(1950)
por Vinicius Santana, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do
Grupo de Pesquisa Filosofia Política – CAPES – Lattes
Vida e Obra
Conhecida por sua luta antirracista, feminista e atuação em Geledés — Instituto da Mulher Negra (fundado em 1988), Aparecida Sueli Carneiro nasceu em 1950 no bairro da Lapa, em São Paulo. Seu pai, José Horácio Carneiro, natural de Minas Gerais, veio a São Paulo ainda jovem em busca de melhores condições de vida, trabalhando posteriormente como ferroviário. Sua mãe, Eva Camargo Alves, natural de Campinas, migrou para a cidade pelo mesmo motivo, atuando como costureira até o casamento — apesar de ter cursado datilografia. Nessa época, havia um grande fluxo migratório de diversas regiões do Brasil para a cidade de São Paulo, que passava por um processo de industrialização acelerado, o que aumentou consideravelmente seu contingente populacional (cf. Santana, 2021, p.33). Primogênita de sete filhos, Carneiro passou quatro anos como filha única no bairro da Lapa. Conforme a família crescia, sua renda diminuía gradativamente (cf. Santana, 2021, p.43). Por isso, a família se mudou para a Vila Bonilha, em Pirituba, bairro periférico da cidade de São Paulo, onde mantinha um modo de vida “culturalmente proletário e gregário” (cf. Carneiro, 2004, p.3).
Apesar disso, o racismo era algo presente no cotidiano da família. Embora os pais de Carneiro não participassem de nenhuma organização militante antirracista, desenvolveram, ao seu modo, uma consciência racial e transmitiram isso a ela. Carneiro foi alfabetizada pela própria mãe e durante toda sua formação básica estudou em escola pública. Quando os primeiros casos de racismo apareceram em sua vida no ambiente escolar, — como quando a chamaram de “Pelezinho” —, a orientação pedagógica da mãe foi simples: “se apanhar na rua e voltar chorando, vai apanhar de novo” (Santana, 2021, p.43). Assim, Carneiro aprendeu a se defender das discriminações raciais que sofria, reagindo, muitas vezes, “no tapa”, o que a fez ser vista como “briguenta”.
Com 22 anos, trabalhou como auxiliar em um escritório na Secretaria da Fazenda de São Paulo, no centro da cidade. A vivência no centro a permitiu conhecer e participar das reuniões do Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN), entidade antirracista fundada pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira e pela intelectual Thereza Santos. No CECAN, Carneiro compreendeu que a questão racial era algo em torno da qual negros e negras se organizavam politicamente a fim de traçar uma luta antirracista contra o regime ditatorial.
Em 1973, Carneiro ingressou no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), ambiente em que havia pouquíssimos alunos negros. Na universidade, teve contato com o movimento estudantil e com integrantes do movimento negro. Rafael Pinto, Hamilton Cardoso, Vanderlei José Maria e Milton Barbosa eram, nos termos de Carneiro, “os Quatro Cavaleiros do Apocalipse” (cf. Carneiro, 2004, p.11). O contexto internacional que os militantes observavam, sobretudo o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e a revolução anticolonial dos países africanos lusófonos (Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau), fortaleceu seu espírito combativo de resistência ao racismo e de enfrentamento à ditadura militar. Como uma resposta às sistemáticas violências raciais, em 7 de julho de 1978, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, os Quatro Cavaleiros ajudaram a organizar um ato público contra o racismo, que inaugurou a criação do então chamado Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR). Um dos motivos do ato foi a prisão, tortura e assassinato do trabalhador negro Robson Silveira da Luz, no 44º Distrito Policial de Guaianases. Outro caso foi o impedimento de quatro garotos negros de treinarem no time infantil de vôlei do Clube de Regatas Tietê (cf. Santana, 2021, p.95). Por sugestão de Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, que estavam presentes no ato, incluiu-se o termo “negro” no nome do movimento, que depois permaneceu como Movimento Negro Unificado (MNU).
Ainda que Carneiro não fosse militante do MNU, ela esteve no ato como apoio de base. O contato com o movimento foi decisivo para a formação do pensamento antirracista de Carneiro, que entendeu a articulação entre racismo e capitalismo no Brasil. Porém, ela percebia que o sexismo era algo presente no interior do movimento. Se o MNU e os Quatro Cavaleiros trouxeram uma nova perspectiva de se pensar a questão racial no Brasil, aliando raça e classe, foi somente com Lélia Gonzalez que a questão ganhou contornos mais complexos com a articulação de raça, classe e gênero.
