Nós, mulheres, como a cigarra: uma nota sobre a Cultura do Estupro

Arte de @clorofreela https://www.instagram.com/clorofreela/ www.clorofreela.com
Tu podes ler escutando esta playlist que eu montei prá ti

Quando falamos sobre um aspecto de nossas vidas cotidianas e a nomeamos de “cultura de [alguma coisa]” estamos tratando de um conjunto de práticas humanas que compõem nossa sociedade e fazem parte de sua rotina.

Essas ações são pequenas e constituem nosso modo de ver e pensar o mundo desde que nascemos. Por isso mesmo, são difíceis muitas vezes de serem percebidas. Constituem de maneira tão corriqueira nossa sociedade, que naturalizamos como “só piada”, “só jeito de dizer”, “sem querer”, “só discurso, mas na prática é outra coisa”.

Os discursos… Não, eles não são falas à toa

O problema com discursos, no entanto, é que eles são práticas – eles fazem quem somos e como vivemos na fala e no ato. Essa divisão entre pensamento e ação não é nem tão simples, nem tão demarcada quanto pensamos. Isto é, ao constituírem o modo como indivíduos de uma sociedade tomam decisões – a partir do que pensam, escutam e reproduzem – pensamentos tornam-se, sim, prática cotidiana.

Cultura, neste sentido, é um conjunto de práticas – pensadas, faladas e vividas – em realidades concretas, vidas presentes, carne e corpo de gente, que vive e experiencia tentando ser um pouco como a cigarra – cantada por Mercedes Sosa – mas sem agradecer aos seus algozes (ainda que siga cantando pela esperança de se fazer tão forte quanto viva)

Sabe a fábula da Cigarra?

Aquela é julgada por cantar? Ou, talvez, por não trabalhar (dentro do que se julga trabalho), por estar fora do que se almeja de padrão de um conjunto algoz, tão submetido quanto opressor? Julgada e, por isso, deixada à morte – não sem antes escutar que morrerá por ter cantado?

Na voz de Mercedes Sosa, a poesia de Maria Elena Walsh a história da Cigarra é eternizada, dando a perspectiva da mulher – que tantas vezes mataram, tantas vezes morreu mas segue ressucitando (e cantando).

“Cantando al sol,
Como la cigarra,
Después de un año
Bajo la tierra,
Igual que sobreviviente
Que vuelve de la guerra”

(Cantando para o sol / Como a cigarra / Depois de um ano / Subterrâneo / Como sobrevivente / Quem retorna da guerra)

A Cultura do Estupro é o que faz necessário o ciclo da cigarra

Sim, é isso mesmo que tu leste… A Cultura do Estupro é o que faz necessário o ciclo da cigarra: que morre, sofre, esconde-se e volta da guerra (ou do inverno da vida), cantando – mais e mais forte. Mas embora sua voz ressoe com uma força própria e resgate mais e mais mulheres para cantarmos juntas, seguem nos matando, seguimos morrendo, precisando nos resguardar, um tempo, sermos resgatadas para voltarmos, cantando:

“Y a la hora del naufragio
Y a la de la oscuridad
Alguien te rescatará,
Para ir cantando”

(E na hora do naufrágio / E para o que está a obscuridade / Alguém vai te resgatar / Para ir cantar)

A Cultura do Estupro é legitimar a morte

A Cultura do Estupro é o que legitima que se mate. Todavia, mesmo quando se mata tão mal – é o que legitima que nos sintamos agradecidas por termos sido mal apunhaladas, por conseguirmos seguir cantando (como canta Sosa, no início desta canção)

“Tantas veces me mataron
Tantas veces me morí
Sin embargo estoy aquí resucitando
Gracias doy a la desgracia y a la mano con puñal
Porque me mató tan mal
Y seguí cantando”

(Tantas vezes eles me mataram / Tantas vezes eu morri / Ainda estou aqui ressuscitando / Agradeço o infortúnio e a mão com uma adaga / Porque isso me matou tão mal / E eu segui cantando)

Quando falamos em cultura do estupro, estamos falando destas práticas cotidianas de agradecimento minimizando violências e subjetificações que nos tornam menores perante à sociedade. Como assim, agradecimento?

Sim, essa coisa de estupra, mas não mata. Bate, entretanto, deixe viva (por favor). Ufa, ao menos o “pior não aconteceu” (fomos “só violadas”. Que alívio!), é só nosso corpo sendo dilacerado. Menos mal.

Não estamos falando (e talvez isso seja difícil de ser compreendido as vezes) do estupro em si. Mas de tudo o que permite que ele aconteça, todas as pequenas ações cotidianas que nos apunhalam – mesmo que nos apunhalem tão mal que sigamos vivendo. Estamos falando de viver no subterrâneo sendo desmerecidas como seres humanos – como se fôssemos inferiores.

Corpo – objeto

É uma objetificação, que torna nosso corpo coisa/objeto que, portanto, pode ser possuída (por ser objeto). Pode, também, ser descartado – como algo que não nos serve mais, uma roupa que ficou fora de moda, sei lá. Dessa forma, objetificar mulheres e seus corpos é tirar sua humanidade. Podemos, assim, ser julgadas úteis e descartáveis.

