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Ciência Pop

A linguagem e a comunicação: Reflexões sobre o filme ‘A Chegada’

Enquanto os personagens principais tentam se comunicar com os alienígenas, há uma pressão tanto dos militares quanto da mídia por respostas imediatas sobre o propósito dos heptapodes na Terra. Enquanto essas respostas não vêm, a tensão só aumenta por medo do desconhecido.

Caroline Marques Maia

O Filme:

Uma série de 12 naves alienígenas chega à superfície da Terra sem alardes, em diferentes pontos do globo. Imediatamente, a mídia começa a bombardear notícias sobre esse acontecimento e o caos, em função do medo, começa a se instalar entre as pessoas.

Enquanto isso, militares americanos recrutam uma especialista em linguística e um físico para tentarem decifrar a linguagem dos heptapodes – nome dado aos alienígenas. O foco é descobrir, o quanto antes, as reais intenções deles na Terra.

Esse é o enredo do longa ‘A Chegada’, de 2016, que apesar de parecer um filme comum, aborda questões profundas e originais sobre comunicação e linguagem em meio ao cenário da ficção científica.

O filme é do aclamado diretor Denis Villeneuve e teve oito indicações ao Oscar. O enredo é baseado no livro ‘História da Sua Vida’ de Ted Chiang, que foi nomeado para diversos prêmios de literatura. No início do filme, quando os militares chegam até a Dra. Louise Banks – a linguista interpretada maravilhosamente por Amy Adams, para pedirem ajuda na comunicação com os heptapodes, eles lhe mostram sons gravados dos alienígenas para que ela decifre.

“Desculpe mas não posso fazer isso assim. Eu teria que estar com eles”, é a resposta de Louise.

Não é apenas o conteúdo dos sons que importa; é impossível dissociá-los dos sujeitos que os produziram. A linguagem não é um mero instrumento de comunicação ou de transmissão de mensagens, mas é uma questão de relação social.

A linguagem em logogramas dos heptapodes

“A língua é o alicerce da civilização; é a cola que une as pessoas.”

personagem Louise Banks

Enquanto Louise tenta decifrar a linguagem escrita dos alienígenas, o longa traz imagens que parecem remeter às memórias dela sobre sua filha e seu marido. Inicialmente, o espectador é levado a pensar que se trata apenas de mais um clichê dos filmes de Hollywood, em que um dos personagens principais enfrenta fortes dramas pessoais passados, mas é aí que ele se engana.

Conforme Louise, com a ajuda do Dr. Ian Donnely – o físico, que é interpretado por  Jeremy Renner, entende que a linguagem escrita dos heptapodes é composta por símbolos que denotam conceitos completos – os logogramas, ela muda sua percepção do tempo entre passado, presente e futuro. 

Para escrever os logogramas, não há sentido de orientação da escrita. É como escrever uma frase com as duas mãos, começando com uma de cada lado da frase, sendo para isso necessário saber antecipadamente todas as palavras que serão usadas e o espaço que vão ocupar na frase, conforme é inclusive explicado durante o filme. Ou seja, para esse tipo de escrita, perde-se a noção de começo e fim, de passado e futuro, o que acaba afetando as percepções que Louise tem de sua própria vida ao longo do tempo. 

“Diferente da fala, o logograma é livre do tempo. Como suas naves e seus corpos, a linguagem deles [heptapodes] não possui direção. Os linguistas chamam isso de ortografia não-linear, o que levanta a pergunta: é assim que eles pensam?”  personagem Ian Donnelly

Cena do filme ‘A Chegada’, apresentando um logograma escrito por um dos heptapodes que se comunica com a Dra. Louise Banks e o Dr. Ian Donnelly ao longo do filme. Créditos: Sony Pictures Entertainment.

Isso reflete a ideia apresentada na primeira metade do século XX pela hipótese Sapir-Whorf, que traz a noção de que a língua, com estrutura e vocabulário próprios, influencia a percepção do mundo.

No filme, a cognição e consequente forma de pensar dos alienígenas, que tem uma estrutura de linguagem e de comunicação bem diferentes da humana, funciona de forma peculiar em relação àquilo que se conhece na Terra.

“A língua que você fala determina como você pensa”, conforme é mencionado no filme.

Isso é levado às últimas consequências nas cenas finais do longa, culminando com a evitação de uma guerra contra os heptapodes e a real compreensão do drama pessoal de Louise.

Cena do filme ‘A Chegada’. Créditos: Sony Pictures Entertainment

A importância da Divulgação Científica

Enquanto os personagens principais tentam se comunicar com os alienígenas, há uma pressão tanto dos militares quanto da mídia por respostas imediatas sobre o propósito dos heptapodes na Terra. Enquanto essas respostas não vêm, a tensão só aumenta por medo do desconhecido.

