
Uma das vertentes mais conhecidas da sociolinguística é a variacionista, que estabeleceu termos bastante conhecidos e difundidos hoje, até mesmo fora da área acadêmica. Dentre esses termos, podemos mencionar as variações linguísticas e as variedades linguísticas (grosso modo, os sotaques). Além disso, existem diversos “bordões” da área, fatos que estão bastante estabelecidos e são repetidos com bastante frequência como aquela que usamos no início do post, de que as línguas variam no tempo (com o passar dos anos) e no espaço (regiões mais afastadas tendem usar a língua de maneiras mais distantes uma da outra).
William Labov é o primeiro nome que vem à mente ao falar de sociolinguística por ser considerado o fundador da área. Segundo Labov, características sociais como o sexo das pessoas, idade, localização geográfica, nível de escolaridade, status social e as hierarquias sociais em que estamos submetidos são apenas alguns dos muitos fatores que se correlacionam para a construção de uma variedade linguística (um jeito de falar sua língua).
Sotaques: variantes do nosso universo multilinguístico
À título de exemplo, os sotaques nordestinos têm cada um as suas particularidades. Ainda assim, por serem geograficamente próximos, eles também são mais parecidos entre eles do que se compararmos com algum sotaque sudestino ou sulista. Mas mesmo dentro de uma certa região, pessoas mais velhas terão a tendência a falar diferente dos jovens por terem tido influência de sotaques mais antigos e estarem em menos contato com as inovações da juventude.
Se olharmos ao extremo, o contato que tivemos com pessoas ao longo da nossa vida já influencia nossa forma de falar e, nesse sentido, cada pessoa tem seu próprio jeito de falar (o que chamamos de idioleto).
Cada uma dessas formas de falar é caracterizada por certas especificidades de diferentes naturezas. Por exemplo, podemos mudar as palavras que se referem a coisas específicas como aipim, mandioca e macaxeira, ou como tangerina, mexerica e bergamota, como já discutimos nesse outro post. Outras características podem ser de pronúncia, como a diferença no S chiado do carioca ou o chamado “R caipira”, tecnicamente chamado de R retroflexo.
Repare, porém, que independente da forma como falamos, ainda assim somos todos brasileiros e nos entendemos. E sendo brasileiros e estando frequentemente em contato com todos esses sotaques, também costumamos reconhecer ao menos aqueles mais conhecidos. Desse modo, a forma de alguém falar nos dá uma pista linguística para inferirmos parte da identidade do outro.
Cada uma dessas opções [ex. tipo de R, tipo de S, conjunto de palavras usadas] são chamadas de variantes [isso, assim como na série do Loki]. Já quando temos um universo inteiro de variantes dos personagens da Marvel, digo, todo um sotaque composto por um conjunto de variantes, temos uma variedade, como o Universo 616….. e como o nosso cearensês.
“Para a Sociolinguística, não existe um único código linguístico absoluto que deva nortear a fala de todos porque a própria variedade linguística reflete a variedade social, e dentro de uma variação, uma sentença pode não estar de acordo com as normas gramaticais propostas pela norma padrão, mas pode estar linguisticamente correta, pois realiza uma comunicação efetiva.”
ETTO & CARLOS, 2017, página 733 – ver “Saiba Mais” ao final do post.
A variação linguística em Cine Holliúdy
O fato de vermos um aviso no começo do filme, justificando a “cearensidade explícita”, pode ser entendido como uma crítica aos mais “puristas” quanto ao uso da língua, que acreditam que a norma culta padrão da Língua Portuguesa é um caminho único, e desconsideram a importância cultural e identitária das inúmeras variedades existentes do Português.
As formas de falarmos mudam naturalmente com o tempo e com o distanciamento entre os falantes. Uma perspectiva purista, se fosse levado ao extremo, deveria preferir que voltássemos a falar Latim, afinal o Português, o Mirandês, o Espanhol, o Romeno, o Francês, o Italiano e tantas outras línguas, hoje consideradas línguas nacionais, nada mais são do que “o Latim falado errado” que se consolidaram em uma determinada região ao longo da história.
O oposto ocorre em “Cine Holliúdy”, em que as expressões, as gírias e o sotaque “cearensês” são bem valorizados e marcados, com a presença de legendas que auxiliam na manifestação cultural dessa variedade. Por exemplo, no início do filme, o personagem Francisgleydisson, em conversa com sua esposa e seu filho, diz:
“E além do mais, essa nova rede de TV tá chegando numa ruma de cidade”
Duas características interessantes aparecem nesta fala:
a. o uso de uma gíria especificamente cearense, “ruma”; e
b. as formas informais de escrita, marcas da oralidade, na legenda, “tá chegando numa”.
“Ruma” significa “muita”, ou seja, “a nova rede de TV está chegando em muitas cidades”. É legal frisar que “ruma” concorda no feminino e no singular com o termo “cidade” [perceptível em seu artigo indefinido, numa]. Ademais, a legenda como um todo opta por utilizar as palavras escritas de forma contraída, típica da oralidade e raramente presente na escrita (“tá” ao invés de “está” e “numa” ao invés de “em uma”).
Outro exemplo pode ser visto em uma conversa entre os espectadores do cinema enquanto ocorrem problemas de exibição de um filme. Uma das espectadoras, desconfiada, diz:
Tá vendo que eu vou acreditar num leruaite desses.
