Algas de sushis só são digeridas por japoneses

Algas marinhas são plantas primitivas que diferem significativamente das plantas terrestres por vários motivos. Um deles é que todas (ou quase todas) as plantas terrestres apresentam lignina, um polímero tridimensional extremamente complexo, associada à celulose na parede das células vegetais. A lignina confere rigidez à parede celular das plantas terrestres, e forma boa parte da casca das árvores. Já as algas contém polissacarídeos complexos, em particular polissacarídeos sulfatados, que não estão presentes nas plantas superiores.

Os polissacarídeos das algas marinhas são de enorme importância econômica. A carragenana (ou carragenina), por exemplo, entra na composição de vários alimentos, como sorvetes, cerveja, patês, leite de soja, alimentos para animais de estimação, além de estar presente também em pastas de dentes e shampoos. Estes polissacarídeos são degradados por algumas espécies de bactérias marinhas heterotróficas, que produzem CAZimas (Carbohydrate Active Enzymes, CAZymes, enzimas que degradam carboidratos).

Algumas algas marinhas são atualmente muito consumidas em todo o mundo. Principalmente a alga nori (do gênero Porphyra), utilizada na preparação dos sushis. Outras algas marinhas que entram na alimentação dos japoneses são: a alga wakame (Undaria), que é utilizada principalmente na preparação de sopas; kombu (Laminaria japonica), uma alga bastante consistente, difícil de mastigar, que é utilizada na preparação de pratos como o feijão azuki, em sopas, ou seca como snack (salgadinho); e hiziki (Hijikia fusimorme), uma alga pequena, de sabor muito pronunciado, utilizada na preparação de saladas, ou de refogados com outros alimentos. Além dos japoneses em geral, as algas marinhas são muito utilizadas na dieta macrobiótica, introduzida no Brasil por Tomio Kikuchi há quase 50 anos. O consumo regular de algas na alimentação é extremamente benéfico para a saúde, já que elas contém uma enorme variedade de sais minerais, ausente na maioria dos alimentos de origem terrestre. Além disso, já foram isoladas substâncias químicas de algas que diminuem a pressão sanguínea. O consumo regular de algas é recomendado para melhorar a saúde da pele, do cabelo e das unhas.

Porém, o problema do consumo de algas é a digestão dos polissacarídeos sulfatados, já que estes polissacarídeos apresentam estruturas complexas e muito estáveis, devido à presença de grupos sulfato. Zobellia galactanivorans é uma bactéria marinha associada à alga vermelha Delesseria sanguinea (Rhodophyceae) que degrada ágar (outro polissacarídeo de algas) e carragenanas. O genoma de Z. galactanovirans foi seqüenciado e apresentou genes que codificam a síntese de cinco proteínas (Zg1017, Zg2600, Zg3376, Zg3628 e Zg3640) que são “parentes distantes” de outras enzimas, que também degradam ágar (ß-agarases) e carragenanas (ß-carragenases). Estas cinco proteínas são enzimas que apresentam o mesmo sítio ativo (o lugar da proteína responsável pela ação catalítica que a enzima exerce) de enzimas da família hidrolase glicosídica GH16.

De forma a caracterizar estas enzimas, pesquisadores da Université Pierre e Marie Curie (Paris, França) clonaram os genes extraídos de Z. galactanivorans em outra bactéria, Escherichia coli (o grande “curinga” da biologia molecular e da microbiologia). Após a clonagem e o crescimento de E. coli contendo os genes, os pesquisadores testaram a atividade hidrolítica de E. coli clonada em agarose e k-carragenana. Nada. Nenhuma atividade enzimática foi observada. Assim, extraíram outros polissacarídeos de outras algas, e utilizaram estes para testar as linhagens de E. coli clonadas. As linhagens de E. coli que produziram as enzimas Zg2600 e Zg1017 mostraram atividade hidrolítica sobre polissacarídeos de algas não-comerciais, e produziram o açúcar alfa-L-galactopiranose-6-sulfato. As enzimas Zg2600 e Zg1017 são, desta forma, as primeiras enzimas caracterizadas como ß-porphyranases (que degradam polissacarídeos de algas nori, Porphyra), e foram chamadas de PorA (Zg2600) e PorB (Zg1017).

Os autores do estudo conseguiram cristalizar e analisar as estruturas cristalinas destas duas proteínas utilizando análise por difração de raios-X.