Depois de ouvir Gonzalez pela primeira vez, Carneiro afirma que “parecia que ela estava dentro do meu cérebro organizando tudo que me inquietava, tudo que eu sentia, que eu não conseguia formular […]” (Carneiro, 2004, p. 12). A partir disso, Carneiro aprofunda suas reflexões sobre a condição particular da mulher negra, e percebe a necessidade de construir sua militância articulando tanto a questão de gênero no contexto da luta antirracista, quanto a questão racial na luta feminista. Seu objetivo passou a ser a construção coletiva de organizações políticas cujo protagonismo fosse das mulheres negras.
Em 1980, Carneiro concluiu sua graduação e elaborou um projeto de mestrado sobre filosofia africana contemporânea. Através do conceito de etnofilosofia, do filósofo beninense Paulin Hountondji, sua ideia era pensar as formas de apropriação que alguns estudiosos fazem das tradições culturais negras (cf. Carneiro, 2004, p.19). Porém, nenhum docente do Departamento de Filosofia se dispôs a orientá-la, pois consideravam que não se produzia filosofia em África, mas somente “tradição oral” (cf. Santana, 2021, p.115). Sob o título de Leitura crítica da filosofia africana contemporânea, iniciou a pós-graduação no Centro de Estudos Africanos, mas não finalizou porque o diretor do Centro, simpatizante da ditadura, impunha suas convicções políticas ao ambiente. Depois, Carneiro recebeu o convite do professor Octavio Ianni, referência nos estudos de raça e mobilidade social, para cursar o mestrado em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contudo, ela sentiu que Ianni tinha interesse em enquadrar suas preocupações teóricas exclusivamente sob o viés marxista (cf. Santana, 2021, p.116). Não que ela considerasse impossível o diálogo com teorias marxistas — até porque teve envolvimento com membros do MNU que eram socialistas —, mas o sentimento de cerceamento intelectual era o que lhe incomodava. Essas dificuldades, somadas à urgência de atuar ativamente na militância, fizeram com que Carneiro abandonasse a pós-graduação.
Em 1983, Carneiro criou o Coletivo de Mulheres Negras, juntamente com Martha Arruda, Sônia Nascimento, Solimar Carneiro (sua irmã), Edna Roland e Thereza Santos, que seria indicada pelo Coletivo para compor o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo. Nesse momento, Carneiro elaborou um estudo pioneiro sobre a condição socioeconômica das mulheres negras na cidade de São Paulo e no Brasil com a pesquisa “Mulher Negra”, publicada no livro Mulher negra: Política governamental e a mulher [1985]. Embora o conceito de interseccionalidade não tivesse sido cunhado até então por Kimberlé Crenshaw (1989), a filósofa realiza uma análise interseccional para compreender as consequências da imbricação do racismo e do sexismo na vida das mulheres negras. Ao articular os dados de raça, cor, idade e gênero, Carneiro demonstrou que as mulheres negras, em relação às brancas e amarelas, encontram-se em uma posição de menor escolaridade, maior vulnerabilidade social e exclusão do mercado formal de trabalho.
Carneiro e Cristiane Cury, uma amiga que conhecera na universidade, redigiram um projeto de pesquisa sobre o candomblé para a Fundação Carlos Chagas. Carneiro já tinha contato com a religião, pois frequentava um terreiro em Taboão da Serra. Anos depois, ela se iniciaria no candomblé, descobrindo ser filha de Ogum, orixá guerreiro que é conhecido por sua força e coragem. A partir dessa pesquisa surgiu o texto “O poder feminino no culto aos orixás” [1990], no qual as autoras trazem um panorama da cosmovisão iorubá e do papel do feminino no interior desse pensamento africano, discutindo a figura da mulher no candomblé. Durante a pesquisa, Carneiro conheceu o Geledé, uma organização secreta feminina religiosa que realiza um festival anual de culto ao poder e à sabedoria das mães anciãs entre os iorubás, no qual homens e mulheres participam. Esse texto evidencia o esforço de Carneiro em resgatar referenciais histórico-culturais africanos para construir um feminismo negro brasileiro com matrizes africanas.
