
Sugestão para escutar enquanto lê
Sempre que eu vejo notícias como as desta semana, não há como não pensar em como eu – bem como várias amigas e conhecidas – saíram vivas de relações violentas. Nesta quinta-feira, 30 de julho, vimos repetidamente as notícias do ex-jogador de basquete que agrediu sua companheira com 61 socos no rosto e que responderá por tentativa de homicídio. No dia 28 de julho, uma mulher foi morta pelo ex-marido, em São Carlos, na presença de seus dois filhos.
A violência contra a mulher, neste patamar, se configura exatamente dentro deste contexto de destruição da nossa existência – após tudo o mais já ter sido tirado – ou da tentativa de ter tirado – de nós.
Para quem agride, nada nunca é o suficiente.
Não basta ceder, calar, obedecer, mudar comportamento. Nosso corpo, enquanto estiver existente, em relações violentas, será a fronteira a ser vencida e aniquilada.
Mas, o que é afinal Violência contra a mulher?
Segundo as Nações Unidas, o termo “Violência contra a mulher” é “qualquer ato violento baseado no gênero, que resulte, ou possa de resultar, em danos físicos, sexuais, psicológicos ou sofrimento para as mulheres, incluindo a ameaça de praticar tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, seja em ambiente público ou privado” (Tradução livre, minha). Este conceito está na Declaração para a Eliminação de Violência Contra a Mulher, proclamada em 1993.
Sempre que é noticiada uma violência extrema contra uma mulher, há uma estranha comoção que leva parte da sociedade a se perguntar de que modo isso foi possível de acontecer e como esta mulher “ainda” estava ao lado do sujeito que a espancou. Também surgem explicações estapafúrdias sobre surtos, ataques e outros transtornos aleatórios, que nos fazem pensar sobre o quanto supostos surtos encontram frequentemente corpos de mulheres para descarregar descontroles.
Situações de violência são extremamente complexas e não existem respostas simples para o absurdo vivenciado. Mas há julgamentos simplistas – sempre e toda a vez. Julgamentos que nos fazem pensar se efetivamente não é nossa a culpa de termos nos submetido e vivenciado aquela violência.
E, acredite, prezado leitor, você conhece muitas e muitas mulheres que já sofreram violência como essa – inúmeras vezes, a tal ponto de naturalizarmos esse sofrimento e realidade, tomarmos como parte de nossa rotina, dentro e fora de casa. Isso inclui, claro, eu.
A violência contra a mulher não é apenas essa brutalidade cometida contra nosso corpo, a ponto de nos desfigurarmos dentro de um elevador de tanto apanhar. Não é uma conversa no celular, nem o pedido de separação, não é a roupa curta, tampouco o elogio do amigo. Não é o esquecimento do dever para o marido, nem o cansaço do trabalhador no fim do dia, tampouco o estresse do empresário pelo excesso de preocupações. A violência é mais minuciosa, perversa e absolutamente cotidiana e aceita socialmente.
Essa violência é antecedida de muitas outras violências, que não são isoladas, nem se limitam a uma só pessoa. É fato disperso e aprendido, como parte do cotidiano, que coloca alguns corpos, alguns sujeitos, algumas identidades, como aquelas que podem e devem ser corrigidas, objetificadas, desumanizadas: destituídas do direito de existir.
Ideias genéricas não aleatórias – nem anedóticas – de violências
Sabe a ideia repetida inúmeras vezes em almoços de domingo, pelo seu tio/pai/avô/primos – aquele que é um “homem do seu tempo”, reconhece? Eu sei que tens um assim por aí – de que as mulheres da própria família são vagabundas, vadias, putas, pois não se deram o respeito.
O que é se dar ao respeito? Ora, não desejar, não sentir prazer, não sentir, não falar. Mulher é vagabunda por ousar sentir e desejar como (ou mais que) homens desejam, sentem e vivem. Parece até bobo dizer que a concepção de “vagabunda” é violência. Todavia faz parte desta destituição de que somos pessoas e corpos que desejam, tem fome e sede de vida, de prazer, de afeto.
