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Ciência Pop

Quadrinhos não são literatura e está tudo bem!

Em 2012 eu defendi a tese de que Sandman poderia ser considerado uma obra literária. Fiz isso em um artigo para conclusão do curso de Letras que foi selecionado para apresentação no Congresso Nacional de Iniciação Científica daquele ano.

Minha convicção se pautava na quantidade de referências literárias encontradas nas HQ do personagem e no fato de que Sandman ter sido a primeira história em quadrinhos a receber um World Fantasy Awards, um dos maiores prêmios de literatura de fantasia do mundo, além de ter sido meu primeiro texto acadêmico na vida.

Meus argumentos pareciam sólidos naquela época, seguiam a metodologia científica para sustentar o que eu queria dizer, mesmo que o coordenador da minha sessão no congresso (CONIC) tivesse sido bem relutante em concordar com minha apresentação. Eu me mantive convencida desses argumentos por algum tempo depois de começar a pesquisar quadrinhos de forma mais efetiva.

Trailer: “Sandman” da Netflix que é baseada na HQ criada de Neil Gaiman para a DC Comics.

No entanto, hoje eu poderia escrever um outro artigo refutando completamente minha primeira produção acadêmica…poderia, mas não preciso.

Minha amiga e ganhadora do prêmio HQMIX 2018 de melhor dissertação de Mestrado, Beatriz Sequeira de Carvalho, fez isso brilhantemente. Em sua dissertação sobre o processo de legitimação cultural dos Quadrinhos ela explica o motivo pelo qual os quadrinhos são chamados de A Nona Arte.

Ao longo dos capítulos e com o respaldo de diversos teóricos das Ciências Sociais e Humanas, Beatriz explica que os quadrinhos são manifestações artísticas de mesmo valor que as oito demais artes e que compõem um campo de produção humana autêntico e específico.

Wiccano e Hulkling – Marvel

Isso porque, ainda que os quadrinhos guardem muita semelhança com diversas formas de arte, como a literatura e o cinema, o fato é que entre as principais definições do que seria uma HQ estaria o equilíbrio entre texto e imagem, característica essa que não é equivalente às outras produções onde há primazia de imagens ou de textos ou de qualquer outra expressão. Mesmo em HQ mudas, o texto existe em forma de narrativa implícita ou de roteiro.

Não só isso, o processo cognitivo usado para a leitura de uma história em quadrinhos não é o mesmo que realizamos na leitura de um texto e nem é o mesmo que usamos na leitura de uma imagem. O resultado desse processo de leitura é único e exclusivo das histórias em quadrinhos.

Também há recursos narrativos que são exclusivos das narrativas gráficas e que não são possíveis em nenhuma outra forma de arte, principalmente quando seus autores precisam conferir a ideia de passagem de tempo, velocidade, fala…

Você está vendo onde eu quero chegar? 

Maus, de Art Spiegelman também não é uma matéria jornalística, embora tenha ganhado um prêmio Pulitzer. É uma história em quadrinhos que usa uma narrativa biográfica para retratar um momento histórico, ou seja, também não é um livro de História.

Por muito tempo a ideia de premiar e reconhecer que uma HQ se pareça tanto com uma obra literária ou que seja “tão boa que pareça uma obra de arte” só serviu para reforçar a percepção de que os quadrinhos seriam uma manifestação artística inferior às Artes Plásticas ou à Literatura. No entanto, com o avanço das pesquisas acadêmicas e das aplicações das HQ em diversas áreas do ensino, tem se tornado cada vez mais claro que a tese de Beatriz se sustenta ao afirmar que existe um campo de produção de histórias em quadrinhos e que ele é legítimo.

Papo Cult com Beatriz Sequeira | Legitimação Cultural dos Quadrinhos

Com o surgimento do que conhecemos como “Graphic Novel” (DANNER; MAZUR, 2014):

ou seja, publicações com qualidade gráfica superior em comparação aos formatos tradicionais e que muitas vezes trazem histórias não seriadas, podendo ser adquiridas em livrarias e lojas especializadas, algumas histórias foram “elevadas” ao status de obra literária.

Como ocorreu com um volume da adaptação Sonhos de Uma noite de Verão (1991) para o arco de Sandman, de Neil Gaiman, que foi a primeira revista em quadrinhos a receber o prêmio literário de melhor conto no World Fantasy Awards em 1991, ou com o surgimento de uma categoria exclusiva de história em quadrinhos em prêmios literários como o Jabuti (Dois Irmãos, de Fábio Moon e Gabriel Bá, em 2016 e diversos outros títulos em 2017), ou premiadas em categoria especial no Pulitzer (Maus, de Art Spielgeman, em 1992):

Considerado um dos mais importantes quadrinistas da vanguarda norte-americana (Spielgeman), recebeu em 1992 o Prêmio Pulitzer – o mais importante do mercado editorial norte-americano -, em uma categoria especial, por sua visão singular diante da tragédia vivida por seus pais durante o Holocausto. (CARVALHO, 2017, p.94)


Quanto aos quadrinhos como produtos culturais legítimos:

Carvalho acredita que é possível identificar seu processo de valorização na medida que “instâncias que antes os desprezavam, passaram a reconhecer seu valor e importância no espectro cultural mundial” (CARVALHO, 2017, p. 3).

