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Filosofia e Divulgação Científica

É possível existir neutralidade de dados na ciência e na produção de conhecimento?

“Se uma árvore cai em uma floresta, mas ninguém está perto para ouvir, será que ela faz barulho?”

Essa questão filosófica bem difundida no senso comum parece ilustrar muito da função da documentação até recentemente. Algo que não estivesse registrado em algum meio/suporte que contivesse algum peso ou massa, ou seja, que fosse considerado um documento (FROHMANN, 2016), não exista institucionalmente.

Frohmann afirma que não pode haver informação sobre um tipo X, se o tipo X não existir:

“E se o tipo não pode existir sem documentação, então a documentação é necessária para que haja informação sobre ele”.

No entanto, uma das questões atuais no campo da ciência da informação não tem sido mais se certos termos, eventos, objetos, pessoas existem ou não, mas, existindo, será que o os diversos agentes antagônicos que lutam por status de autoridade, dão conta de abarcar a complexidade desses itens, ou ao menos, diminuir o ruído sobre eles em suas narrativas?

Em uma guerra de narrativas, muitas vezes, a perspectiva dominante sobre um determinado grupo ou evento pode ser pejorativa e essa perspectiva, registrada e perpetuada em livros e outros suportes, tem sido transmitida ao longo dos séculos colaborando com a formação de uma visão parcial sobre grupos minorizados que buscam subverter o status quo e que não costumam ter acesso à informação de maneira igualitária.

Isso porque, de acordo com alguns autores como Burke (2003), Erik-Mai (2016), Garcia Gutiérrez (2013), entre outros, tanto a forma como o conhecimento tem sido produzido e propagado ao longo da História como a forma como tem sido documentado, favorece a perspectiva de uma minoria dominante sob o argumento de que os sistemas de informação seriam neutros e universais.

Porém, Erik-Mai (2016), ao citar Hope Olson, defende que esse tipo de pensamento por si só seria excludente na medida que encerra qualquer possibilidade de debate e ação sobre o problema.

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Falamos mais sobre isso nos textos:

Nesse sentido, a impossibilidade de resolução de certos conflitos atuais relacionados à aquisição e à apropriação da informação, pode estar conectada ao fato de que, como um campo relativamente recente, a ciência da informação precisaria aceitar sua vocação como uma ciência inserida em um contexto pós-moderno.

Isso significa entender, entre outras coisas, que os processos de documentação, recuperação, distribuição e aquisição da informação não são, de forma alguma, imparciais.

Para Tálamo e Smit (2007), a busca por neutralidade e racionalidade do conhecimento por meio da distinção epistemológica entre sujeito e objeto “oculta, consequentemente, o caráter autobriográfico da ciência: oculta os trajetos do sujeito, da sociedade científica, dos valores e crenças compartilhados”.

Assim, ainda de acordo com Tálamo e Smit, desde a mudança da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento, a razão não tem sido suficiente para superar situações contraditórias cuja compreensão requer procedimentos que se utilizem de metodologias e teorias híbridas.

Para Garcia Gutierrez, o conhecimento e sua transmissão sempre foram atravessados pela colonização do pensamento, ou seja, permeados por valores hegemônicos que não favorecem a “organização de um pensamento emancipador” e para romper com essa lógica, ele propõe que seja realizado um processo de desclassificação do conhecimento.

O termo cunhado por Garcia Gutierrez para descrever um trabalho diário sobre a memória, o conhecimento, a identidade e a organização do conhecimento, visa a produção de um conhecimento aberto, heterogêneo, “heterodescolonizador” e que, acima de tudo, compreende as limitações de certas abordagens que se propõem universais, não as nega ou as desconsidera.

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Ao reconhecermos as limitações de certas abordagens para a interpretação eventos contemporâneos, aceitamos que a transdisciplinaridade é uma tendência não só no campo da ciência da informação, mas nas demais áreas lidam com questões sociais, antropológicas, políticas e culturais, afinal, a ideia de que seria possível abarcar todo o universo em um único sistema de classificação ou análise é pretensiosa.

Para ilustrar como a ideia da universalidade, racionalidade e neutralidade é na verdade arbitrária, Erik-Mai (2016) recorre a uma história ficcional de Borges que se tornou popular por trazer uma classificação divertida de “todos os animais” e que levou vários estudiosos, inclusive o próprio Foucault, a pensar sobre seus próprios sistemas de classificação, afinal, “uma classificação de animais pode parecer natural e homogênea em um determinado contexto e extremamente forçada e heterogênea em outro”.

Por fim, Olson (ERIK-MAI, 2016) afirma que o fato de os sistemas refletirem uma cultura dominante, faz com que pareçam neutros, objetivos e transparentes e isso tornaria a marginalização e a exclusão mais difíceis de serem detectadas.

Assim, entendendo o poder que a documentação pode exercer em um contexto social onde o acesso à informação ainda se dá de maneira desigual, as bibliotecas e seus sistemas poderiam ser agentes ativos na mudança de um mundo mais inclusivo, como acredita Hope Olson (ERIK-MAI, 2016), uma incumbência que a ciência da informação, ao compreender sua vocação de ciência pós-moderna, poderia aceitar prontamente.

Referências:

  • BURKE, P. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2003.
  • BURKE, P. Uma história social do conhecimento II: da Enciclopédia a Wikipédia. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2012.
  • ERIK-MAI, J. Marginalization and exclusion: unraveling systemic bias of classification. Knowledge Classification, v. 43, n. 5, 2016. Disponível em: http://jenserikmai.info/Papers/2016_festschrift.pdf
  • FROHMANN, B.. O caráter social, material e público da informação. In: FUJITA, M. S.L., MARTELETO, R.M., LARA, M.L.G. de. A dimensão epistemológica da Ciência da Informação e suas interfaces técnicas, políticas e institucionais nos processos de produção, acesso e disseminação da informação. São Paulo: Cultura Acadêmica Ed.; Marília: Fundepe Ed., 2008, p. 17-34]
  • GARCÍA GUTIÉRREZ, A.L. La organización del conocimiento desde la perspectiva poscolonial: itinerarios de la paraconsistencia. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 18, n. 4, p. 93-111. Disponível em: http://portaldeperiodicos.eci.ufmg.br/index.php/pci/article/view/1758
  • TÁLAMO, M.F.G.M. & SMIT, J.W. Ciência da Informação: pensamento informacional e integração disciplinar. Brazilian Journal of Information Science, v.1, n.1, p.33-57, jan./jul 2007. DOI: https://doi.org/10.36311/1981-1640.2007.v1n1.03.p33
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