Após a posse de Thereza Santos, Carneiro integrou o Conselho Estadual, que efetivou uma série de reivindicações do movimento feminista, como a criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher em 1985 (cf. Santana, 2021, p.132). Em 1988, ano do Centenário da Abolição, Carneiro e outras companheiras fundaram a organização não-governamental Geledés — Instituto da Mulher Negra. O nome “Geledés” representa a intenção das fundadoras em marcar a tradição negro-africana basilar da organização de mulheres, que, apesar de permitir a presença masculina, possui lideranças femininas. A atuação de Geledés se desdobrou em importantes projetos de cunho social, político e cultural. Dentre eles, encontramos o Projeto “Geração XXI”, o Projeto “Promotoras Legais Populares” (“PLPs”) e o “Projeto Rappers”, que propiciaram formações político-culturais e ações afirmativas direcionadas à população negra e à juventude periférica. Este último, inclusive, marcou a aproximação do movimento negro organizado com o movimento hip-hop, que se consolidava na cidade de São Paulo, e gerou a revista “Pode Crê”, um veículo de comunicação centralizador e difusor da cultura hip-hop. Além disso, o Programa de Direitos Humanos de Geledés também elaborou o SOS Racismo, um projeto pioneiro de assistência e acompanhamento jurídico para vítimas de racismo, que foi reconhecido internacionalmente e serviu de inspiração para a criação de programas similares na América Latina.
Em 2001, houve a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas em Durban, na África do Sul. A “Conferência de Durban” reuniu representantes da ONU e de diversos países, dentre chefes de Estado, membros da sociedade civil e jornalistas. A delegação do Brasil era a maior da conferência e a equipe de Geledés estava completa, juntamente com lideranças indígenas e de outros movimentos sociais. Dentre as conquistas da conferência, destacam-se o reconhecimento da escravidão e do tráfico de africanos escravizados como crime contra a humanidade, e a recomendação de inclusão no currículo escolar sobre a história e a contribuição de africanos e afrodescendentes (cf. Santana, 2021, p. 230). A proposta que gerou mais polêmica e incômodo em determinados segmentos da sociedade brasileira foi a adoção de cotas para negros no ensino superior, que precisou esperar mais de uma década para tornar-se lei no Brasil (Lei 12.711/2012). A articulação das mulheres negras brasileiras organizadas foi decisiva para a implementação de políticas públicas de combate ao racismo e de promoção da igualdade racial.
Nos anos em que estava fora da academia, Carneiro não parou de escrever artigos, ensaios e textos de apresentação oral abordando as questões raciais, sociais e de gênero, os quais foram publicados em revistas científicas, jornais e livros. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil (2011) reúne 35 textos escritos pela filósofa entre 1999 e 2010 publicados, em geral, no Correio Braziliense. Dentre eles, Carneiro trata de diversos temas, como direitos humanos, mercado de trabalho, cotas, gênero, consciência negra global e igualdade racial.
Escritos de uma Vida (2020) também é uma coletânea de 18 textos que circularam em revistas, jornais, livros, fóruns e palestras. O livro contém as pesquisas pioneiras de Carneiro, “Mulher Negra” e “O poder feminino no culto aos orixás”. Ambos os livros evidenciam como Carneiro produziu filosofia em diferentes formatos e para públicos distintos, tendo interesse em se comunicar não só com a academia, mas principalmente com o público que não faz parte dela.
Em 1999, ela retornou à pós-graduação sob orientação de Roseli Fischmann na área de Filosofia da Educação, sendo direcionada diretamente para o processo de doutorado devido à qualidade de sua qualificação. Com base na experiência positiva que teve em uma disciplina sobre o pensamento foucaultiano, aplicou os conceitos de dispositivo e de biopoder ao domínio das relações raciais para compreender a dinâmica que as impulsiona. Depois de 18 anos de sua defesa, a tese de Carneiro, intitulada A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser (2005), finalmente é publicada sob o título de Dispositivo de Racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. (2023).
