“Não será obrigatória esta vacina e ponto final”, afirmou o Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) a seus apoiadores políticos, no último dia 19 de outubro.
Recente no discurso presidencial, mas presente no Brasil desde o início do século XX e no Reino Unido (nascedouro dos movimentos antivacina) desde meados do século XIX.
O questionamento sobre a obrigatoriedade da vacina evidencia um argumento recorrente no discurso antivacinacionista: o de que o Estado não tem o direito de interferir na saúde individual do cidadão.
Um pouco sobre a História da Vacina
O conceito de vacinação pode ser atribuído ao médico britânico Edward Jenner que em 1796 testou pela primeira vez a inoculação da varíola bovina em seres humanos.
O nome Vacina vem daí, uma vez que Jenner a chamava de Variolae vaccinae (versão em latim para “Varíola da Vaca”). O médico observou que as ordenhadeiras que ficavam em contato com as mamas das vacas eram, geralmente, imunes à varíola, o que o levou a levantar a hipótese de que, proveniente, elas eram protegidas da varíola (Smallpox, em inglês) pelo pus das bolhas da varíola das vacas (Cowpox) que recebiam (JENNER, 1988).
Ocorre que esse procedimento foi introduzido num contexto em que não havia métodos laboratoriais suficientemente desenvolvidos (estamos no final do século XVIII) para controlar a qualidade, tampouco explicar suas possíveis falhas.
As primeiras vacinas, por exemplo, foram ministradas inicialmente por transferência “braço a braço” e, posteriormente, pela produção na pele dos animais, em que a esterilidade bacteriológica era impossível.
Como não havia como identificar uma mostra de vacina que estivesse, por exemplo contaminada com alguma bactéria, vírus ou fungos, à época, identificou-se na literatura médica algumas doenças como erisipela, tuberculose, tétano e sífilis tendo sido causadas pelas vacinas.
Portanto, havia por parte daquela sociedade preocupações legítimas a respeito da validade de se vacinar e da “aventura” que isso significava, por melhores que fossem as intenções.
Segundo Ross (1967), a promulgação da Lei de Vacinação Britânica em 1840, embora não estabelecesse penalidades, foi a primeira incursão do Estado em nome da saúde pública naquele país).
Dessa data até 1907, o Reino Unido conheceu realidades diversas em termos de interferência do Estado em relação à vacinação, que foram do incentivo para vacinar os filhos, passando pela coerção com pena de multa e prisão, chegando à autorização de isenção da vacinação, mediante requerimento e autorização judicial.
Essas legislações causaram indignação em parte da população porque se sentia coagida a vacinar os filhos, podendo até ir para a prisão em caso de não pagamento da multa. Isso era uma afronta para os ideais liberais surgidos à época na Europa, gerou hostilidade e um violento movimento de oposição culminando com os grupos antivacinação (ROSS,1967).
A fundação da New England Anti-Compulsory Vaccination League (Liga de Vacinação Anticompulsória da Nova Inglaterra) em 1882 na Inglaterra, além dos movimentos antivacinas que vieram subsequentemente são derivados dessas revoltas que eclodiram no Reino Unido.
Em novembro de 1904 no Brasil, o Senador Ruy Barbosa de Oliveira, posicionou-se contrário à lei de vacinação obrigatória em um discurso no qual afirma que a mesma seria “uma lei morta” e que o Estado feria as liberdades individuais, cometia violência e exorbitava de suas funções constitucionais ao instituí-la.
Além disso, para o Águia de Haia, as vacinas eram possíveis condutoras da “moléstia ou da morte”. A referida lei, aliada à insatisfação de parte da sociedade com decisões políticas da época, deram origem à Revolta da Vacina, motim popular ocorrido entre 10 e 16 de novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil deixando ao menos 30 mortos, 945 pessoas detidas e 461 deportados para o Acre.
Nos dias atuais…
219 anos após a primeira vacina de Jenner, mesmo com os avanços da medicina, em 2015, na Itália, o partido de extrema-direita Movimento 5 Estrelas apresentou uma lei contra a vacinação, associando-a a doenças como leucemia e autismo. Dois anos depois, o Ministério da Saúde o responsabilizou pelo surto de sarampo ocorrido no país, cujos casos cresceram 230%, sobretudo em crianças.
O Governador de Fruili-Venezia Giulia, Massimiliano Fedriga, filiado a outro partido de extrema direita, a Liga do Norte, classificou a obrigatoriedade de vacinação como uma medida “stalinista”, defendeu a liberdade de escolha e a não imposição da vacina. Em março de 2019 foi internado com catapora e virou chacota mundial.
De volta ao Brasil de 2020, não é a primeira vez que o mandatário brasileiro se manifesta sobre o tema. Em 31 de outubro deste ano uma apoiadora fez um pedido ao presidente: “Bolsonaro! Não deixa fazer esse negócio de vacina, não, viu! Isso é perigoso!”.
Ao que ele responde sem cerimônia: “Ninguém pode obrigar a ninguém a tomar a vacina” (CASTRO, 2020).
No dia 01 de setembro a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) o órgão da Presidência da República, publicou em seu perfil oficial na Rede Social Twitter um post (Figura 3) com a frase dita no dia anterior pelo Chefe do Executivo.
No dia 03 de setembro, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou uma recomendação à Presidência da República pela retirada imediata de todos os materiais de comunicação que façam alusão à não obrigatoriedade de vacinação contra a Covid-19.
Porém, não só o conteúdo continuou disponível na web, como no dia 08 de setembro, numa cerimônia no Palácio do Planalto, o presidente voltou à carga e afirmou que “não pode amarrar o cara e dar vacina nele” (UOL,2020).
