Covid, cloroquina e experimentos em humanos

Falar que o Brasileiro não tem um minuto de sossego e que isso só tem piorado durante a pandemia já é um clichê. Essa semana não poderia ser diferente – e, realmente, não foi.

O código de Nuremberg.

Durante esses meses que estamos convivendo com a pandemia da COVID-19, parte da comunidade científica e dos divulgadores de ciência vêm fazendo um esforço hercúleo para compartilhar informações corretas e atualizadas, além de combater a enxurrada de fake news e desinformação que estão sendo disseminadas por tudo quanto é lugar. 

Poderíamos falar que a falta de conhecimento do modus operandi da ciência pela população explicaria, mas parece que o buraco é bem mais embaixo. Principalmente quando vemos pessoas com formação em ciências atuando de forma anti-científica, fraudulenta ou pseudo-científica. Mais assustador do que isso foram os experimentos da Prevent Senior que vieram à público. Experimentos com cloroquina em pacientes com COVID-19. É assustador! Uma instituição de saúde, conduzindo experimentos científicos de forma anti-ética, mais de 70 anos após o famoso Código de Nuremberg.

Voltando no tempo…. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, 23 pessoas do regime nazista (20 das quais eram médicos) foram consideradas criminosas de guerra pelos experimentos realizados com seres humanos. Desse julgamento foi derivado um documento conhecido como “Código de Nuremberg”, divulgado em 1947, que representa um marco na condução ética de experimentos com seres humanos. As diretrizes listadas ali servem, até hoje, para o estabelecimento da legislação sobre o assunto – e no Brasil não é diferente.

E quais diretrizes são essas?

A participação do voluntário em um estudo deve consentida e ser precedida por um esclarecimento (feito pelo cientista responsável). Ao voluntario deve ser apresentado todo o processo experimental, além dos possíveis riscos e benefícios envolvidos.

Não apenas isso. Ao voluntário devem, ainda, ser garantidos o direito à desistência da participação a qualquer momento e à proteção (tratamento adequado; evitar danos e sofrimentos desnecessários; minimizar possibilidade de invalidez e morte). Em caso de grandes chances de morte ou invalidez decorrente do estudo, este não deve ser conduzido – ou deve ser interrompido caso o risco seja detectado ao longo do estudo. Isso faz com que o estudo possa ser interrompido a qualquer momento (a proteção ao voluntário vem em primeiro lugar).

Mas não acaba por aí. Estudos pré-clínicos (aqueles realizados em laboratório com células e animais*, por exemplo) passam a ser considerados essenciais para estabelecerem esses limites de riscos.

Por fim, os estudos, para serem realizados em humanos, devem objetivar uma vantagem para a sociedade e serem conduzidos por uma equipe capacitada para isso.

Hoje, no Brasil, temos uma centralização da análise ética dessas pesquisas que envolvem seres humanos. A base legal é estabelecida pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), um órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Os pesquisadores devem cadastrar os projetos numa plataforma única (a Plataforma Brasil) para serem avaliados a nível local pelos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP).**

Pois bem, o que a Prevent Senior fez?

Jogou tudo isso no lixo e conduziu seus experimentos com cloroquina (afinal chamar de estudo é meio complicado né?) de uma forma no mínimo questionável. É isso que podemos ver nesse fio da Chloé Pinheiro no Twitter. Vale a pena clicar e ler o fio todinho:

É assustador! É cruel! É anti-ético!

E não acabou por aí…

Não bastasse esse escândalo, fomos brindados com um pronunciamento alarmante de Marcelo Queiroga. A orientação do Ministro da Saúde era interromper a vacinação de jovens de 12 a 18 anos com a vacina da Pfizer contra a COVID-19. A manifestação do ministério veio, ainda, acompanhada de informações inverídicas e levantamento de incertezas acerca da segurança da vacina. Apesar de o movimento anti-vacinas no Brasil não ter a força que tem no exterior, jogar dúvida sobre uma vacina comprovadamente segura gera insegurança na população. E, num momento em que buscamos um percentual elevado de pessoas vacinadas na população, isso pode ter implicações importantes. 

Hoje mais cedo, quando já estava com a ideia de escrever esse texto, vi esse tweet do Daniel Gontijo que acho que cai bem para fechar esse texto.

Notas complementares:

*No Brasil, a experimentação animal é regulamentada pela Lei Arouca (Lei 11.794/2008). A legislação brasileira é bem rigorosa e segue princípios semelhantes aos do código de Nuremberg. Apesar de a experimentação animal ainda ser necessária, há um esforço para que haja: 1) a redução do número de animais utilizados em pesquisas; 2) o refinamento das técnicas para que sejam garantidos o direito ao bem estar e à utilização de técnicas adequadas de manejo e experimentação; e 3) a substituição do uso de animais por métodos alternativos sempre que possível. O canal “Nunca vi 1 cientista”, fez um vídeo muito bom sobre o assunto.

**Aproveito para indicar dois podcasts recém lançados. O primeiro é o “Pelo Avesso”, que nesta temporada está falando sobre Eugenia. E o segundo é o “Ciência Suja”, que fala do impacto de fraudes científicas para a sociedade. Os dois trazem de forma explícita questões éticas que perpassam a ciência e não podem ser esquecidas.

2 thoughts on “Covid, cloroquina e experimentos em humanos

  • 15 de novembro de 2021 em 23:45
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    É inacreditável fazer um texto inteiro sobre cloroquina, HCQ, e não citar um único estudo científico. Não dar um único link para um estudo científico sequer. Opinião para todo lado. Só. E diz que é ciência.

    Toma. Vou explicar para vocês como escreve sobre o assunto. Citando estudos!

    [editado: removido o link]

    Resposta
    • 28 de novembro de 2021 em 23:39
      Permalink

      Oi, Filipe,
      Primeiramente, este não é um post sobre cloroquina, mas sobre ética na experimentação com humanos, usando como exemplo a forma como foi conduzido um experimento com o uso de cloroquina.

      Além disso, uma das tags do post é ˜minhas impressões", ou seja, sim, é um artigo de opinião, e o uso da tag é justamente para deixar isso claro.

      Por fim, temos diversos outros divulgadores que, eles sim, estão fazendo divulgação sobre covid, aprofundando em temas como o que você está se referindo (eficácia do uso de [hidroxi]cloroquina no tratamento de covid); alguns desses textos estão publicados no especial covid-19 do blogs Unicamp.

      Resposta

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