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Filosofia e Divulgação Científica

A Sociedade do Espetáculo e a individualização do ódio

Em um mundo onde a vaidade é o motor das redes sociais, é comum vermos influencers, pequenos e grandes veículos de mídia deixarem e até incentivarem que postagens e comentários ofensivos, distorcidos e enganosos “rolem solto” em prol do aumento de visibilidade de seus canais.

Mas, e quando se trata de um canal de divulgação científica, será que esta é a melhor estratégia de comunicação a ser adotada? Vem cá que eu explico!

Sociedade do Espetáculo

Guy Debord, em 1967, apresentou em seu livro a “Sociedade do Espetáculo” uma crítica a essa narrativa da espetacularização, apresentada em sua época, pela mídia de massa, principalmente de forma imagética. 

De acordo com Debord essa espetacularização impossibilita a separação entre as relações sociais e as relações de produção e consumo de mercadorias, transformando a nossa vida em capital e, por consequência, nos impelindo ao consumo exagerado e ao abandono das decisões cotidianas. 

O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo, como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação.

Como parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo olhar e toda consciência. Pelo fato de esse setor estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza é tão somente a linguagem oficial da separação generalizada. 

Sociedade do Espetáculo – Guy Debord Aforismo 3 página 14

Este livro é o trabalho mais conhecido de Debord que além de ser um pensador e escritor, também dedicou sua vida a arte como cineasta, produzindo inclusive, um filme sobre sua crítica ao espetáculo.

Seu pensamento crítico influenciou não só outros pensadores e ativistas políticos, como nas manifestações na França conhecida como Maio de 1968, mas também muitos artistas pelo mundo que usavam as ideias de Debord para exemplificar o quanto era contraditório e volátil “as decisões de uma sociedade” sobre o que é sucesso ou não.

Normalmente sem nenhum critério visível e racional, essas decisões eram expostas massivamente pela mídia da época, e em pouco tempo o que ninguém conhecia estava no topo e logo em seguida, novamente passava a não interessar a mais ninguém.

A melhor banda de todos os tempos da última semana
O melhor disco brasileiro de música americana
O melhor disco dos últimos anos de sucessos do passado
O maior sucesso de todos os tempos entre os dez maiores fracassos

Não importa contradição
O que importa é televisão
Dizem que não há nada que você não se acostume
Cala a boca e aumenta o volume, então

A Melhor Banda de Todos Os Tempos da Última Semana – Titãs

Notícia velha não vende jornal

Com o tempo, nós consumidores do espetáculo, fomos aprendendo e nos acostumando a esta ideia da constante necessidade do ineditismo, do furo de reportagem, do escândalo e do show.

Já os produtores do espetáculo aprenderam que a atenção das pessoas é a chave para o lucro.

E de lá para cá, pouca coisa mudou, apesar da larga propaganda realizada em torno da ideologia do “É gratuito e sempre será”, estampada na antiga capa de entrada do Facebook e usada para difundir a ideia de uma internet livre e aberta, com o passar do tempo, se mostrou, para dizer o mínimo, equivocada.

Novamente as questões apontadas por Debord se mostram presentes, a manipulação do debate para ganho financeiro e manutenção do status quo continua sendo mantida por poucos detentores dos meios de produção. Contudo, dessa vez, a diferença entre a comunicação de massa e a comunicação digital está na produção do conteúdo de todos para um.

A individualização do Espetáculo

Nasceu pra ser uma estrela, era tudo que ele mais queria
Mas o céu tava sempre nublado
Estrela que ninguém via e quando o dia amanhecia
O seu tempo já tinha passado

Estrela de um Céu Nublado – Jay Vaquer ft. Megh Stock

Em 2019 o IBGE através da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) demonstrou a manutenção do interesse pela televisão pelos brasileiros, além do aumento expressivo do acesso à internet pelo celular:

Essas dados mostram que apesar do brasileiro ainda se interessar pelo acesso à informação de forma coletiva, (assistem juntos em frente ao aparelho) e com limitações de tempo (horário do programa e tempo de exibição), típica da televisão. Ele também tem diversificado seu interesse para algo mais particular, individualizado, instantâneo e direto.

E para o produtor de conteúdo, isso significa que cada vez mais a informação é pensada, elaborada e entregue a você e somente a você.

É claro que os algoritmos contribuem muito para isso e traz muitas outras problemáticas para o debate, mas aqui, nesta postagem, destaco a constante necessidade de estratégias pensadas e desenhadas para o seu público que a cada ano se torna mais único, mais disputado e estafado.

