Leitura de férias

O Maior Espetáculo da Terra, de Richard Dawkins (Companhia das Letras, 2009), de quem já havia lido A Escalada do Monte Improvável, O Relojoeiro Cego e Deus – um delírio. Dawkins mais uma vez mostra sua lucidez e sua erudição em tratar ao mesmo tempo de assuntos tão diversos, interligados pela teoria da evolução de Darwin. Ele próprio diz que já foi definido como ultradarwinista, e assume que considera como sendo um elogio.

Além de seu conhecimento sobre o assunto, Dawkins é engraçado, irônico, por vezes sarcástico, mas sempre muito respeitoso com aqueles que não entendem, ou que simplesmente não querem entender, a teoria da evolução. Traz inúmeros exemplos de sua bagagem de conhecimento que constroem o livro que é fundamental para o bom entendimento da teoria de Darwin.

Não que outros livros também não o sejam. Sendo um assunto particularmente interessante, os livros (que li) de Dawkins são praticamente complementares uns aos outros. Fica evidente que o autor trata do assunto com a desenvoltura de quem leu e releu uma biblioteca sobre a teoria de evolução e assuntos correlatos.

Um professor que preza pelo bom aprendizado de seus alunos deve deixar muito claras suas intenções e os termos dos quais faz uso. Assim Dawkins inicia sua trajetória sobre O Maior Espetáculo da Terra, explicitamente sobre “teoria”, termo muitas vezes objeto de controvérsias, mas também sobre “fato”, “conjectura” e “teorema”. Caminha em seguida por apresentar as observações que levaram Darwin a elaborar sua teoria. E exemplos de macroevolução, alguns muito divertidos (como a dos caranguejos da espécie Heikea japonica, mencionados na fantástica série “Cosmos”, de Carl Sagan). Ressalta, ainda, a importância de experimentos bem elaborados que indicam claramente as evidências dos processos macroevolutivos.

Estive pensando em Luciano Huck e sua indignação quando teve seu Rolex roubado, quando li o capítulo “Relógios”, contumaz e implacável. Por melhor que fosse o Rolex de Huck, não seria capaz de indicar o tempo geológico das grandes transições do processo evolutivo. Geologia, dendrocronologia, decaimento radioativo, e mais adiante relógios moleculares, indicam uma concordância para a ocorrência de fósseis que dois Rolex dificilmente indicariam para uma mesma hora-minuto-segundo. Mesmo sir Arthur Conan Doyle, e seus personagens Holmes e Watson, dificilmente poderiam imaginar que detetives seriam úteis para fundamentar os argumentos de Dawkins. A lógica investigativa de crimes do passado é exatamente a mesma para se estabelecer a ocorrência de fósseis, entender a presença de órgãos vestigiais, investigar 45.000 gerações da bactéria Escherichia coli e mudanças dos padrões de coloração do peixinho Lebistes de acordo com o ambiente em que se encontra.

Há alguns anos tive uma conversa interessante com um colega mórmon. Tendo visitado a cidade de Salt Lake City, no estado de Utah (EUA), fiquei impressionado com a sede da igreja e o enorme anfiteatro mórmon. Comentei com ele minha visita, e o assunto rapidamente derivou para ciência e a teoria da evolução, à qual ele refutou dizendo que ainda existiam inúmeras lacunas, elos perdidos entre fósseis humanos, que contrariavam a lógica evolutiva. Perguntei para ele se já havia lido algum livro sobre a teoria da evolução. Obviamente ele me respondeu que não. Para aqueles que ainda acreditam em elos perdidos, lacunas, Dawkins explica que, na verdade, tais questionamentos não passam de quimeras. Quimeras também seriam as “formas de transição” entre os diversos grupos taxonômicos: “rãcacos”, “crocopatos”, “elefanzés”, “cangucerontes” e “bufaleões”. Também explica os inúmeros mal-entendidos comumente mencionados, muitas vezes até na mídia, sobre ancestralidade de grupos de animais, pois não descendemos de macacos, mas temos um ancestral comum. Confesso que não sabia que as aves não formam um grupo separado, mas são répteis (páginas 153 e 154). Exemplos de “continuidade anatômica” (termo inventado por mim) entre fósseis e formas atuais são amplamente citados, até mesmo Darwillus masillae, fóssil de primata datado de 47 milhões de anos encontrado na Alemanha (PLOS One, 19 de maio de 2009), anunciado como “a oitava maravilha do mundo, que finalmente confirmaria a teoria de Darwin”.

De animais para hominídeos e seu precursores, o autor dá uma aula sobre evolução das formas humanas. Com tantas evidências, fica difícil desacreditar o processo de transformação gradativa dos primatas. Só mesmo negando-se a ver os fósseis, como no hilário diálogo entre a Sra. Wendy Wright e Dawkins. Com tais evidências Dawkins reforça ainda mais com dados de epigênese (teoria do desenvolvimento de um organismo pela diferenciação progressiva de um todo inicialmente indiferenciado). Dawkins vai longe, e fundamenta os princípios da formação dos seres vivos nos princípios físico-químicos de comportamento da matéria. Devo “tirar meu chapéu” para o autor, pois a maioria de muitos biólogos (e químicos!) que conheço consideram bioquímica “um porre”! Mas Dawkins não se intimida, e mostra que tais princípios estabelecem o funcionamento das células, consideradas a “unidade básica” dos seres vivos.