Este reconhecimento se deu a partir de um longo processo, porém, três obras se destacam como alavancas responsáveis pelo atual status dos quadrinhos:

1986 foi o ano, como nenhum outro, que trouxe obras que marcariam e modificariam o que se compreendia por quadrinhos até então, com trabalhos mais politizados e recheados de crítica política e social. Dentre estas obras, está a “tríade de 1986: Batman: O cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, Watchmen, de Alan Moore e David Gibbons, e Maus, de Art Spiegelman. (CARVALHO, 2017, p. 100)

Ainda de acordo com Carvalho, “foi graças ao reconhecimento de Maus e à invasão das graphic novels no mercado, que os quadrinhos perderam o estigma de entretenimento barato e sem valor cultural” (CARVALHO, 2017, p.21), favorecendo assim, a solidificação de um processo de aceitação de que “a história em quadrinho constitui um campo de produção cultural específico, que pouco tem a ver com o da literatura ou das artes plásticas, como comumente se disseminou” (CARVALHO, 2017, p. 21).

@HannahWitton

Sobre a definição das histórias em quadrinhos como um campo de produção cultural distinto, vale ressaltar que elas resistiram a modismos e preconceitos e se consolidaram como “uma forma de narrativa que engloba pluralidades estilísticas e ideológicas, mesmo sendo pautada pela lógica consumista do mercado editorial (CARVALHO, 2017, p. 73), constituindo assim, um campo produtivo com moldes específicos em constante processo de renovação.

Nesse sentido, ao estipular que as histórias em quadrinhos constituem um campo de produção cultural específico, com suas próprias peculiaridades, Carvalho (2017) explica que, como outros campos das artes, assim com a literatura e o cinema, os quadrinhos contemplam gêneros narrativos que podem ser veiculados por meio de diferentes suportes, como as graphic novels:

O fato de mais de uma obra ser designada como tal (graphic novel) não faz de todas as outras obras que recebem essa denominação como pertencentes ao mesmo gênero. Seria o mesmo que dizer que uma revista em quadrinhos de super-heróis e outra de terror fazem parte do gênero “revista em quadrinhos” simplesmente por terem sido publicadas por meio do mesmo suporte editorial. (CARVALHO, 2017, p. 123)

Assim, como outros autores já afirmaram anteriormente (GROESTEEN, 2015; BARBIERI, 2017, MCCLOUD, 1993), as histórias em quadrinhos possuem recursos narrativos específicos que exigem de seus fãs e consumidores habilidades também específicas para decodificá-los:

Sem o domínio dessa linguagem, um domínio que muitos fãs internalizaram, quadrinhos se provaram uma leitura difícil para aqueles sem experiência. McCloud diz que cada aspecto de uma página de quadrinhos, do layout do painel ao uso das cores, da interação entre palavras e imagens à tendência do artista em direção (ou afastamento) do abstrato, é importante para a criação de significado. (PUSTZ, 2000, 115, tradução nossa)

A compreensão do que Groesteen (2015) afirma sobre a solidariedade icônica das imagens, indica que os leitores irão apreciar uma história em níveis diferentes de interpretação, dependendo de sua capacidade de decodificar e desvendar as camadas de significados e referências contidas nelas. Dessa forma, a construção de significados a partir de uma narrativa de quadrinhos só é possível se o leitor estiver em posse das ferramentas necessárias para essa função.

Ou seja, além da dissertação da Beatriz, vários autores mencionam a existência de cultura, linguagem, gramática próprias das histórias em quadrinhos que são elementos compartilhados por fãs que também possuem suas particularidades.

Logo, repetir que tal premiação é um Oscar dos quadrinhos ou atribuir prêmios literários às HQ é só uma forma de não reconhecer a importância dessas produções como manifestações legítimas e de valor igual às demais grandes artes, afinal, estamos falando da Nona Arte, não é mesmo?

Para saber mais:

Um comentário
  1. Sávio Christi

    As histórias em quadrinhos (Brasil), (bandas desenhadas - Portugal e Angola) são defendidas por amigos meus como a mistura entre as artes visuais e a literatura... mas não vejo motivos para algumas pessoas ficarem estressadas e constrangidas ao reagirem a quem diz que histórias em quadrinhos/bandas desenhadas não se tratam de literatura! É um ponto de vista muito pessoal de quem defende não serem, sabe?

    Mas enfim... seu texto sobre esse tema é brilhante e elucidativo! Posso dizer isso porque eu mesmo sou ilustrador, quadrinista, escritor, pintor, letrista e poeta! Beleza?

    P.S.: Farei meu primeiro romance gráfico por este ano de 2023... e, em meu entendimento, romances gráficos são histórias em quadrinhos/bandas desenhadas e livros ao mesmo tempo! Firmeza e tranquilidade?

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