Por Paulo Andreetto de Muzio
O ambientalista Davi Moretti sofreu um atentado e passou meses em coma lutando pela vida em um leito de UTI. O mandante era um empresário e o crime foi executado por um miliciano. Você pode até não gostar de telenovelas, mas há de reconhecer que a narrativa trazida por Amor de mãe constituiu uma poderosa metáfora para o momento em que vivemos em nosso país.
Às vésperas do aniversário do Golpe de 1964, que instaurou a ditadura militar no Brasil, o período de instabilidade (política, econômica, sanitária, moral…) na virada de março para abril nos deixou bastante apreensivos.
Veículos de comunicação noticiaram, em março, a saída da pesquisadora Larissa Mies Bombardi do país. O motivo: ela está sendo perseguida por realizar pesquisa sobre agrotóxicos.
Publicação de impacto
Doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), Larissa publicou em 2017 o Atlas “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia”. No ano de 2019 o material foi publicado em inglês na Europa.
O Atlas mapeia o uso e os impactos dos agrotóxicos no Brasil, estado a estado da federação. A publicação traz dados como a circunstância da intoxicação (uso habitual, uso acidental, ambiental ou tentativa de suicídio), bem como números de envenenamento por sexo, faixa etária, grau de escolaridade e grupos étnicos-raciais. Mostra como indígenas estão vulneráveis a essa prática de uso de veneno na agricultura, assim como crianças e bebês. O Atlas também mapeia as mortes por agrotóxicos e o trabalho escravo no país.
Como colonialismo pouco é bobagem, também aparecem na publicação os agrotóxicos mais vendidos no Brasil, sendo que o 3º e o 7º colocados são proibidos na Europa. E mais do que isso, a autora levanta os commodities (café, soja, celulose etc.) nos quais esses agrotóxicos são utilizados e que são exportados para os 28 países membros da União Europeia. Aí o colonizador pira.
Em Carta Aberta aos Colegas do Departamento de Geografia da USP, Larissa conta sobre as intimidações sofridas por personalidades e instituições do agronegócio, principalmente após a maior rede de supermercados orgânicos da Escandinávia boicotar produtos do Brasil após o lançamento do Atlas em Berlim. A pesquisadora também relata um assalto a sua casa em que o notebook com dados de sua pesquisa foi roubado.
Não é de hoje
Monica Lopes Ferreira, imunologista que, assim como Larissa na USP, celebra mais de três décadas de atuação em pesquisa científica no Instituto Butantan, também sofreu retaliações ao pesquisar agrotóxicos.
Em 2018, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ela estudou 10 tipos de agrotóxicos e demonstrou que não há doses seguras para o uso de nenhum deles. A pesquisa repercutiu, inclusive entre os abutres. Foi então que a direção do Instituto Butantan tirou o * da reta e boicotou a pesquisa. Monica foi proibida de submeter novos projetos de pesquisa por seis meses. Ela entrou na justiça para reverter a situação.
Até a ministra da agricultura a contestou publicamente. Curiosamente, a ocupante da pasta, Tereza Cristina, coleciona apelidos como Musa do Veneno, Rainha do Veneno… e quando não tem veneno no meio é Senhora do Desmatamento.
Tanto Monica quanto Larissa foram criticadas por um político tóxico chamado Xico Graziano, ex-tucano, atualmente bolsonarista, vinculado ao agronegócio, e que na década de 1990 foi capa da Veja e ganhou o apelido de Corvo.
Não é de hoje mesmo
Pegando o DeLorean e voltando um pouquinho mais no tempo, a década de 1950 foi marcada pelo início da Revolução Verde. Esse foi o nome que deram a um processo de incorporação das inovações tecnológicas no campo que, segundo o lobby dos grandes produtores rurais, tinha como objetivo aumentar a produção de alimentos e acabar com a fome no mundo. Mas a gente sabe que eles queriam mesmo era aumentar seus lucros a qualquer custo. Um produto muito popular naquele período era o DDT (diclorodifeniltricloroetano), que produzia resultados a curto prazo e era utilizado tanto em grandes lavouras quanto dentro de casa para pulverizar insetos. O produto foi tão POP! que temos em nossa língua o verbo dedetizar para definir o ato de fazer a desinfestação de insetos. O produto é até citado em música de Raul Seixas: Mosca na Sopa, de 1973.