A obra encontra-se dividida em três partes. Na Parte I, “Poder, Saber e Subjetivação”, a filósofa forja o conceito de dispositivo de racialidade, que diz respeito às formas de subalternização e exclusão da racialidade negra. O epistemicídio — o assassinato da razão de pessoas negras promovido pelo colonialismo europeu — emerge como um elemento constitutivo do dispositivo que influencia as hierarquias raciais no campo educacional. Na Parte II, “Das resistências”, são apresentados os testemunhos de militantes antirracistas: Edson Cardoso, comunicador e articulador do MNU; Sônia Maria Pereira Nascimento, advogada e co-fundadora de Geledés — Instituto da Mulher Negra; Fátima Oliveira, médica e militante feminista e antirracista; e Arnaldo Xavier, poeta, membro do Cineclube Glauber Rocha. Por fim, na Parte III, “Educação e o cuidado de si”, Carneiro reflete sobre as formas que as resistências encontram para construir positivamente suas subjetividades. As resistências propõem uma ética renovada que, ao identificar o cuidado de si com o cuidado do outro, volta-se para a construção de um sujeito político que luta pela emancipação coletiva.
A filosofia de Sueli Carneiro está vinculada com a sua experiência de vida. Sua atuação militante evidencia como sua intelectualidade foi forjada organicamente a partir de um contato íntimo com o movimento negro, com o movimento feminista e, sobretudo, com o movimento de mulheres negras. Suas vivências enquanto uma mulher negra brasileira, de origem pobre, praticante do candomblé e militante feminista e antirracista informam a construção de uma filosofia que combate, simultaneamente, as desigualdades raciais, sociais e de gênero no Brasil.
Temas e Conceitos
A vasta produção intelectual de Sueli Carneiro é constituída por sua tese de doutorado, artigos, ensaios, capítulos de livros, falas em seminários, em fóruns e em audiências públicas. Em seus escritos, Carneiro aborda temas cruciais para se pensar o Brasil contemporâneo: o conceito de dispositivo de racialidade; o epistemicídio; o mito da democracia racial; a proposição de um feminismo negro brasileiro e a concretização dos direitos humanos.
- O Dispositivo de Racialidade
Em Dispositivo de Racialidade (2023), Carneiro busca compreender as múltiplas práticas pelas quais o racismo e a discriminação racial estruturam e se manifestam na sociedade brasileira. A partir das noções de dispositivo e biopoder, de Michel Foucault (1979; 2020), e da teoria do Contrato Racial, do filósofo afro-americano Charles Mills (1997), a filósofa desenvolve o conceito de dispositivo de racialidade. Para ela, a racialidade é “uma noção produtora de um campo ontológico, um campo epistemológico e um campo de poder conformando, portanto, saberes, poderes e modos de subjetivação cuja articulação constitui um dispositivo de poder” (Carneiro, 2023, p.44). O dispositivo é um conjunto heterogêneo que, dentre os seus diversos elementos, engloba leis, discursos, instituições, enunciados científicos, proposições filosóficas e organizações arquitetônicas. O dispositivo abarca, portanto, o dito e o não-dito.
A atuação do dispositivo de racialidade estabelece uma divisão no campo ontológico a partir da qual se constrói o Eu e o Outro, o Ser e o Não-Ser. Carneiro afirma que o dispositivo de racialidade, a partir do séc XVIII, possibilitou à branquitude se afirmar como Ser mediante a construção do negro como o Outro. Segundo a filósofa, “esse eu, no seu encontro com a racialidade ou etnicidade, adquiriu superioridade pela produção do inferior, pelo agenciamento que esta superioridade produz sobre a razoabilidade, a normalidade e a vitalidade” (Carneiro, 2023, p.31). O Eu se define negativamente para marcar sua diferença em relação ao Outro, sendo necessário que o Eu construa o Outro como Não-Ser para que ele próprio se afirme como Ser. Nesse sentido, a branquitude deslocou o negro para uma alteridade desumanizante, rebaixando-o ao estatuto do Não-Ser, de “coisa que fala” (cf. Carneiro, 2023, p.92). Por isso, o dispositivo de racialidade “também será uma dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, e a brancura será sua representação” (Carneiro, 2023, p.31). Assim, a brancura se torna sinônimo de humanidade, colocando-se como ideal de Ser e construindo para si um corpo frágil.