Neste momento, fica clara a importância de uma comunicação adequada entre a especialista Louise e um militar, leigo no assunto, para que ele compreenda a necessidade do longo processo de comunicação com os heptapodes. 

Isso não deixa de trazer à tona a importância de divulgação e jornalismo científico como formas de manifestação da ciência na sociedade para uma melhor compreensão sobre seu funcionamento.

Louise explica, em palavras simples, todo o procedimento que acredita ser necessário para entendimento e resposta adequados dos heptapodes por trás da simples questão ‘Qual é o seu propósito na Terra?’

Primeiro: certificar que [os heptapodes] entendem o que é uma pergunta; Segundo: explicar a diferença entre o propósito de alguém e o propósito coletivo – porque queremos saber porquê todos eles vieram; Terceiro: eles têm que compreender que ‘propósito’ deve ser entendido como ‘intenção’; Quarto: eles terão que possuir vocabulário suficiente para nós entendermos a resposta.

personagem Louise Banks

Imagem de divulgação do filme ‘A Chegada’. Créditos: Sony Pictures Entertainment.

As variações de sentido e o medo do desconhecido

A tensão dos governantes e da população com essa demora por respostas, que é retratada em atos violentos divulgados pela mídia, também é mostrada ao longo do filme.

A máxima ‘atire primeiro, pergunte depois’ é retratada.

Quando finalmente Louise e Ian fazem a pergunta sobre o propósito na Terra e interpretam a resposta dos heptapodes como ‘oferta de arma’, a tensão de uma guerra iminente chega a seu ápice, mesmo com os especialistas esclarecendo que não sabiam se os aliens entendiam a diferença entre ‘arma’ e ‘ferramenta’.

O sentido de uma simples mensagem não é exato. Mesmo Louise tem dificuldades para interpretar o sentido, porque é a partir de sua língua que ela tenta entender a dos aliens. 

Como o filme nos indica mais a frente, na verdade o sentido da mensagem não era nenhum dos dois. O sentido de ‘oferta de arma’ não é o mesmo na própria língua de Louise.

Tanto o sentido compreendido pelos heptapodes como autores da mensagem, quanto às diferenças de percepção de significado pelos leitores humanos, mostram que há sentidos variados, dispersos e descontínuos num discurso. Aquilo que o autor quis dizer, não é necessariamente o que o leitor vai entender. Assim, um discurso pode tanto comunicar como não comunicar… 

Com a interpretação errônea dessa mensagem como ‘oferta de arma’, os países com naves dos heptapodes começam a cortar comunicação entre si, algo que gera ainda mais medo e necessidade aparente de ação imediata contra os aliens.

Essa comunicação entre os países era algo que até então estava ajudando na empreitada de Louise e Ian.

“O problema de tentar se comunicar através de um jogo é que tudo se resumiria a ‘vitória e derrota’ e isso seria um problema”, aponta Louise, após descobrir que um dos outros países tentava se comunicar com os alienígenas através de jogos.

Não é apenas o conteúdo que importa, mas a forma, o contexto e o momento em que o discurso é apresentado. A linguagem não é transparente. 

No final do longa, o desfecho traz uma mensagem para reflexão a partir da hipótese Sapir-Whorf ao se compreender estrutura e sentido da linguagem escrita dos heptapodes.

Já que a forma de percepção do mundo e de seus fenômenos é influenciada pela linguagem, seria possível perceber o tempo de forma diferente, ou seja, enxergando o todo, sem começo ou final, a partir da compreensão de uma língua como a dos heptapodes?

E o que as pessoas fariam com essa habilidade?

Como menciona Louise em uma de suas últimas falas no longa, “Se visse sua vida toda, do começo ao fim, você mudaria alguma coisa?”.

Referências:

ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2001.

ORLANDI, E. P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez e Editora da UNICAMP, 2012 [1988].

PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. Campinas, SP: Pontes, 2019 [1969].

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1988 [1975].

18 comentários
  1. Marcos Henrique de Paula Dias da Silva

    Gostei bastante desse texto, realmente até então pensava que esse era só mais um filme de invasão alienígena, pretendo assistir pois acho que a verdadeira mensagem desse post só poderá ser entendida na íntegra após assistir o filme 🙂

  2. Pablo SJ Oliveira

    "O sentido de uma simples mensagem não é exato. Mesmo Louise tem dificuldades para interpretar o sentido, porque é a partir de sua língua que ela tenta entender a dos aliens" sugiro fazer uma correção do tem para "tendo". Mesmo Louise tendo dificuldades...

