Não é só traduzir? O trabalho de um tradutor de filmes e séries

Pixar Post: [https://pixarpost.com/2015/01/laura-meyer-localization.html]

Texto de:
Amanda Soares Pereira Akad Barghout
Gabriel Pimentel Nogueira


Toy Story, Up! Altas Aventuras, Divertida Mente… Você com certeza já ouviu falar dessas animações. Além de serem produções da Pixar, esses (assim como outros) desenhos têm mais uma coisa em comum: todos eles sofreram adaptações de linguagem até que estivessem prontos para serem exibidos nos cinemas (ou nos streamings, do que jeito que a coisa anda…).

Tratar do assunto das “adaptações” é quase como fazer uma inevitável associação das adaptações cinematográficas que foram baseadas em livros. A própria Disney tem um longo histórico sobre isso, já que nos últimos anos inúmeros clássicos como A Bela e A Fera, Cinderela, Pinóquio, O Rei Leão, dentre outros, ganharam versões cinematográficas.

Imagens de divulgação: (esquerda) A Brodway é Aqui, (direita) O Vício.
Imagens de divulgação: (esquerda) Revista Veja, (direita) Adoro Cinema.

No entanto, o que queremos tratar nesse texto não diz respeito às adaptações literárias. O objetivo é mostrar para você como, para trabalhar com a linguagem, um profissional da área de tradução precisa considerar mais do que a língua-alvo.

Antes que possamos discutir as adaptações realizadas pela Pixar (que foi comprada pela Disney em 2012), nós precisamos esclarecer alguns conceitos em torno da área de tradução, como: quem é que traduz? O que um tradutor faz? E porque nem sempre dá para traduzir ao pé da letra…

Quem é que traduz?

Antes de mais nada precisamos considerar que a área da tradução envolve outros campos e gêneros além da legendagem, que é mais popular, e pode envolver dublagens, voice-over, tradução-simultânea, etc. Desse modo, demanda-se tempo e, a depender da empresa que o profissional está trabalhando, ele precisa ainda lidar com as exigências do mercado, que variam desde um limite de palavras em um texto ou até mesmo adequar o produto para um determinado público-alvo.

Ao passo que o processo de traduzir demanda tempo e revisão, nos últimos anos algumas comunidades de fãs decidiram legendar suas séries favoritas. Essas traduções acontecem em uma velocidade muito maior, muitas vezes sem a revisão adequada e sem algumas das exigências do mercado que foram citadas anteriormente. Esse movimento é conhecido como fansubbing, justamente por não se tratar de tradução/localização profissional.

Portanto, uma tradução oficial, daquelas que são exibidas em streamings, ou em documentos oficiais do governo, como cartilhas ou documentações juramentadas, é realizada por tradutores profissionais da área de Tradução. Esse trabalho envolve estudo e qualificação e, ao contrário do que muitos pensam, não é suficiente ser fluente em uma língua estrangeira para ser um bom tradutor.

Mas o que um tradutor faz?

Traduz. Simples, assim. A grande questão é o como ele vai fazer isso, porque nem sempre traduzir ao pé da letra funciona. Vamos olhar como esse processo acontece na produtora de desenhos animados, a Pixar.

Porque nem sempre dá para traduzir ao pé da letra…

Na imagem abaixo apresentamos um exemplo clássico do tipo de tradução que existe no imaginário das pessoas. À esquerda temos uma cena de Divertida Mente em que o personagem Bing Bong lê uma placa de perigo [danger]! em inglês e à direita, temos a mesma imagem e sua respectiva tradução para o hebreu.

Comparação de uma cena de Divertida Mente na versão em inglês e na versão em hebreu.

Como veremos a seguir, porém, traduzir para a língua oficial de cada país pode não ser o mais adequado e nem o mais viável. Veja outro exemplo realizado pela Pixar em Up! Altas Aventuras. Nessa cena, Ellie e Carl estão economizando dinheiro para viajarem para o Paraíso das Cachoeiras e assim se dá a cena original.

O espaço limitado do pote que contém a mensagem tornou inviável que a tradução acontecesse para todos os idiomas em que o filme seria distribuído. Por isso, a solução encontrada pela empresa foi “traduzir” o texto para uma ilustração do Paraíso das Cachoeiras. Visto que a ilustração já aparecia em outros momentos da animação, a mensagem seria entregue sem perder seu sentido (afinal, uma cachoeira é uma cachoeira em todos os lugares do mundo).

Às vezes as soluções encontradas pelos tradutores tapam um buraco e destampam outro. Por exemplo, em Universidade Monstros, Randall carrega uma bandeja de cupcakes com a mensagem “be my pal” (seja meu amigo).

Vamos colocar as duas frases em comparação.

Universidade Monstros: Versão em língua inglesa.

Observe que além da decisão a ser tomada em relação à cena, a brincadeira original trazia a troca do P pelo D, em que, por um momento, pal se torna dal. Essa brincadeira não é possível de acontecer em português.