Embora o dispositivo de racialidade adquira contornos específicos a partir do séc. XVIII, Carneiro identifica que ele se constitui inicialmente no colonialialismo como um contrato entre brancos que funda a supremacia branca global. A filósofa argumenta que o contrato social abriga o contrato racial — conceito retirado de Charles Mills (1997) —, um contrato restrito aos racialmente hegemônicos que transforma os não-brancos em objetos de subjugação (cf. Carneiro, 2023, p.37). Sob o pretexto de um contrato social supostamente neutro, o contrato racial funda um Estado racial que, enquanto garante a igualdade e liberdade aos brancos (cidadãos plenos), legitima a violência contra os não-brancos, aprisionados no estado de natureza e considerados “selvagens”. O contrato racial emerge como um elemento estruturador do dispositivo de racialidade, que fundamenta um acordo de exclusão e subalternização dos negros e perpetua a branquitude em todos espaços de poder.
Em sociedades multirraciais com passado escravocrata, como o Brasil, a raça é um elemento estrutural que informa a formação das classes sociais (cf. Carneiro, 2023, p.21). O dispositivo de racialidade juntará as contradições de classe às de raça, transformando a pobreza, segundo a autora, em “condição crônica da existência negra, na medida em que a mobilidade de classe torna-se controlada pela racialidade” (Carneiro, 2023, p.58). Consequentemente, as pessoas negras ficarão paralisadas nas camadas mais baixas da sociedade, buscando, em geral, uma forma de ascensão social individualizada em detrimento de uma estratégia coletiva de emancipação. Essa forma de inclusão individualizada poderá ser efetivada quanto mais o indivíduo se desassociar das marcas físicas/simbólicas da negritude. Quanto mais se embranquecer, maior será a chance dele ser tolerado socialmente. Aqueles que não passam por tais procedimentos disciplinares do dispositivo de racialidade estarão, segundo Carneiro, entregues à lógica do biopoder.
A filósofa utiliza a noção foucaultiana de biopoder para compreender a política de morte implementada pelo Estado contra a população negra. Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, o filósofo camaronês Achille Mbembe trabalhava parcialmente na mesma ideia ao conceituar a necropolítica (cf. Santana, 2021, p.235). O biopoder é uma tecnologia de poder que, a partir do séc. XIX, volta-se à preservação da vida de alguns e ao abandono à morte de outros, cuja expressão reside na máxima “deixar viver e deixar morrer” (cf. Carneiro, 2023, p.66). Na lógica do biopoder, o racismo é um elemento determinante para legitimar o direito de matar do Estado, exercido por ação ou omissão. De um lado, o racismo insere uma divisão no campo biológico, criando “raças” e determinando quem deve viver e quem deve morrer. De outro, permite que haja uma relação positiva do tipo biológica com a morte do Outro — quanto mais o Outro morrer, mais sadia será a vida da raça considerada superior. Entende-se a morte não só como o assassinato direto, mas também indireto por meio da exposição à condições precárias de existência (como falta de saneamento básico, condições insalubres de moradia, etc.). A branquitude, então, é inscrita no registro da vida e a negritude, nos termos de Carneiro, “sob o signo da morte”.
O biopoder produzirá efeitos específicos, segundo Carneiro, de acordo com a articulação entre gênero e raça. No caso das mulheres negras, ele se manifestará através de tecnologias de controle de reprodução (negligências no atendimento hospitalar, violências obstétricas, ausência de tratamento adequado de pré-natal, etc.). No caso dos homens negros, através da pura violência produzida pela repressão policial (cf. Carneiro, 2023, p.61). Assim se configura um cenário de genocídio contra a população negra brasileira.
Quando o dispositivo de racialidade não possui intenção de disciplinar ou subalternizar, passa a atuar o biopoder para decidir quem deve viver e quem deve morrer (cf. Carneiro, 2023, p.65). No Brasil pós-abolição, o dispositivo se beneficiará do imaginário colonial para implementar procedimentos de subalternização e exclusão da população negra, considerando-a incapaz de acompanhar o processo de industrialização e promovendo o branqueamento populacional pelo estímulo à imigração de mão de obra europeia (ibid.). Portanto, o conceito carneiriano de dispositivo de racialidade sintetiza tanto os procedimentos disciplinares de assujeitamento da racialidade negra, quanto os distintos processos de vida e morte entre brancos e negros no Brasil (cf. Carneiro, 2023, p.16).
