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Filosofia e Divulgação Científica

O ódio como engajamento

Sobre as estratégias de marketing na Divulgação Científica – O ódio como engajamento

As ovelhas não vão a lugar nenhum. Eles gostam do meu mundo. Eles não querem esse sentimentalismo. Eles não querem liberdade ou empoderamento. Eles querem ser controlados. Eles anseiam pelo conforto da certeza.

Neste final de 2021 a minha bolha social foi inundada por discussões sobre as relações do filme “Não Olhe para Cima” com a divulgação científica e o Brasil pandêmico. E enquanto acompanho os mais diversos memes e inúmeras postagens sobre como um filme apocalíptico se parece com os últimos dois anos de luta da ciência, não consigo deixar de pensar em como certas questões importantes (ou que pelo menos nós do Blogs de Ciência da Unicamp enfrentamos nesta pandemia) foram abordados por outro lançamento cinematográfico e que esta mesma bolha pode ter deixado passar.

The Matrix Resurrections

Matrix Ressurrections quarta produção cinematográfica da franquia Matrix foi lançada 18 anos depois de Matrix Revolutions e apresenta, assim como esperado pelos fãs, inovações tecnológicas a partir da parceria com a Unreal Engine 5, (essa inovação pode ser melhor conferida no jogo The Matrix Awakens).

O novo Matrix também aborda discussões filosóficas permeadas pelo contexto apocalíptico, a história de amor entre Neo e Trinity, referências aos filmes anteriores, e um toque de humor ácido com os diálogos que discutem o que a indústria do entretenimento acredita que deveria estar presente no filme e o que os idealizadores da obra de fato querem. Um exemplo bem visível disso é a discussão sobre as cenas Bullet time marca registrada da inovação das Wachowski e a reinvindicação forte da indústria e dos fãs da franquia.

Trailer oficial dublado

Lana Wachowski mantém a discussão base da franquia sobre o que é real e até que ponto aceitamos o imaginário de Matrix, mas inova ao permear essa discussão com a avalanche de informação que viemos enfrentando na pandemia, em sua estratégia de marketing ela opta por assumir a estratégia de Spoiler (Falo mais sobre isso no texto O Spoiler como discurso) e inunda a internet com mais de 180 mil variações de teasers, forçando o fã a escolher uma das famosas pílulas vermelha e azul.

Essa estratégia de Spoiler muito bem pensada nos convida a refletir sobre o real e o irreal, filosofia largamente abordada por toda a franquia das irmãs Wachowski, ao mesmo tempo que se aproveita das vantagens de visibilidade que essa estratégia proporciona.

Sheeple

Mas para além da estratégia de Spoiler quero chamar a atenção para outro detalhe que Matrix Resurrections apresenta. O termo Sheeple que o personagem de Neil Patrick Harris sinaliza nesta cena abaixo:

Os “sheeple” não vão a lugar nenhum. Eles não querem liberdade ou empoderamento. Eles querem ser controlados.

O termo Sheeple foi evidenciado pela coluna de Walter E. Williams “A nation of Sheeple” em outubro de 2005 para explicar a ideia de um grupo de pessoas que seguem ordens de figuras de autoridade sem muito questionamento.

“Em nome da segurança, passamos por décadas de flexibilização para aceitar praticamente qualquer decreto do governo que nossos antecessores considerassem ofensivo (…) Os americanos aceitaram timidamente todos os tipos de bobagens da Administração de Segurança dos Transportes. (…) Os políticos aprenderam e se sentiram confortáveis ​​com o fato de que os americanos de hoje aceitarão docilmente qualquer restrição legalizada ao seu comportamento.”

Willians apresenta o termo como crítica ao comportamento de aceitação pelas propostas políticas do governo George W. Bush justamente pela sua figura de autoridade e confiança. Já no filme o termo é incluso na narrativa como forma de apresentar esse enxame digital que vive sua vida passivamente, alheia ao mundo e que segue só por seguir, só por aceitar.

Billions of people just living out their lives… oblivious

Bilhões de pessoas apenas vivendo suas vidas… desatentas

https://tenor.com/bNPbK.gif

Enxame Digital

Sheeple como apresentado em Matrix Resurrections aproxima-se do termo de Enxame Digital de Byung-Chul Han que apresenta em suas obras um olhar crítico sobre as relações de poder da sociedade do trabalho e à tecnologia.

De acordo com Han o digital transformou a essência da sociedade, a partir da hipercomunicação digital (ou avalanche de informações como nomeio acima) destrói o silencio e impede a reflexão, impedindo o questionamento e a absorção da informação, assumindo assim de forma discreta e quase imperceptível características de um sistema totalitarista.

