Criar uma lei de proibição do trote universitário é a solução para esse problema histórico?

Uma proposta de lei tramita atualmente pelo senado, em que propõe-se punições para universidades que permitirem o trote universitário. Propostas como essa já existem? Elas conseguem superar esse problema?

Não é nenhuma novidade que o trote universitário é um problema para as instituições de ensino superior. Desde a reprodução de atos racistas da Ku Klux Klan (uma das principais organizações de práticas racistas dos EUA) até casos de mortes, todo início de ano letivo nas universidades brasileiras existe a tensão de algum caso de violência vinculada ao trote apareça na mídia. Ao analisar <a href=”//www.blogs.unicamp.br/pemcie/2018/06/19/historia-historicamente a sua existência, é possível rapidamente compreender como ele funciona e toda a sua estrutura de violência e hierarquização do poder.

Nessa perspectiva, surge a proposta de lei nº455, de 2023, redigida pelo senador Jorge Kajuru (PSB/GO), propondo a proibição da atividade do trote em universidades públicas brasileiras. O texto inicial do projeto de lei propõe que:

“Proíbe a realização de atividades de recepção de novos estudantes em instituições de
educação superior nas condições que especifica” (Trecho PL nº455/2023)

Ao primeiro momento, o texto possibilita uma interpretação errônea sobre as relações de recepção nas universidades, aglutinando todas as atividades de acolhimento em uma única categoria. Porém, no desdobramento dos artigos, pode-se compreender melhor a proposta.

PL 455/2023
Texto do PL 455/2023

Portanto, o projeto é claro em impedir o trote violento e abusivo, com sanções administrativas contra os responsáveis, sejam eles estudantes ou funcionários. A novidade aqui, que sempre foi tema de discussão, é a inserção dessa lei para trotes fora das dependências da universidade, mesmo que ainda seja a prioridade. Antes de analisar de forma aprofundada esse projeto, podemos nos debruçar nas atuais formas institucionais de proibição dessa prática já existentes no Brasil.

Formas atuais de impedir o trote violento no Brasil.

O poder público e as universidades brasileiras começaram a se debruçar de fato no problema após do chocante caso do assassinato do jovem Edison Tsung Chi Hsueh dentro do campus da USP em São Paulo, em 1999, caso que até hoje a família busca por justiça.

Ainda no mesmo ano, a USP criou uma portaria interna de proibição de toda forma de trote no interior da universidade. A Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP, também instaurou internamente, em 1999, medidas de proibição do trote nos espaços da universidade. Em uma esfera legislativa estadual, o governo do Estado de São Paulo também promulgou uma lei de proibição do trote violento nos espaços universitários. 

Na tentativa de impedir essas práticas, atividades internas, principalmente nessas duas universidades, foram organizadas e continuam anualmente. Essas atividades são compostas por recepções institucionais organizadas por estudantes, telefones de denúncia, campanhas e panfletos contrárias ao trote universitário. 

Portanto, cabe o questionamento: o trote foi solucionado, certo? Conseguimos combater a violência e a humilhação causada por essa prática? Infelizmente, a resposta está bem longe de positiva. 

A reorganização territorial do trote

É mais do que óbvio que o trote continuou sendo um problema no meio universitário brasileiro. A questão que é a prática se adaptou às novas proibições de locais de realização. As festas de recepção que geralmente aconteciam dentro das próprias universidades, migraram para as repúblicas e espaços de festa. Assim, toda a estrutura de violência, de humilhações e agressões perseveraram em outros espaços, afastados dos espaços universitários oficiais, sendo principalmente feitos em repúblicas, chácaras e festas.

Dessa maneira, pode-se pensar que pelo menos a coação e as formas de obrigar os ingressantes de participar do trote fossem reduzidas. Contudo, nem esse resultado foi obtido, pois as formas de excluir aqueles que não participavam ficaram mais potentes, excluindo quem não participava de residências médicas, vagas de estágio, caronas, grupos e atuações universitárias de todos os tipos. 

Coloca-se assim uma contradição de formas de se interpretar e combater o trote universitário, já que a proibição legal não surtiu efeitos desejados. Aliás, surtiu um efeito problemático de tirar a responsabilização do trote das instituições, já que a violência acontecia externamente aos espaços universitários, criando uma zona cinzenta jurídica. 

Nesse caso, pode-se novamente refletir que a atual tentativa de se proibir o trote é inválida e não deveria existir?

Vale a pena proibir o trote universitário?

Sim, sempre vale a pena criarmos formas de inibir a violência, a agressão e a humilhação de jovens universitários. O PL nº455/2023 cria uma nova forma de interpretar a responsabilização do trote, citando a participação das instituições universitárias também na inibição do trote em ambientes externos ao dos campi. Posteriormente, a partir de sindicâncias e punições (que foram muito leves e brandas para o acontecido), o trote teve uma diminuição na UNESP em Botucatu, principalmente de seus aspectos mais tradicionais. 

Todavia, novamente, não é a solução final e que vai nos livrar dessa problemática. As raízes das relações entre estudantes e a justificativa da integração com jovens em ambientes completamente novos são muito fortes para criar uma mentalidade de pertencimento equivocado. Novamente, acredito que seja essencial uma legislação clara e objetiva que iniba e principalmente puna quem pratica trote violento. Muito se tem atualmente na tentativa de inibir, pouco se tem nas punições daqueles que o praticam. 

Portanto, o que precisamos sempre, enquanto espaço universitário, é reconquistar o território com pertencimento amplo, diverso, múltiplo e acolhedor. As raízes racistas, as práticas excludentes e as agressões de gênero que o trote usa como base não podem vencer e perpetuar seu discurso dentro dos espaços estudantis da universidade pública. Para isso, punição ao trote violento, espaços de diálogo e recepção, e possibilidade de corpos como eles são, sem marcas e violências do trote. 

Para saber mais:

Folha de São Paulo, 2015, UNESP apura apologia à Ku Klux Klan em trote da faculdade de medicina. 

Estadão, 2015, Relembre casos de estudantes mortos e feridos durante trotes e festas em universidades.

SENADO, 2023, Projeto de Lei 455 de 2023

UOL, 2020, Tragédia na USP: Há 21 anos morria o calouro Edison Tsung Chi

Estado de Minas, 2019. Morte na USP faz 20 anos e mãe pede justiça.

Assembleia de SP, 1999, Lei 10.454.

UNESP, 2015, Sobre trote em 2013 e 2014 na UNESP de Botucatu.

USP, 2023, Manual do Calouro apresenta a USP para novos ingressantes

Sobre Matheus Naville Gutierrez 12 Artigos
Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*