- Epistemicídio
Para Carneiro, o epistemicídio — conceito emprestado de Boaventura de Sousa Santos (1997) — é um elemento constitutivo do dispositivo de racialidade, que nomeia o processo de destituição da racionalidade, da cultura e da civilidade do Outro ao longo da modernidade ocidental. A filósofa centraliza sua análise no epistemicídio negro, considerando-o não só como uma negação dos saberes dos povos africanos empreendida pelo projeto colonial, mas principalmente como um processo persistente de produção da indigência cultural que influencia nas hierarquias raciais no campo da educação (cf. Carneiro, 2023, p.88). Ao rebaixar (ou “sequestrar”) a razão negra, o epistemicídio permite que os saberes africanos e afro-diaspóricos sejam invisibilizados e anula a posição do negro enquanto sujeito portador/produtor de conhecimento, transformando-o em objeto de conhecimento ao mesmo tempo em que consolida a supremacia intelectual branca.
Segundo Carneiro, “o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado, sequestrando a própria capacidade de aprender” (Carneiro, 2023, p.89). Reside aqui, para ela, a explicação para o fato de jovens negros liderarem a taxa de evasão escolar, o que permanece até os dias de hoje (representam 71,7% dos alunos que abandonam a escola, segundo dados do PNAD 2019, ver: “Jovens negros lideram evasão escolar”, 2021). Por terem sua autoestima intelectual comprometida e, muitas vezes, não possuírem condições materiais que os permitam dedicar-se exclusivamente ao estudo, jovens negros são sistematicamente expulsos do ambiente escolar, o que acaba por comprometer suas possibilidades de mobilidade social.
- O Mito da democracia racial
Enquanto o dispositivo de racialidade engendra formas de subalternização e exclusão da população negra brasileira, ele constrói uma narrativa para mascarar a desigualdade racial do país: o mito da democracia racial. Assim como Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, Carneiro se dedicou a desvelar o mito. Para a filósofa, “o discurso que molda as relações raciais é o mito da democracia racial. Sua construção e permanência até os dias atuais evidencia, por si só, sua função estratégica, sobretudo como apaziguador das tensões étnico-raciais” (Carneiro, 2023, p.50, grifos meus). Para justificar o mito, tem-se feito um uso político da miscigenação racial segundo o qual o intercurso sexual entre negros, brancos e indígenas seria um sinal da nossa tolerância racial. Esse argumento, para Carneiro, “omite o estupro colonial praticado pelo colonizador contra mulheres negras e indígenas” (Carneiro, 2023, p.52).
Além disso, a filósofa considera que a miscigenação tem se prestado historicamente ao embranquecimento da população por meio da instituição de uma “hierarquia cromática e de fenótipos”, em cuja base se encontra o negro retinto e, no topo, o “branco da terra” (cf. idem.). Aos intermediários, agregados na categoria “pardo”, é dado o benefício simbólico de estarem mais próximos do branco, criando a ilusão de uma melhor aceitação social dos mais claros em relação aos mais escuros, o que gera diversas formas de autodeclaração (“marrom-bombom”, “moreno”, etc.). Essas diferenciações, para a autora, acabam fragmentando a identidade negra e coibindo que ela se aglutine em um sujeito coletivo demandador de direitos (cf. Carneiro, 2023, p.53). Esse sujeito teria o poder de romper com o contrato racial em prol de políticas que garantam a equidade racial.
- Enegrecendo o Feminismo
O contato que Carneiro teve com o Movimento Negro Unificado e os “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, como afirmei anteriormente, foi decisivo para ela articular as questões de raça às de classe. Contudo, a filósofa já percebia que o protagonismo do movimento negro era majoritariamente de homens negros, que, embora fossem vítimas do racismo e da opressão de classe, tinham, de alguma forma, comportamentos machistas. O debate racial era conduzido pela figura política do homem negro, fazendo com que a imbricação de gênero com a raça não recebesse a devida atenção no interior do movimento e as mulheres negras ficassem excluídas do debate. Assim, o movimento negro não foi capaz, de acordo com Carneiro, de “pautar as relações de gênero no interior do próprio Movimento e, consequentemente, não vem redefinindo o papel da mulher negra nos projetos políticos […] nem na distribuição do poder nas instâncias de decisão […]” (cf. Carneiro, 2020, p.168).