Além disso, entre be my pal, que contém 7 letras, e uma tradução simples para seja meu amigo, que contém 12 letras, há uma diferença de 5 letras. Como ajustar isso no desenho?

Assim, os tradutores tiveram que encontrar outra solução. E vemos isso logo abaixo em as letras de “be my pal” se tornam rostinhos felizes, que entregam a mensagem universal de afeto que a cena trazia originalmente.

Universidade Monstros: Versão para outras línguas.

Contudo, embora a solução tenha funcionado perfeitamente aqui, o efeito se perde em outra cena do desenho. Isso porque quando alguns desses cupcakes com as letras L A M E caem no rosto de Randall, cria-se em inglês a frase “lame”. Logo, visto que a solução para o “problema” anterior foi desenhar rostinhos felizes, os tradutores não teriam mais como manter a brincadeira. Assim, a “piada” desta nova cena acabou se perdendo.

Universidade Monstros: “Lame”: “Fracote” na versão para outras línguas.

Desse modo, fica evidente que o processo de tradução/localização envolve mais do que apenas traduzir de uma língua de partida para uma línguaalvo, pois os profissionais precisam considerar o público, o país e a cultura alvo.

Agora vamos mostrar mais um exemplo de tradução multissemiótica realizada no filme Divertida Mente.

Nos Estados Unidos, país de origem da animação, as crianças não gostam de brócolis. Por causa disso, de modo a retratar a cultura dos americanos e de causar uma identificação com o provável público infantil, a personagem Riley recusa o alimento.

Divertida Mente: versão americana

No entanto, o nojinho não é verdade para as crianças japonesas que amam brócolis! Assim, os tradutores tiveram que adaptar a cena para aquele público, tornando-o culturalmente apropriado, e transformando, portanto, os brócolis em feijões.

Divertida Mente: versão japonesa

Um adendo: Wandinha ou Quarta-Feira?

Saindo da Pixar, a série Wandinha estreou na Netflix e tem como título original Wednesday (“quarta-feira”, em português). Prevendo que traduzir o nome da personagem principal para “Quarta-Feira” não daria certo para o público brasileiro, a solução foi investir em Wandinha, o nome oficial da personagem em terras brasileiras desde 1965, ou seja, a forma como os antigos fãs da franquia já a conhecem.

Mas é claro que a escolha da tradução rendeu discussões e memes e a própria Netflix teve que se manifestar.

Tweet da Netflix sobre Wandinha

De todo modo, já em 1965 os tradutores tiveram o cuidado de não usar o nome original. Se quiser saber mais sobre o assunto, recomendamos esse texto de Rayane Moura na Gizmodo.

Texto de Rayane Moura no Gizmodo

Para finalizar

Há muitos outros exemplos que poderiam ser abordados. Ainda assim, os exemplos considerados aqui já são o suficiente para demonstrar que um processo de tradução envolve, além do trabalho com a língua escrita ou oral, também adaptar costumes e culturas, bem como a adaptação de outros elementos de cada cena. Esse processo é conhecido entre os tradutores como localização, ou seja, tornar um produto capaz de se adaptar para a área em que irá ser comercializado. E, como vimos no caso da Pixar, esse movimento ainda envolve outras questões, como o texto, a imagem e o som.

Portanto, tenha em mente que um profissional da área de tradução precisa tomar decisões que envolvem a cultura, o público-alvo e as exigências do mercado. Desse modo, o tradutor terá que apagar, reescrever palavras ou elementos de modo que o produto final seja o mais adequado o possível para o público-alvo.

Então, já sabe! Sempre que você ver uma tradução muito diferente do texto original, pense em todas as questões que o tradutor teve que lidar para que esse resultado fosse possível.

Saiba Mais

Ainda pensando nesse assunto que abaixo deixamos um post realizado por um tradutor que foi responsável por traduzir alguns títulos de filmes bem famosos. Ele discute o que o trabalho dele envolvia e porque ele chegou nas soluções que ele apresenta na postagem.
https://www.gibizilla.com.br/2020/12/a-fina-e-controversa-arte-de-dar-titulos-em-portugues-p ara-os-filmes/

Pixar Post, sobre localização das animações da empresa:
https://pixarpost.com/2015/01/laura-meyer-localization.html

Legião dos heróis, sobre Wandinha
https://www.legiaodosherois.com.br/2022/wandinha-por-que-personagem-familia-addams-quarta-feira.html

Gizmodo, sobre Wandinha
https://gizmodo.uol.com.br/afinal-por-que-a-wandinha-se-chama-wednesday-entenda/

Blogs Unicamp: Por que nos incomodamos com filmes (mal) dublados
https://www.blogs.unicamp.br/linguistica/2018/07/17/por-que-nos-incomodamos-com-filmes-mal-dublados/

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