Não se sabe com qual intenção, mas, o discurso presidencial se contrapõe à sua própria atitude normativa, uma vez que na Lei nº 13979/20, assinada em fevereiro de 2020 respalda, em seu artigo 3º, a vacinação compulsória contra a Covid-19:
Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos. (BRASIL, 2020: art. 3º. Acesso em 22 out.. 2020)
Segundo Organização Mundial da Saúde (OMS), a hesitação vacinal é a relutância ou a recusa em vacinar ou em ter seus filhos vacinados contra doenças contagiosas, apesar da disponibilidade de vacinas.
Em 2019, a entidade incluiu essa prática entre as dez maiores ameaças à saúde global para a humanidade e criou um grupo consultivo para identificar as principais razões pelas quais as pessoas optam por não vacinar.
Embora complexos, eles podem ser resumidos a três:
- Complacência (baixa percepção dos riscos das doenças preveníveis por vacinas e da importância das vacinas);
- Inconveniência no acesso às vacinas (disponibilidade e acessibilidade das vacinas e dos serviços de saúde);
- E falta de confiança (nos profissionais de saúde, nas vacinas e sua eficácia).
Estaria o Direito Individual acima do Direito Coletivo?
É uma discussão tão antiga antiga quanto a vacina. Hoje, no contexto de uma sociedade capitalista, concordo com a OMS que, apoiada em dados, informa que “a vacinação é uma das formas mais econômicas de evitar doenças – atualmente evita 2 a 3 milhões de mortes por ano, e mais 1,5 milhão poderiam ser evitadas se a cobertura global de vacinações melhorasse” (OMS, 2019).
Por outro lado, se nem o apelo econômico sensibilizar os governantes por vidas humanas, vamos acabar por dar razão àqueles que acreditam que a Necropolítica é uma opção consciente por parte de alguns governos.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Lei nº 13.979. Brasília. 06 fev. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm Acesso em 22 out. 2020.
CARVALHO, Daniel; URIBE, Gustavo; CANCIAN, Natália. Não será obrigatória esta vacina e ponto final, afirma Bolsonaro sobre Coronavac. Folha de S. Paulo. São Paulo. 19 out. 2020. Disponível em: https://folha.com/1ye5j3ar Acesso em 22 out. 2020.
CASTRO, Grasielle. ‘Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina’, diz Bolsonaro a apoiadora. The Huffington Post Brasil. 01 set. 2020. Disponível em https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaro-obrigar-vacina_br_5f4ea302c5b69eb5c0357e3b. Acesso em 22 out. 2020.
FERRAZ, Lucas. Movimento antivacina: como combater essa onda que ameaça sua saúde? Revista Galileu [online]. Rio de Janeiro. 02 out. 2019. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2019/10/movimento-antivacina-como-combater-essa-onda-que-ameaca-sua-saude.html Acesso em 21 out. 2020.
FREIRE, Leonidas. Guerra Vaccino-obrigateza!. O Malho. Rio de Janeiro. 29 out. 1904. Acervo da Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz. Disponível em: http://cienciaviva.org.br/index.php/2020/04/05/breve-historia-do-movimento-anti-vacina/ Acesso em 13 set. 2020.
GILLRAY, James. The Cow Pock or the Wonderful Effects of the New Inoculation. Wellcome Collection. 1802. Disponível em https://wellcomecollection.org/works/jh8pftqz/images?id=b3zbs6t3 Acesso em 11 set. 2020
JENNER, Edward. An Inquiry into the Causes and Effects of the Variolae Vaccine. In: BUCK, Carol; LLOPIS, Alvaro; NÁJERA, Enrique; TERRIS, Milton. The Challenge of Epidemiology: Issues and Selected Readings. Pan American Health Organization. v. 505, p. 31, 1988.
MENDONÇA, Ana. Bolsonaro sobre obrigatoriedade da vacina: ‘Não pode amarrar o cara e dar vacina nele’. O Estado de Minas. Belo Horizonte. 08 set. 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/09/08/interna_politica,1183567/bolsonaro-nao-pode-amarrar-o-cara-e-dar-vacina-nele.shtml Acesso em 22 out. 2020.
MIGALHAS – UOL. “Lei da vacina obrigatória é uma lei morta”, disse Rui Barbosa contra vacina de doença mortal do século XX. 15 jul. 2020. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/330685/lei-da-vacina-obrigatoria-e-uma-lei-morta—disse-rui-barbosa-contra-vacina-de-doenca-mortal-do-seculo-xx Acesso em 22 out. 2020.
OMS. Ten threats to global health in 2019. Organização Mundial da Saúde. Genebra. 19 jan. 2019. Disponível em: https://www.who.int/news-room/spotlight/ten-threats-to-global-health-in-2019 Acesso em 21 out. 2020
PODER 360. Bolsonaro volta a afirmar que vacina contra covid-19 não será obrigatória. 20 OUT. 2020. https://youtu.be/Ec56SV8bPGs
ROSS, Dale-L. Leicester and the anti-vaccination movement, 1853-1889. Transactions-The Leicestershire Archaeological and Historical Society. Leicestershire Archaeological and Historical Society, v. 43, p. 35, 1967. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/11636858/ Acesso em 20 abr. 2020
TUCKER, Jonathan B. Scourge: the once and future threat of smallpox. Grove Press, 2002. Disponível em: https://bit.ly/33oAXNK Acesso em 11 set. 2020
UOL. Bolsonaro volta a dizer que não pode obrigar ninguém a tomar vacina do coronavírus. 08 set. 2020. Disponível em; https://youtu.be/E4Q9djjtSkM; Aceddo em 22 out. 2020.