E a frase “vai sair vestida assim?”; “mas também vestida assim queria o quê?”. Desde que nascemos vamos aprendendo – em casa, na escola, na igreja, na família, em grupos de amigos, etc. – que existe um lugar, uma vestimenta, uma conduta a ser seguida. E há alguém para nos guiar, em quem devemos confiar, abrindo mão dia após dia, de quem somos e de onde viemos, para sobreviver em uma sombra. Isoladas e sem entender como chegamos até ali.
Sabe aquela outra ideia que escutamos muitas vezes de modos diferentes “mulher minha não sai sozinha” (ou derivados dessa frase)? Sim. Também faz parte dessa composição de violência contra mulheres. Objetifica, destitui de vontades, direitos, autonomia. Violência, por coerção ou retirada de condições de liberdade, nos isola e corta contatos. Reduz, inclusive, possibilidade de outras pessoas perceberem riscos e vulnerabilidades – se nunca estamos sem quem nos destitui de direitos, quem perceberá quando nosso corpo se apagar?
Parece exagero, querer ser em uma cultura que nos nega existir
Tanto em relatórios públicos, quanto na literatura científica, há dados contundentes não apenas da complexidade da questão da violência doméstica e de gênero. Se olharmos para a violência última – física e com risco de morte – parece sempre inconcebível chegarmos em tamanha atrocidade.
Mas sem olhar para esta diversidade de fatores, buscando intencionalmente modificá-los, não há como reverter estes dados brutais em nossa atualidade.
Segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM), de 2025, no Brasil, 71,6% dos casos de violência contra mulheres de 20 a 59 anos aconteceram dentro de casa em 2023. De todos os registros, 60,4% das violências são contra mulheres negras ou pardas, 37,5% contra mulheres brancas. A violência contra mulheres encontra em corpos negros seu maior alvo – e descaso. Somente em 2023 foram 302.856 casos registrados de violência doméstica, sexual e/ou outras formas de violência contra mulheres. Para se ter uma ideia, isso equivale a quase 830 registros por dia.
Esta violência é perpetrada majoritariamente por pessoas conhecidas da vítima: companheiros e ex-companheiros somam a imensa maioria dos casos (67%). Em apenas 1,5% dos casos a violência é cometida por desconhecidos. Falando em números, se tomarmos o exemplo de 830 registros em um dia – 830 mulheres agredidas e que notificaram o sistema público – teremos 12 agressores que não conheciam as vítimas e 556 agressores que conheciam intimamente (foram ou são companheiros).
Não há espaço seguro dentro de nossas casas, quando quem é coercitivo conosco são supostos companheiros cotidianos. Considerando que a violência doméstica não acontece “do nada”, tampouco “do dia para a noite”, mas é construída cotidianamente, nunca deve ser vista como algo isolado.
A violência doméstica contra a mulher pode ser analisada como uma forma de tortura, quando se considera sua sistematicidade e as condições em que se realiza. A violência doméstica vai além da agressão física; ela inclui violência psicológica, sexual, patrimonial e moral, que causam danos profundos e duradouros. Além disso, a dinâmica de poder no ambiente doméstico muitas vezes perpetua uma relação de controle e submissão, na qual a mulher é mantida em um estado constante de medo e desumanização. (BRASIL, 2025)
A violência contra as mulheres se inicia com a busca sistemática de anulação do que podemos ser, para nos colocar em um espaço privado e privativo, submissas, silenciosas e silenciadas, obedientes e dependentes de alguém que toma por direito, nossa vida e condição de existência.
Corpo: superfície de nós, materialidade de prazer, luta e dispersão
Nós somos e temos um corpo. Ao longo de toda a nossa vida, de aprendizados múltiplos, podemos ter o privilégio, oportunidade e condição de, em algum momento, olharmos para nós mesmas e rompermos com as amarras que nos prendem. Não é simples, nem tranquilo. Certamente (ainda bem) não é solitário também. Aprender a refazer nossa forma e assumir nosso corpo, com suas dores, desejos, marcas, hematomas, tristezas e levezas, é sempre um movimento que se faz em conjunto.
Lutamos muito para gostar, gozar, aceitar, fluir, nos vestir de quem somos. Há quem nunca consiga efetivamente chegar neste lugar de vestir a si mesma de luta e gozo. Chora, cala, definha, morre: antes.
