Sobre mortes e liberdades de ser

corpo: nosso espaço de ser e habitar

Existe obviedade para o lugar de pessoas que não sejam homens cisgênero?

poema óbvio

não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista

Não sou divida, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante
Junho/69

Ana Cristina Cesar

Estes dias…

Estes dias têm sido longos, recheados de duras notícias que fazem com que esta série de postagens sobre o corpo da mulher se prolifere de ideias, estudos, discursos…

Primeiramente, entre ontem e hoje, as questões sobre o aborto. Na Argentina, o senado rejeita a legalização do aborto. No Brasil, aguardamos o Superior Tribunal Federal emitir parecer acerca da descriminalização até a 12ª semana de gestação. Embora já tenhamos dados significativos de quem são as pessoas presas e/ou mortas pela prática do aborto no Brasil (em sua maioria mulheres cisgênero, negras e pobres, em sua grande maioria), ainda negamos a importância desde dado. Desta forma, seguimos deixando suas vidas esvaindo-se em estatísticas cruéis. Todavia… E mulheres cisgênero brancas e ricas, não fazem aborto?!? Ora! Fazem, claro! No entanto, não são estas quem morrem e/ou são presas – em sua maioria.

Mas estes não são os únicos acontecimentos recentes… outro acontecimento que estarreceu parte da comunidade feminista brasileira, foi o da moradora de Mococa/SP, Janaína. Ela teve sua esterilização compulsória “solicitada”, em 2017, pelo Ministério Público e decretada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Nosso útero segue sendo pauta para decisões em gabinetes recheados de homens brancos e ricos – isto é fato.

Mas as mortes…

Entretanto, dois fatos chamam a atenção esta semana e merecem um espaço de discussão. A morte de Tatiane Spitzner e de Juliane dos Santos Duarte. A primeira assassinada por seu marido, a segunda sequestrada, torturada e morta por facção criminosa. Ao que se relacionam estas mortes à série de postagens? Hoje eu gostaria de tratar destas mulheres e seus corpos. Contudo, me comprometendo a voltar ao aborto e ao útero logo mais…

No caso de Tatiane, inúmeros comentários em redes sociais e reportagens amenizam a violência e a culpabilizam por não ter tentado fugir. Ou, pior, por ter tentado fugir errado (!!!). No caso de Juliane, hoje pela manhã, uma reportagem da Folha de São Paulo, a culpabiliza pelo assassinato, alegando que seu primeiro dia de férias fora vivido com bebida, beijos e danças. [Up date: Juliane, na verdade, é Dudu. Homem transgênero identificado como tal – tecerei ao final do texto algo específico sobre isto]

A partir disto, afirmo que violência contra a mulher cisgênero ou homem transgênero é permeada de dizeres, rotineiramente, apontando seus erros, o quanto não lutou, não fugiu, não, por fim, viveu. Ou seja, em nossa sociedade, historicamente, definem-se papéis para homens e mulheres como comportamentos aceitáveis. Para tanto, usa-se dos mais diversos discursos. Medicina, Biologia, Religião, por exemplo, articulam-se, reforçam-se e naturalizam modos de ser.

Enquanto pauta feminista, temos discutido o quanto a ideia de culpabilização é socialmente cultuada. Assim, dentro de nosso sistema cultural, nascemos e crescemos em uma lógica que atribui à mulher, ainda nos dias atuais, as tarefas domésticas, o espaço privado e a manutenção da ordem familiar. Portanto, naturalizamos estes comportamentos e – mesmo morrendo dentro dele – romper este modo de vivermos não é algo que se dá por decreto. Tampouco por decisões de não submissão.

Nossas mortes e nossa cultura…

Estamos tratando aqui de uma sociedade que nos ensina – desde tenra idade – a nos constituirmos como pertencentes a um determinado lugar social. Nesse sentido, questionar tais espaços ocupados é uma etapa dessa desconstrução e modificação das vivências. Romper com como nos configuramos (e falando especificamente de cada indivíduo e suas experiências de vida), é quebrar hábitos cotidianos. Como assim? Estou falando de pensamentos fugazes e escorregadios, às rotinas de organização minuciosa da vida. Isto é, dos filhos, de levar o lixo para a rua, servir o café para todos – mesmo estando em posições hierárquicas iguais ou superiores -, possibilitar que nada falte na geladeira, na despensa, nos estômagos, nas gavetas de roupas limpas…

Por um lado, tenho tratado do corpo da mulher como marcado por sua biologia e o quanto precisamos problematizar este discurso. Por outro lado, é fundamental que se tenha presente que atribuir o discurso a uma construção social não é libertá-lo e nos possibilitar sermos quaisquer mulher que queiramos ser. Pelo contrário! Sermos construção demarca que somos – como mulheres, mas também como homens – cerceados desde a infância a desempenharmos papéis na sociedade, e “desaprender” a sermos estes sujeitos, ou buscarmos modificações em nossa cultura é do âmbito da luta cotidiana.