Este é um aspecto da Cultura de Estupro. Mas, outro, também, é negar nossos desejos a nós mesmas – como objetos que somos, nosso propósito é atender aos desejos e vontades dos outros (os homens). Tal como a Formosa, de Vinícius de Moraes – a quem se diz 

“Formosa, não faz assim,
carinho não é ruim,
mulher que nega,
não sabe não,
têm uma coisa de menos
no seu coração”

Não só objetos, mas objetos estragados que, por não aceitar um carinho imposto, nos falta algo. Este exemplo tão emblemático é para que sempre nos lembremos que reside nos ícones a misoginia e que nem só de funk vive a Cultura do Estupro deste país, nem só de surubinha de leve se criam dizeres que nos violentam.

E, porque, este tema novamente?

Em caso “recente” do julgamento do estupro de Mariana Ferrer, vimos o advogado de defesa de André Aranha narrar Mariana Ferrer como esta mulher que tira fotos sensuais (em poses ginecológicas disse o advogado), está sem emprego, deve dinheiro. “Vive disso” (de desgraçar o nome dos homens).

A mulher em um processo em que é a vítima, passa a ré por sua vida pregressa ao crime que sofreu. Ao chorar e apontar que estava se defendendo sem ter cometido crime, NENHUM DOS HOMENS PRESENTES (promotor e juiz) se posicionam (a não ser para afirmar que ela poderia se recompor do choro). A Cultura do Estupro é o que faz um Ministério Público falar em um ato “sem inteção de ter sido cometido”. 

Quando bradamos por justiça por Mariana Ferrer, não é só por Mariana Ferrer – é por todas as mulheres que são cotidianamente violentadas. É por não tomarmos este caso como isolado. É por sabermos que isto é cultura. E sabemos na pele, dilacerada.

Quando cantamos?

Quando temos que cantar que nosso corpo é aviltado pelo Estado, pela sociedade, pelos indivíduos é por vermos Mariana Ferrer ser acusada de ter sido estuprada. É pelo seu corpo não poder pertencer a ela. Um estupro é o roubo do nosso corpo, violação do que nunca poderia ser nosso. É uma violência de poder, de hierarquia, que sempre põe em dúvida nossa índole, nossas relações anteriores, nossos atos sociais, nossa disponibilidade, nosso trabalho ou sua falta. Tem filhos? Já deu, todo mundo sabe que gosta da fruta. Nossa, não tem filhos e não é virgem? Mais uma megera egoísta, assim é bom que aprende.

Mulheres que querem seguir cantando, saindo do naufrágio ou da obscuridade, mas precisam sempre e toda a vez, explicarem seu canto e porquê, afinal de contas, não morremos e insistimos em seguir não morrendo. 

Quando falamos que queremos ocupar o espaço público, queremos nosso corpo respeitado, à mostra, nosso e para nós é mais do que um exibicionismo barato ou empoderamento particular e individual.

Quando queremos aparecer

Com o perdão da longa citação (Butler, 2018):

“Não somos simplesmente fenômenos visuais uns para os outros – nossas vozes precisam ser registradas e, então, precisamos ser ouvidos; ou melhor, quem somos, corporalmente, já é uma maneira de ser “para” o outro, aparecendo de formas diversas, que não podemos ver nem ouvir; isto é, nos tornamos disponíveis, corporalmente, para um outro cujas perspectivas não podemos antecipar me controlar antecipadamente.

[Calma, pausa para respirar… Como assim não podemos controlar antecipadamente? Respira e continua]

Dessa maneira, eu sou, como um corpo, e não apenas para mim mesma, e nem mesmo primariamente para mim mesma, mas eu me encontro, se me encontrar de todo, constituída e desalojada pela perspectiva dos outros. Então, para a ação política, devo aparecer diante dos outros de modos que não posso conhecer, e, desse modo, meu corpo é estabelecido por mim. Esse é um ponto importante porque não trata do caso de o corpo estabelecer apenas minha própria perspectiva, ele é também o que desloca essa perspectiva e transforma esse deslocamento em necessidade. Isso acontece mais claramente quando pensamos sobre corpos que agem juntos. Nenhum corpo estabelece o espaço de aparecimento, mas essa ação, esse exercício performativo, acontece apenas “entre” corpos, em um espaço que constitui o hiato entre o meu próprio corpo e o do outro.”

Sobre o corpo no espaço político

Ao falar do aparecimento do corpo no espaço político, Butler aponta para estes significados de uns e outros, como forma de resistência ao que está posto como legítimo. O “estar disponível” não como objeto, mas como conjunto para luta e resistência ao espaço que queremos ocupar socialmente. “Corpos que agem juntos”.

Lutar contra a cultura do estupro – e resistir e levantar voz a isto – é cantarmos juntas, não como uma cigarra, mas várias. Que não sucumbem, que se resgatam, que mostram a si mesmas ano após ano, inverno após inverno, aparecendo em um espaço que não é julgado como nosso e para nós – mas que nós ocuparemos mesmo assim.

JUNTAS ESTAMOS

Para saber mais

Alves, Shirley, Julgamento de influencer Mariana Ferrer termina com sentença inédita de ‘estupro culposo’ e advogado humilhando jovem, The Intercept Brasil, 3 de Novembro de 2020

Butler, Judith (2018) Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembléia, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Walsh, Maria Elena Como la cigarra (Canção cantada por Mercedes Sosa)

Moraes, Vinicius Formosa (Canção cantada por muitos artistas brasileiros).

Outros textos do blogs com este tema

Sobre a Cultura do Estupro: senta aqui, vamos conversar…

Mulher: um ato político

Corpo da mulher: objetificação e posse de si

Sobre Ana Arnt 55 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*