Em 1962, a estadunidense Rachel Carson mexeu nesse vespeiro. Ela era bióloga marinha aposentada do governo, mestre em zoologia e escritora de livros de divulgação científica. Sua quarta obra, Primavera Silenciosa, denunciava os problemas do uso indiscriminado de pesticidas sintéticos. A autora trazia uma linguagem acessível com exemplos da literatura científica e depoimentos de especialistas. Mas nem isso e nem seu currículo foram suficientes para que ela evitasse ser perseguida.
Os fabricantes de agrotóxicos (inclusive o do DDT, que prefiro nem mencionar o nome, mas que de santo não tem nada) se manifestaram agressivamente, ameaçaram processar a editora da publicação, fizeram paródia irônica do livro de Rachel e investiram em propaganda ressaltando os benefícios de seus produtos.
A mídia comprou a causa dos anunciantes. A revista Time chamou o livro de “injusto, unilateral e histericamente superenfático”, acusou Rachel de assustar o público com “palavras atiçadoras de emoções”, e alegou que seu texto estava “simplificado demais e totalmente cheio de erros”. Muitos dos ataques eram a sua pessoa e buscavam retratá-la como uma mulher desequilibrada.
A Associação Médica Americana, em seu boletim semanal, informou sobre como obter um “kit informativo”, compilado pela Associação Nacional de Químicos Agrícolas, para responder perguntas provocadas pelo livro.
O presidente John F. Kennedy convocou um comitê científico para avaliar a veracidade do livro. Muitos cientistas se posicionaram. Além de focarem nas questões de gênero, atacaram a credibilidade de Carson por ela não ter afiliação institucional com nenhuma universidade ou instituto de pesquisa. A retrataram como uma naturalista amadora.
Isso aconteceu há algumas décadas lá nos Estados Unidos e é considerado um momento de ruptura e um dos marcos do ambientalismo no mundo, mas no Brasil parece que sempre estamos um pouco atrasados. Batendo um Google, ainda hoje não é difícil encontrar em nossos veículos de comunicação articulistas pró-veneno criticando a obra de Rachel Carson. A Hungria proibiu a utilização do DDT em 1968, a Noruega e a Suécia em 1970 e a Alemanha e os Estados Unidos em 1972. No Brasil, isso aconteceu apenas em 2009. (Lei nº. 11.936 de 14 de maio de 2009) E longe de mim dar uma de vira-lata, porque colonizador não quer comer veneno, mas não liga se o colonizado come.
Se quisermos um meio ambiente com aves dispersoras de sementes, insetos polinizadores e seres humanos cumprindo seus papeis vivos, saudáveis e não silenciados, temos que nos solidarizar com essas mulheres que vêm enfrentando adversidades para construir o conhecimento neste sentido. Por isso força Larissa, força Monica, força a todas que produzem pesquisas relevantes que embasam a luta por ecossistemas mais equilibrados e uma sociedade mais justa.
Abaixo, deixo algumas referências citadas aqui e alguns materiais para para quem quiser saber mais sobre o assunto, incluindo um vídeo da Rita Von Hunty que está em total sincronia com a nossa discussão:
- BOMBARDI, Larissa Mies. Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. São Paulo: FFLCH – USP, 2017.
- CARSON, R. Primavera Silenciosa. São Paulo: Gaia, 2010.
- EDWARDS, G. The lies of Rachel Carlson. 21st century Science & Technology Magazine. Summer, 1992.
- PEREIRA, E. M. Rachel Carson, ciência e coragem. Disponível em: <http://www.cienciahoje.org.br/revista/materia/id/658/n/rachel_carson,_ciencia_e_coragem>. Acesso em 14 mar. 2021.
- STOLL, M. Rachel Carson´s Silent Spring: a book that changed the world. Environment and Society Portal, Virtual Exhibitions 2012, n. 1. Disponível em: <http://www.environmentandsociety.org/exhibitions/silent-spring/overview>. Acesso em: 14 abr. 2021.
- WILLIAMS, Terry. O espírito de Rachel Carlson. Revista ECO-21, edição 165. Tricontinental Editora: Rio de Janeiro, 2010.
Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.
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