A partir disso um enxame digital se forma, uma massa de indivíduos isolados, sozinhos, sem alma, sem ação e reação, sem expressão própria. Falta-lhe justamente o espírito de massa, de luta, o enxame não é coerente, mesmo que estando acostumado aos sistemas de comunicação. Essas pessoas estão constantemente conectadas, mas ao mesmo tempo, constantemente sozinhas.

Fazenda de Humanos – Matrix

O ódio como engajamento

Ao trabalhar com comunicação nas mídias digitais precisamos ter em mente que esta mesma comunicação, apesar de suas inegáveis vantagens, principalmente ao compará-las com sistemas de comunicação anteriores, ainda sim, não é inocente, nem leviana.

Esta é construída em torno do engajamento, mas não o engajamento como entendemos no Blogs de Ciência da Unicamp:

Engajamento na divulgação científica para nós é fazer com que o conhecimento científico “saia de seu ambiente científico e acadêmico e chegue à sociedade” e isso não se trata de números que as redes sociais apresentam como engajamento, isso se trata de pessoas.

Mas como as empresas de mídias sociais querem impor que seja:

O engajamento nessas redes sociais são mensuradas a partir do número de ações que determinados perfis de público executam em suas postagens. Dessa forma a plataforma determina a relevância deste conteúdo para um determinado público alvo e, por consequência, diminui a relevância desta mesma postagem para outros públicos.

Textos que falo sobre isso: Qual a diferença da comunicação antes da internet e agora?, O Spoiler como discurso, O Influencer como Corpo Dócil, Então… O que é engajamento para você?

Assim somos bombardeados constantemente com informações que propositalmente geram algum tipo de reação, com mensagens chamando a ação, palavras de ordem, discursos inflados que nem sempre dizem a verdade. Não pretende-se que você reflita, pense, verifique a informação, o objetivo aqui é unicamente a ação e a ação de acordo com o que foi planejado na estratégia de marketing inicial.

Tempo para a reflexão ou a checagem é pouco a pouco dificultadas, tudo é construído para que você compartilhe rapidamente, discuta acaloradamente por horas nos comentário, o objetivo é inflar os números que as mídias sociais dizem que alcançamos.

Assim, o seu tempo de vida é capitalizado e o ódio se torna estratégia de marketing.

Colocar limites nunca foi tão urgente e tão necessário

É claro que não estamos em condições de sair dessa “Matrix” e excluir todas as nossas contas em mídias sociais, o mundo já não proporciona condições de estarmos fora dessa situação.

A ideia aqui é refletir e entender esse mecanismo, defendendo a filosofia  do "não bater palmas para malucos". É preciso colocar limites para si mesmo e para os outros. Pensar sobre, refletir antes de agir, verificar antes de compartilhar, mesmo que não seja uma tarefa assim tão simples. 

Trabalhar com divulgação científica, principalmente ao abordar assuntos delicados, exige cautela e responsabilidade com a informação. É tentador postar sobre um assunto que está sendo abordado na mídia, escrever longos materiais sobre o que os colegas estão discutindo, é tentador e importante. Contudo, a informação não deve ser posta de forma rápida e sem prudência, só para que meus números nas mídias sociais aumentem.

A cautela também deve vir ao contribuir com as discussões, afinal já vivemos em um mundo inundado de informações, não precisamos de mais centenas de mensagens que não contribuem e muitas vezes só confundem, ou pior, ofendem.

Muitas vezes o silêncio é a melhor opção.

Para eterno crédito da população do Distrito 12, nem uma só pessoa bate palmas. Nem mesmo que estavam segurando os papeizinhos de aposta, as que normalmente não ligam para mais nada. Possivelmente porque me conhecem do Prego, ou conheceram meu pai, ou conhecem Prim, cujo encanto não escapa a ninguém. Então em vez de agradecer ao aplauso, eu fico parada enquanto eles participam da forma mais ousada de protesto que conseguem. O Silêncio. O que quer dizer que nós não concordamos. Nós não perdoamos. Tudo isso é errado.

Jogos Vorazes – Vol. 1 Pag. 31

Textos importantes sobre o assunto: Por um olhar mais ético e menos apressado na comunicação sobre ciência e sociedade, Fazer Divulgação Científica sobre pandemia em uma sociedade do espetáculo

Saiba Mais

No exame: perspectivas do digital Byung-Chul Han

GALPARSORO, José Ignacio; PÉREZ, Rita María Pérez. Revolución digital y psicopolítica algunas consideraciones críticas a partir de Byung-chul Han, Foucault, Deleuze y NietzscheSCIO: Revista de Filosofía, n. 14, p. 251-275, 2018.

KEREN, Arnon. The public understanding of what? Laypersons’ epistemic needs, the division of cognitive labor, and the demarcation of science. Philosophy of Science, v. 85, n. 5, p. 781-792, 2018.

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