Relações de dominação

A este respeito, Guiomar Soares comenta, que a opressão é sutil e gera em si mesmo este sentimento de dever e culpa. Assim, diz a pesquisadora,

A sociedade em que vivemos ainda caracteriza-se por relações de dominação e nela, a sexualidade, atitudes, comportamentos e sujeitos específicos são designados a partir do sexo primordial, o do homem. O regime masculino, que se estabeleceu ao longo dos tempos, vem ditando a posição e os papéis de homens e de mulheres, cujos valores e padrões de comportamento, também, são legitimados e consagrados socialmente (Soares, 2008, p.82).

Dessa forma, nos engendramos, dentro de nossa sociedade, para sermos quem somos. Assim, interrogo – não sem dor – ao ler as reportagens e comentários sobre as mortes de Tatiane e Juliane de quem é a culpa, senão de seus algozes?

Mas, quem autoriza, cotidianamente, que deslegitimemos estas mulheres como vítimas? O quanto, por serem mulheres, mesmo após suas mortes, podem ser julgadas por estarem em espaços que não deveriam. Comportando-se como não deveriam. Vivendo, quando – ao que parece – não deveriam?

“No estoy sola, estoy conmigo”

Em suma… nossos corpos, prezados senhores, não tem razão ou finalidade. Por fim, não temos dívida, nem somos causa. Aliás, somos – e temos tentado arduamente dizer isso – nossa própria lógica. Nosso corpo e nossa vida nos pertence, sem o julgamento por beijarmos, casarmos, dançarmos. Nossa vida não merece dedos em riste, quando os homens – nascidos, criados e construídos em nossa sociedade – nos matam, ferem e torturam.

Seja em discussões sobre o aborto, esterilizações, mortes ou vidas: nosso corpo a nós pertence. E em um passado – nem tão longínquo assim – Ana Cristina Cesar já narrava tal obviedade! Somos a própria lógica circundante: multiplicidade.

*Up date:

Em tempo (1). Após várias leituras extras sobre o caso de Juliane Dudu, descobri por outras matérias e postagens que ele é um homem trans. Acho que a questão se complexifica ainda mais, quando existe a questão de gênero inserida, no que diz respeito a não identificação do corpo por si mesmo. E neste caso a própria reportagem da folha traz isso dissonante do que se tem discutido nas pautas feministas e LGBTQIANP+.

O corpo não pertence às mulheres (tal como tenho abordado nas postagens do blog). Todavia, a todos os sujeitos que se identificam como trans, homens ou mulheres, ou não bináries, seu corpo não só não os pertence na sociedade, como são muito mais julgados dentro da lógica da promiscuidade, do ruído, das incertezas e confusões que o binarismo biomédico impõe. A deslegitimação de tudo o que Dudu vivenciava em sua vida fica muito mais clara a partir dessa narrativa de si mesmo como trans, na reportagem da Folha de São Paulo. A deslegitimação de tudo o que, também, o corpo é e como se configura por suas marcas, narradas violentamente como um fim de “bebidas, beijo e dança” se faz cruelmente mais claro em um contexto jornalístico raso e desrespeitoso, infelizmente.
Desculpe, Dudu, pelo erro cometido, ao não me atentar a isto (ou demorar para chegar nesta questão).

Para saber mais:

Rio de Janeiro, Defensoria Pública. (2017). DPRJ traça perfil de mulheres criminalizadas pela prática do aborto.

Soares, Guimoar. (2008). Mulher e espaço escolar: uma discussão sobre as identidades de gênero. In: Silva, Fabiane Ferreira; Magalhães, Joanalira Corpes; Ribeiro, Paula Regina; Raquel Pereira Quadrado (org). (2008). Sexualidade e escola: compartilhando saberes e experiências. Rio Grande: FURG. p.81-87.

Nossos posts anteriores sobre o tema:

O útero é objeto público?

Que lugares ocupamos nas famílias?

Para ler com poesia:

Cesar, Ana Cristina. (2013). Poética. São Paulo: Companhia das Letras.

Para ler ouvindo poesia, música, mulheres:

Anita Tijoux, Sacar la vozhttps://www.youtube.com/watch?v=VAayt5BsEWg “No estoy sola, estoy conmigo”

Anita Tijoux, Antipatriarca

Elza Soares, Deus é mulher

E uma playlist toda maravilhosa, recheada de muitas vozes de mulheres fantásticas 😉

Sobre Ana Arnt 56 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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