Dali para a deriva dos continentes e separação das espécies, Dawkins questiona o porquê, Porquê, PORQUÊ dos marsupiais estarem todos na Austrália se tivessem saído da Arca de Noé, no monte Ararat. Da mesma forma, o porquê, Porquê, PORQUÊ de todos os animais da ordem Edentata (tatus, preguiças e tamanduás) terem migrado do monte Ararat direto para a América do Sul, sem deixar nenhum “parente” pelo caminho. Para explicar a razão da omissão de tais evidências por parte dos que contestam a teoria da evolução, cita o livro Why evolution is true, de Jerry Coyne: “As evidências biogeográficas da evolução agora são tão poderosas que eu nunca vi um livro, artigo ou conferência criacionista tentar refutá-las. Os criacionistas simplesmente fazem de conta que as evidências não existem”. Essa é uma tática muito utilizada por aqueles que não querem enfrentar evidências. E prossegue na sua dissertação de inter-relações filogenéticas que demonstram de forma irrefutável os 3,5 bilhões de anos de história evolutiva da biodiversidade terrestre.

Sem se perder, Dawkins apresenta os contundentes argumentos evolutivos da biologia molecular. Graças à descoberta da técnica da reação de polimerização em cadeia (PCR, polymerase chain reaction), que permite a amplificação de fragmentos de DNA, hoje é possível se utilizar de relógios moleculares para se calcular taxas de mutações ao longo de milênios. E com isso “montar” árvores de parentesco filogenético entre espécies e entre outros grupos biológicos. Desta forma, a teoria da evolução se confirma, mais uma vez, através da biologia molecular, juntamente à paleontologia, geologia e dendrocronologia, além da verificação dos processos de seleção natural, hoje observados até mesmo em laboratório.

Os remanescentes da história evolutiva encontram-se presentes nos seres vivos, em suas formas corporais, em seus órgãos internos. Cérebros, asas, olhos, plano corporal segmentado, nervo laríngeo. Além do terrível design desinteligente da dor nas costas, da bolsa do coala que é aberta para baixo, seios nasais com abertura para o topo, e das vespas icneumonídeas, que certamente devem ter inspirado “Alien – o 8º passageiro” de Ridley Scott.

Mas nada disso, nenhuma mudança, nenhuma mutação, nenhuma cadeia alimentar, a vida não seria possível sem a
energia solar. Dawkins volta à química para explicar como a energia solar é a única fonte de energia para que todo o processo evolutivo tenha acontecido. E, por isso, não há nenhuma violação de lei termodinâmica na evolução (embora tal argumento não seja mencionado pelo autor)*. E a evolução é inexorável. Não há lugar para beleza, perdão ou qualquer sentimento na luta pela sobrevivência. Esta simplesmente ocorre, de acordo com a seleção natural, e origina a biodiversidade e a perda de biodiversidade. Por mais que talvez fosse possível se planejar tal processo, a teodiceia evolucionária não se sustenta.

Ainda me faltando ler o último capítulo, é reconfortante saber que Dawkins, mesmo depois de aposentado, continua um exímio escritor de divulgação da ciência e demonstra um conhecimento invejável sobre a teoria da evolução, com argumentos irrefutáveis permeados de bom humor e histórias anedóticas. Darwin certamente apreciaria O Maior Espetáculo da Terra.

*Em tempo (08/1/09): No último capítulo Dawkins faz uma análise detalhada e perspicaz do último parágrafo do livro de Dawrwin, A Origem das Espécies:

Assim, da guerra da natureza, da fome e da morte surge diretamente o mais excelso objeto que somos capazes de conceber, a produção dos animais superiores. Há grandeza nesta visão de vida, com seus vários poderes, insuflada que foi originalmente em algumas formas ou em uma, e no fato de que, enquanto este planeta prossegue em seu giro de conformidade com a imutável lei da gravidade, de um começo tão simples evoluíram e continuam a evoluir infindáveis formas belíssimas e fascinantes.

Nesta análise, menciona textualmente que não pode haver engano sobre a fonte original de energia que mantém a vida na Terra: o Sol. (páginas 384-387) E por isso a segunda lei da termodinâmica não é violada, jamais. Logo, segundo Dawkins:

“(…) a energia do Sol impele a vida, de modo que, por uma laboriosa rota limitada por essas leis, evoluem prodigiosos feitos de complexidade, diversidade, beleza e uma impressionante ilusão de improbabilidade estatística e design deliberado.” (grifo do autor).

A dura realidade acerca da ignorância sobre a Teoria da Evolução, apresentada nos dados coligidos e comentados por Dawkins no apêndice, é de ser lamentada por todos os que compreendem, verdadeiramente, a ciência e o método científico. Sobre este ponto, um comentário final: o livro de Sandro de Souza, “A Goleada da Darwin” (Record, 2009), é o primeiro, no meu comnhecimento, que aborda a questão sobre o criacionismo no Brasil (para uma resenha, veja aqui). A contracapa do livro de Souza apresenta dados para os quais não é mencionada uma fonte (infelizmente não tenho o livro em mãos). Mas seria interessante se verificar a extensão dos números apontados por Souza sobre a crença no criacionismo no Brasil, tal como Dawkins os apresenta em seu livro.

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