Um exemplo disso é a crítica que Carneiro faz em “Gênero, raça, e ascensão social” [1995] a Joel Rufino, historiador e militante negro que, em um de seus artigos, comparou mulheres brancas a Monzas e mulheres negras a Fuscas. Além de reproduzir um padrão de beleza eurocêntrico, que valoriza as mulheres brancas em detrimento das mulheres negras, Rufino considera ambas as mulheres, segundo Carneiro, “como objetos de consumo ou ostentação. Meros adornos do status e poder de um homem” (Carneiro, 2020, p.94, grifos da autora). Essa coisificação das mulheres é resultado do único espaço de cumplicidade entre o homem negro e o homem branco: o machismo (cf. Carneiro, 2020, p.99).
Se o protagonismo do movimento negro era dos homens negros, o protagonismo do movimento feminista era das mulheres brancas. Ainda que sofressem com as violências de gênero, as mulheres brancas de classe média e alta reproduziam, de certo modo, a ideologia racista. Por sua posição de privilégio, essas mulheres não compreendiam a situação peculiar da mulher negra pobre, que se encontra na intersecção das opressões de raça, gênero e classe. Em “Mulher Negra” [1985], Carneiro afirma que o movimento feminista hegemônico generaliza uma identidade feminina “a femininos historicamente construídos de maneira diferenciada, isto é, [a generalização] apresenta às mulheres uma problemática uniformizada que aparentemente explica, resgata, padronizando experiências diversas” (Carneiro, 2020, p.48, grifo da autora).
O movimento feminista hegemônico acabou reproduzindo uma perspectiva eurocêntrica e universal do que é “ser mulher”, e omitindo a centralidade da raça nas hierarquias de gênero (cf. Carneiro, 2020, p.182). A própria ideia de “fragilidade feminina”, por exemplo, segundo a qual as mulheres são frágeis e devem ser protegidas pelos homens, não é compatível com a experiência histórica das mulheres negras no Brasil. Essas mulheres foram consideradas, sob a ideologia racista, naturalmente fortes, o que serviu como justificativa para sua escravização. Se observarmos o papel feminino na religiosidade afro-brasileira, notamos que, conforme assinala Carneiro em “O poder feminino no culto aos orixás” [1990], o candomblé permite à mulher “abrir um espaço de competição com o homem e a sociedade machista, que a rigor não lhe é dado. Apoiada nos orixás, ela justifica uma possível rejeição ao homem, com ele se confronta abertamente e […] afirma sua capacidade de superá-lo” (Carneiro, 2020, pp.84-85).
As pautas do movimento negro e do movimento feminista hegemônico não contemplavam totalmente as necessidades urgentes das mulheres negras. Para elas, segundo a filósofa, “a conjugação das discriminações de raça, sexo e classe implica em tríplice militância, visto que nenhuma solução efetiva para os problemas que nos aflige pode advir da alienação de qualquer desses três fatores” (Carneiro, 2020, p.55, grifos meus). Essa tríplice militância faz com que seja imperativo o combate simultâneo ao racismo, ao sexismo e à opressão de classe. Em oposição à perspectiva eurocêntrica do que é ser mulher, Carneiro resgata o poder feminino na ancestralidade africana e no candomblé para pensar um feminismo negro com raízes africanas. A mobilização das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro acaba, em suas palavras, “enegrecendo o feminismo” (Carneiro, 2020, p.198)
- Direitos Humanos: Por um universalismo concreto
O binômio “universal-particular” é alvo de disputa conceitual na Filosofia Ocidental desde a antiguidade. Os conceitos ganham novos contornos na filosofia carneiriana ao serem articulados com a questão racial. Carneiro extrai do pensamento de Martin Heidegger, em Ser e Tempo, o binômio “ôntico-ontológico” para abordar a relação entre racismo, universalidade e particularidade. Ôntico se refere aos entes particulares, e ontológico, ao ser enquanto tal. Raça, cor, cultura, etnia e religião estão na categoria do ôntico, pois dizem respeito às particularidades do ser. Já o ser humano está na ordem do ontológico, referindo-se à universalidade. O racismo reduz o ser à sua dimensão ôntica, à sua particularidade, que aprisiona o sujeito negro ao seu grupo específico e anula a sua dimensão ontológica, tornando sua humanidade incompleta (cf. Carneiro, 2023, p.19).