Não basta combater a violência contra a mulher
Um dos pontos fundamentais para seguirmos aqui neste debate é a compreensão de que precisamos falar de violência de gênero. Colocando a questão mais ampla, entendendo que em uma sociedade centrada nos direitos do e para o homem, qualquer pessoa que destoe deste sujeito normativo foi, é e será violentado por não ter acesso às mesmas condições e oportunidades de vida, educação, saúde, bens materiais, simbólicos e culturais. Desta maneira, a violência perpetrada contra mulheres, atinge também pessoas: da comunidade LGBTQIAPN+, crianças, idosas, negras, com deficiência e quaisquer outras minorias que possam aqui ser incluídas.
Sim, eu sei que são violências inúmeras e diferentes. Todavia, a violência de gênero também nos possibilita centralizar e enfatizar um dos elos promotores e legitimadores da violência, enquanto categoria social. Isto é, nos ajuda a perceber privilégios sociais – incluindo a posse e condições de posse sobre o corpo e a vida de outras pessoas, que habitam e se encontram em outras categorias sociais, subjugadas a esta primeira, masculina.
É dentro de uma sociedade que dá a primazia do sucesso a homens – em geral brancos, heterossexuais e cisgênero – que a violência contra corpos dissidentes deste padrão se faz possível como parte das regras sociais construídas cotidianamente. Invisibilizando diferenças sutis que, dia após dia, tornam possível produzirmos desigualdades sociais de gênero, raça, acessibilidade, sexualidade. É em uma sociedade em que corpos que ocupam uma “categoria social” em que os direitos são maiores e os deveres mais flexíveis, que a violência se faz presente, cria e aprofunda-se pela diferença.
O caminho até 61 socos em um elevador não se estanca só com políticas públicas após a violência cometida
Não há apenas 61 motivos para compreendermos que a violência doméstica, de gênero, sexual, não se limita a socos em nossos corpos, dentro de um elevador. Não há lista que dê conta da atrocidade cotidiana. Mais de 800 registros por dia de violência às mulheres, por serem mulheres. Outras milhares de pessoas sendo limitadas, enquadradas, cerceadas de existirem por serem como são.
Entender a violência física e o feminicídio como parte de um acordo social, que é ensinado desde a infância e perpetuado como tradição e cultura é urgente. É obrigação do Estado propor políticas que diminuam desigualdades e privilégios. Do nosso lado – feminista, social, cultural – o combate às múltiplas violências é parte da luta diária. Mas também deveria ser parte da luta da ciência e da divulgação científica. Nossos corpos seguem, compondo luta, todos os dias, tentando existir, em liberdade e equidade.
Lutamos muito para gostar, gozar, aceitar, fluir, existir quem somos. E não voltaremos atrás.
Para Saber Mais
ALMEIDA, D (2025) Brasil registra 1.450 feminicídios em 2024, 12 a mais que no ano anterior, Agência Brasil, 25 de Março de 2025.
BANDEIRA, LM (2014) Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Sociedade E Estado, 29(2), 449–469.
BLAY, EA (2003) Violência contra a mulher e políticas públicas, Estudos Avançados, 17(49), 87–98.
BRASIL (2025) Relatório anual socioeconômico da mulher: RASEAM, Brasília: Observatório Brasil da Igualdade de Gênero/MMULHERES, Ministério das Mulheres, Observatório Brasil da Igualdade de Gênero.
ROCHA, A; RODRIGUES, F (2025) Homem que matou ex-esposa era viciado em dorgas e teve alta de clínica em 2 dias antes do crime, G1 São Carlos e Araraquara, 30 de Julho de 2025.
SEGATO, R (2017) A base política das relações de violência de gênero. Entrevista com a antropóloga Rita Segato, Instituto Humanitas Unisinos, 11 de Agosto de 2017.
SEGATO, R (2016) La Guerra contra las mujeres, Madrid: Traficantes de sueños, 2016.
SILVA, LEL da & OLIVEIRA, MLC da (2015) Violência contra a mulher: revisão sistemática da produção científica nacional no período de 2009 a 2013. Ciência & Saúde Coletiva, 20(11), 3523–3532.
SOUZA, B (2025) Ex-jogador de basquete espanca a namorada: o que falta saber sobre o crime, CNN Brasil, 29 de Julho de 2025.
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