E é aqui que nos deparamos com a realidade da maioria dos divulgadores científicos que é a eterna luta pela atenção da sociedade para assuntos não tão simples assim.

Nesse dia a dia de produção de material, estudo da comunicação, plataforma, assuntos científicos, algoritmos, etc., muitos optam pelo que eu chamo “estratégia Felipe Neto”. Calma que eu vou explicar!

Estratégia Felipe Neto

Obviamente, não foi o Felipe Neto que a inventou, e com certeza outros profissionais devem nomeá-las de outra forma. Mas eu julgo que essa estratégia foi bem ilustrada e detalhada em seu especial para a Netflix de 2017, Minha Vida Não Faz Sentido, por isso a nominei assim.

Eu tinha feito aquele vídeo com raiva, (…) aquele foi o momento que eu decidi qual era o personagem que eu ia criar, o programa que eu ia fazer no YouTube, ia falar tudo o que eu penso, tudo o que eu acredito, tudo o que eu defendo, mas eu ia falar isso com raiva, com ódio.

Porquê? Porque o ser humano se identifica com o ódio (…) E naquele momento nasceu o Não Faz Sentido.

1 hora e 1 minuto

A “estratégia Felipe Neto” é a adoção dessa conduta de ódio como espetáculo, se trata da produção deliberada de conteúdo com o objetivo de compelir, forçar, induzir o consumidor dessa informação a reagir. Comentando, compartilhando, respondendo, se indignando, comprando!

O que devemos admitir que funciona, visto que se muitas pessoas reagirem, o algoritmo entenderá que aquele conteúdo é relevante, portanto entregará a mais pessoas até que viralize transbordando assim para outros veículos de comunicação.

E já que esses outros veículos de comunicação também entendem e reagem dessa mesma forma, o conteúdo de ódio acaba por chegar a todos, até para aqueles que nem tem acesso internet.

Bem-vindo à internet, O que você prefere?
Você gostaria de lutar pelos direitos civis ou tuitar um insulto racial?
Seja feliz, Seja excitado
Esteja explodindo de raiva
Temos um milhão de maneiras diferentes de se envolver

Welcome to the Internet – Bo Burnham

Aqui chegamos na resposta da pergunta lá do início dessa postagem: será que essa é a melhor estratégia de comunicação para o meu canal de divulgação científica? E a resposta é: sim e não!

Sim

Porque viraliza, porque engaja, porque os números das plataformas crescem e, em algum momento, alguém vai comparar o seu sucesso como divulgador científico a quantidade de likes que você tem em determinada plataforma.

E apesar da minha eterna defesa sobre engajamento não se tratar de números que uma plataforma diz que você tem e este claramente não é o real medidor do sucesso do trabalho do divulgador científico.

Ainda sim, é inegável a frustração por não ter bilhões de seguidores em suas plataformas. Já que o conteúdo é bom, relevante e importante.

Falo mais sobre engajamento aqui: Então… O que é engajamento para você?

Não

Mesmo que sua intenção ao produzir o conteúdo, comentar ou compartilhar seja para mobilizar as pessoas sobre os absurdos contidos ali, é preciso considerar alguns pontos:

Dessa forma alimentamos ao algoritmo com recomendações de que este conteúdo é relevante e deve ser direcionado a mais e mais pessoas.

E cada pessoa percebe e reage de forma diferente, já que o ódio mobiliza e nem sempre de forma positiva. E quando o conteúdo viraliza as pessoas passam a ter a sensação de que sua opinião está certa e não só isso, que muitas pessoas concordam e apoiam esta opinião, se tornando um encorajador a atitudes fora das redes digitais, na vida real!

Insisto aqui que os comentários são informações, e também podem influenciar as decisões das pessoas, principalmente quando o consumidor não tem acesso ao conteúdo completo, como falta de franquia de dados para acessar um conteúdo exterior ou o vídeo completo. Falo mais sobre isso no texto O Spoiler como discurso

Por isso, repense a estratégia de deixar comentários de haters correrem soltos em suas postagens.

Por fim, friso a importância da sua qualidade de vida como divulgador científico em lidar com a invasão do discurso de ódio em suas redes. É insalubre, frustrante, deprimente e em muitos casos, extrapolam as telas.

Assim, deixo aqui a pergunta final para vocês: será que vale a pena essa estratégia?

Responda nos comentários, curte e compartilha o meu texto.

(este final contém ironia)

Não deixem de conferir o fio que a Ana Arnt fez sobre esse texto

Referências e outras sugestões de leituras

Músicas citadas no texto:

Welcome to the Internet – Bo Burnham
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