Em oposição, segundo a filósofa, “é a ideia de universalidade que emancipa o indivíduo e permite-lhe expressar sua especificidade” (ibid.). Essa afirmação de Carneiro, conforme assinala Frateschi (2023, p.385), é melhor compreendida se considerarmos outro texto, “Gênero e raça na sociedade brasileira” [2002]. Nele, a filósofa retoma a questão do universal e particular a partir de Aimé Césaire, que afirma haver duas possibilidades de se perder: por segregação encurralado na particularidade ou por diluição no universal. Segundo Carneiro, “a utopia que perseguimos hoje consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra” (Carneiro, 2020, p.184, grifos meus).
A filósofa reconhece que o universal hegemônico construído na modernidade ocidental, “o homem”, que detém a igualdade, liberdade e fraternidade como valores intrínsecos, não abarca todos os grupos sociais. Seguindo a lógica do contrato racial, ele exclui e anula a diversidade, garantindo tais valores somente aos brancos ao mesmo tempo em que desumaniza os não-brancos. Em oposição, a filósofa defende a construção de um universalismo capaz de abarcar e permitir a expressão da diversidade humana, que transforme a igualdade e a liberdade em valores concretamente universais. Valores que são decisivos para a democracia, mas que são colocados em xeque por ideologias autoritárias (neofascismos, neonazismo, fundamentalismo religioso, racismo, machismo e demais opressões). Para ela, são valores pelos quais se deve lutar e vigiar constantemente para conquistá-los e defendê-los (cf. Carneiro, 2020, pp.108-109).
A filosofia de Sueli Carneiro observa a subalternização e exclusão produzidas pelo racismo contra a população negra, mas sem deixar de lado as resistências que as pessoas negras realizam. Trata-se de uma filosofia que reivindica e defende a humanidade daqueles que foram desumanizados e objetificados pelo projeto colonial. Uma filosofia brasileira que defende a efetivação dos direitos humanos, a emancipação de todas as formas de opressão e a radicalização da igualdade e da liberdade para todos.
Referências Bibliográficas
Obras da autora
Carneiro, S. (2023). Dispositivo de Racialidade: A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. 1º ed. Rio de Janeiro: Zahar.
_________. (2005). A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Tese de Doutorado em Educação, na área de Filosofia da Educação, São Paulo: FEUSP.
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_________. (2019). Escritos de uma vida. São Paulo: Editora Jandaíra.
_________. (2004). “Sueli Carneiro – entrevista I”. Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (2h 55min). Entrevista 1. Disponível em: https://www.fgv.br/cpdoc/historal/arq/Entrevista1252.pdf
Obras sobre Sueli Carneiro
Frateschi, Y. (2021). “O pensamento feminista negro de Sueli Carneiro para além dos reducionismos de classe e gênero”. Boitempo. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2021/10/22/o-pensamento-feminista-negro-de-sueli-carneiro-para-alem-dos-reducionismos-de-classe-e-genero/>. Acesso em: 22 de fevereiro de 2023.
_________. (2023). “A filosofia prática de Sueli Carneiro”. In: Dispositivo de Racialidade: A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. Rio de Janeiro: Zahar.
Lobato, Danielle de Castro Silva. (2020). Contribuições de Sueli Carneiro para o Pensamento Decolonial, Feminista e Anti-racista Latino-americano. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre a América) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília (UnB). Distrito Federal.
Santana, B. (2021). Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro. São Paulo: Companhia das Letras.
Obras relacionadas
Foucault, M. (2005). Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
_________. (1979). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal.
_________. (2020). História da Sexualidade I – A Vontade do Saber. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Mills, C. W. (1997). The Racial Contract. New York: Cornell University Press.
Santana, B. (2020). A escrita de si de mulheres negras: memória e resistência ao racismo. Tese de Doutorado em Ciência da Informação – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo.
Outros materiais
Ariel, Freitas. “Jovens negros lideram evasão escolar”. Mobilidade Estadão. São Paulo, maio de 2021. Disponível em: <https://mobilidade.estadao.com.br/patrocinados/jovens-negros-lideram-evasao-escolar/>. Acesso em 27 de fevereiro de 2023.
Carneiro, S. (2022). Mano Brown recebe Sueli Carneiro. [Entrevista concedida a Mano Brown e Semayat Oliveira. Spotify Janeiro de 2022. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr?si=67c53e1879ca400f>. Acesso em 22 de setembro de 2022