Com essa frase, a espectadora quis dizer:
“Até parece que eu vou acreditar em uma enganação dessas”.
De acordo com o dicionário informal, “leruaite” significa conversa mole, papo-furado, conversa para boi dormir.
No que diz respeito às palavras da variedade cearense do português brasileiro, o professor Josenir Alcântara de Oliveira, da Universidade Federal do Ceará (UFC), em entrevista para o site Dicas Jornalismo Lab, informa que a origem das palavras de nosso cearensês tem três principais fontes:
(1) as línguas indígenas, como o tupi especialmente, derivadas dos povos originários da região, chamadas de substrato linguístico pela filologia;
(2) as palavras portuguesas, advindas dos colonizadores portugueses, que em filologia se considera como superestrato; e
(3) o contato com as línguas estrangeiras, como francês, inglês e espanhol, cuja influência é vista até os dias atuais.
Por fim
O cearensês é um exemplo do fenômeno da variação linguística, um dos temas mais recorrentes na área da sociolinguística. E assim como qualquer outro sotaque, ele faz parte de nossa língua e da nossa identidade.
O UCM, digo, o UMP (Universo Multilinguístico do Português) vem se expandindo até mesmo na Netflix, com a valorização de séries que exploram os sotaques brasileiros em séries como “Só se for por Amor”, “Irmandade” e outros, além do nosso Cine Holliúdy.
Se cuida, Marvel!
Saiba Mais:
Jornais e Revistas:
TRINDADE, Wanderson. Há 220 anos, Ceará se emancipava de Pernambuco, Jornal O Povo. 2019
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2019/01/o-ouro-branco-que-levou-a-europa-ceara-celebra-220-anos-de-emancipaca.html
NOBRE, Ana Faely. O dialeto cearense como uma peculiaridade. Dicas de Jornalismo LAB, 2022. https://labdicasjornalismo.com/noticia/10813/o-dialeto-cearense-como-uma-peculiaridade.
STYCER, Mauricio. Netflix agora enfatiza variedade de sotaques de suas produções no Brasil, UOL, 2022
https://noticias.uol.com.br/colunas/mauricio-stycer/2022/04/13/netflix-agora-enfatiza-variedade-de-sotaques-de-suas-producoes-no-brasil.htm
Podcasts:
Contrafactual #69: E se todos falássemos a mesma língua?
https://www.deviante.com.br/destaque/contrafactual-69/
Scicast #248: História da Língua Portuguesa
https://www.deviante.com.br/podcasts/scicast/scicast-248/
Artigos acadêmicos:
ETTO, R. M.; CARLOS, V. G. Sociolinguística: o papel do social na língua. Mosaico. São José do Rio Preto, v. 16, n. 1, p. 721-739, 2017.
https://anhanguera.edu.br/wp-content/uploads/02_sociolinguistica_o_papel_do_social_na_ling.pdf
HORA, D. da; WETZELS, L. A variação linguística e as restrições estilísticas. Revista da ABRALIN, [S.l.], v. 10, n. 3, 2011. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1089
Fiz uma viagem recentemente, fiquei maravilhado com o sotaque e o poder linguístico do Cearense, até peguei um pouco de sotaque. Ótimo artigo, sempre acompanho os blogs da Unicamp.
A gente nunca sabe que fala uma variante linguística, até que sejamos surpreendidos com uma pergunta que, na época, me pareceu não-pragmática: "Você é da terra seca, não é?" Por acaso, eu estava em Recife, e tinha apenas meus 18 ou vinte anos, recém-egresso do colegial. Retruquei: "De onde?"; e o sujeito, um pouco mais vivido do que eu (seus 40 anos), reagiu: "Do Ceará". Eu, então, sem nada entender, respostei: "Sou"; e ele disse: "Conheci só pela voz". E eu não sabia que falava diferente... mas me calei; somente dezenas de anos depois é que fui compreender este diálogo, para mim, tão excêntrico.
Tudo bem, admito, eu falo cearensês; mas eu escrevo em cearensês? Agora, estou na dúvida...
Olá José Bento, obrigado pelo comentário. Na oralidade, além de marcas gramaticais e de lexicais (escolha de palavras), ainda temos a pronúncia e prosódia que ajudam muito a entender de onde as pessoas vieram (claro, se conhecermos o sotaque).
Na escrita - ao menos na mais formal - não temos esses níveis (pronúncia e prosódia). Além disso, é um tipo de uso da língua em que temos a tendência a usar uma norma mais padrão, que aprendemos na escola desde pequenos. Ainda assim, sempre restam algumas marcas, como no caso das escolhas de palavras como aipim, mandioca e macaxeira. Talvez não seja tão fácil identificar o "sotaque" da escrita, mas algumas pistas existem.
Abraços
Que pistas, caro Thiago? Eu continuo achando que escrevo normal. Na minha escrita, os traços de cearense desaparecem. Eu fico até parecendo um intelectual com doutorado em Harvard. Só que não: nunca saí do interior do Ceará, e não sou intelectual coisa nenhuma! A escrita engana pra caramba! Quem vê minha escrita, pensa que eu vim de Marte! Mas eu acho legal isto. É, de fato, um milagre o que a escrita proporciona às pessoas! Sou adepto da linguagem escrita por isso, porque nos iguala, e eu posso falar com qualquer pessoa sem os resquícios - às vezes, indesejáveis - de minhas origens... kkkkkk