  3. Roberto Henry Ebelt

    Quando os nazistas interpretaram uma mensagem dos aliados sobre uma reunião dos chefes aliados em uma casa branca, eles imaginaram que seria em Washington, mas, na realidade, era em CASABLANCA no Marrocos e desistiram de atacar...

  4. Lúcia Medeiros

    Gosto muito desse filme. Já o vi 4 vezes. Gosto de pensar que o Diretor deu uma olhada em Saussure, Foucault e Derrida entre outros da chamada " virada linguística".
    Na verdade cheguei aqui a procura da ortografias "não lineares"...

  5. CareerSite-2022

    Eu vi alguns colegas bem irritados com isso, e tambem nao quero que este seja o aspecto cientifico legal que os nao-linguistas levem do filme, mas tambem este filme e literalmente sobre seres misticos que manipulam o tempo. Nao e uma combinacao perfeita, pois a hipotese Sapir-Whorf e mais sobre os efeitos de linguas especificas em pessoas de outra forma identicas, e Louise esta usando a linguagem dos heptapods mais como uma forma de tentar entender sua cultura.

  6. JorgeSeuJorge

    Na medida em que Louise vai tendo contato e compreendendo a linguagem alienígena ela também se transforma e começa a perceber o tempo sobre outra perspectiva.

  7. Junior

    correndo entre títulos dos filmes de ficção me deparei com este que causou curiosidade e me coloquei a assistir, inicialmente parecia sem conteúdo mas no final trouxe tanto conteúdo que tive assistir mais duas vezes para capturar os detalhes e as falas e realmente é surpreendente a aula de linguística, importancia da comunicação correta, e por fim a forma de pensar que um idioma qualquer contem em si mesmo como grau de inteligência, cultura e tradição inerentes.

  8. Junior

    Para quem, como eu, que já viveu experiência semelhante, de ter que morar em outro país com outro idioma, a Hipótese Sapir-Whorf é totalmente válida porque não bastou saber aquele idioma, tive que passar a entender como as pessoas pensavam e sua visão de mundo para formar as frases corretas. Apesar do espanhol ser falado em muitos países em cada país o espanhol tem sua característica consciente, estrutural e semântica ligada à cultura e tradição daquele povo onde é pronunciada divergindo de todos demais. Esta excelente experiência de vida da mais curiosidade de aprender outros idiomas que possuem extenso léxico e complexidade gramatical como português e espanhol pois outros idiomas telegráficos como inglês ou mandarim não tem nada de novo ligado ao povo daquele país onde é utilizado.

  9. Daniela

    Eu não intendi tipo por que as 12 naves alienígenas pousaram aqui na terra só para mostrar pra ela o futuro? tipo oq que tem a ver as 12 naves com o futuro dela

  10. Rose

    o que os alienígenas vieram fazer aqui a final? eu entendi que a mensagem principal foi avisar que precisariam de ajuda daqui a 3 mil anos e que ela estava vendo o futuro, assim ela poderia saber o número do japonês e ligar pra ele e pedir que se unissem para interpretar a linguagem deles e assim poderem se comunicar.

  11. GUILHERME FELICE GARCIA

    Adorei o filme, já assisti várias vezes, mas dessa vez assisti com um olhar na questão da linguagem e sua importância, sou professor de Sociologia e Filosofia e faço cá comigo algumas reflexões a cerca da linguagem e da comunicação como um todo, vendo o filme me deparei com as mesmas questões que você abordou nesse texto esclarecedor e vou atrás da HIPÓTESE SAPIR-WHORF, gostaria de trocar outras reflexões....

  12. Renato Ranzini Rodrigues

    Ainda não assisti, mas já achei fascinante a descrição. Essa relação entre tempo e linguagem lembra o impacto em minha mente quando descobri que a língua indígena aymara, dos Andes, enxerga o futuro em nossas costas, não na nossa frente. Por isso, segundo essa língua, sabemos o passado, pois estaríamos olhando para ele, e não o futuro, que estaria atrás de nós...

  13. Matheus

    Eu assisti esse filme pela primeira vez no cinema, na época já havia gostado, mas esse ano eu assisti novamente, e ele se provou uma obra extremamente fidedigna a realidade apesar do contexto de ficção. A experiência de assistir a mesma obra, mas 8 anos depois, com uma formação em psicologia e conhecimento sobre relatividade linguística, me permitiu conseguir entender a complexidade da obra como um todo. Um detalhe interessante é que o autor usa da teoria dos jogos para justificar as atitudes dos Heptapodes, quando a Louise fala de um "jogo de soma mais um" para sua filha, ela está se referindo a atitude de altruísmo dos Heptapodes em compartilhar sua "arma" conosco pois entende-se que é a melhor saída para ambos os lados, pois a partir do momento que eles sabem o futuro, sabem que dependem de nós.

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