Após caracterizar estas enzimas, os pesquisadores pesquisaram as estruturas destas ß-porphyranases em um banco de dados internacional de proteínas chamado GenBank. Observaram que as estruturas de PorA e PorB eram parecidas com estruturas de outras proteínas codificadas por genes presentes em bactérias marinhas, com uma exceção: a bactéria Bacteroides plebeius, originária do intestino humano. Apenas seis linhagens desta bactéria já foram isoladas, todas da microbiota (comunidade microbiana) de indivíduos japoneses. A bactéria B. plebeius contém um gene que codifica para a síntese da enzima ß-agarase, pertencente ao grupo das GH16. Porém, o genoma de 24 outras linhagens de Bacteroides diferentes não apresenta genes que codificam a síntese de ß-porphyranase ou de ß-agarase. Estes genes, que não codificam a síntese de enzimas do tipo GH16, foram caracterizados de Bacteroides isolados, na sua maioria, de indivíduos humanos ocidentais.

Ainda mais: genes que codificam a formação das enzimas PorA e PorB não foram encontrados em nenhuma linhagem bacteriana de origem terrestre. Logo, os autores verificaram que a presença destes genes, e, consequentemente, destas enzimas, está limitada a bactérias associadas a algas da costa do Japão (pois também não foram encontradas em bactérias oceânicas).

A próxima etapa foi analisar o metagenoma (genoma total) do intestino de 13 voluntários japoneses (me pergunto como isso foi feito… não está claro no artigo). Dentre estes, 7 apresentaram genes que codificam a síntese de porphyranases. Os autores também observaram a presença de tais genes em mãe e seu bebê já desmamado, fato que sugere a transmissão vertical (entre gerações) de Bacteroides plebeius. Por outro lado, a análise do metagenoma de 18 indivíduos norte americanos não indicou, em qualquer caso, a presença de genes que codificam a síntese de porphyranases ou agarases.

Ou seja, bactérias que produzem  enzimas que degradam polissacarídeos sulfatados são encontradas somente no intestino de japoneses, mas não de ocidentais. Levando-se em conta que tais enzimas estão ausentes no meio terrestre, presume-se que a aquisição de bactérias que digerem polissacarídeos de algas é relativamente recente dentre os humanos. Considerando-se que as algas marinhas já eram utilizadas como forma de pagamento de impostos no século XVIII, estas realmente devem ter sido utilizadas desde muito tempo no Japão para que ocorresse a aquisição de Bacteroides plebeius pelos japoneses. Além disso, a alga nori é a única fonte possível de polissacarídeos digeridos por estas enzimas. Ou seja, provavelmente estas bactérias devem ter sido adquiridas pelos japoneses através do consumo desta alga.

Então, você, ocidental, que gosta de comer sushi e outros pratos à base de algas, fique sabendo: você NÃO digere os polissacarídeos destas algas.

ResearchBlogging.orgHehemann, J., Correc, G., Barbeyron, T., Helbert, W., Czjzek, M., & Michel, G. (2010). Transfer of carbohydrate-active enzymes from marine bacteria to Japanese gut microbiota Nature, 464 (7290), 908-912 DOI: 10.1038/nature08937

Priorizando a educação de linguagem e de ciência

O editorial ultimo número da revista Science é dedicado ao tema “educação de ciência”, com ênfase do ensino de ciência na escola fundamental, aquisição da linguagem e capacidade de comunicação, de maneira a valorizar o ensino das ciências e a capacidade de expressão de forma conjunta. O editorial assinala que nos EUA esta é considerada uma proposta radical.

Aparentemente o ensino de ciências nos EUA se baseia em decorar fatos sobre o mundo natural e, com sorte os alunos realizam um ou dois experimentos. No caso de aulas de linguagem, os alunos lêem basicamente textos de ficção e redigem textos sobre suas leituras de maneira bastante “fossilizada”.

O número da revista Science indica que o ensino conjunto de ciência e língua promove um estímulo no aprendizado de ambos. Além disso, desenvolve o espírito crítico e a capacidade de formular questionamentos por parte do aluno. É importante que o aluno possa diferenciar textos informacionais (factuais) e ficcionais (narrativas), pois, em geral, texto científicos são do primeiro tipo. Sendo assim, é importante que os alunos possam conhecer este formato e apreciar sua leitura, para que possam ter um melhor preparo para ler e elaborar textos dessa natureza, que farão parte da futura vida profissional de muitos.

Re-pensar o ensino de ciências em salas de aula em conjunto com o aprendizado de comunicação e expressão deve muito provavelmente levar a um incremento do aprendizado de ciências para até 4 horas por semana. Em geral, na escola os estudantes dos EUA têm contato com ciências menos do que 1 hora por semana.

Uma segunda vantagem aparente de um sistema de tal natureza é que se poderia supor que favoreceria o desabrochar de capacidades individuais dos estudantes. Afinal a motivação e o interesse do estudante determinam, em boa medida, o bom desempenho dos mesmos nas disciplinas que cursam e na sua formação em geral. Adotando uma educação conjunta de ciência e linguagem/comunicação pode ser um desafio para os estudantes melhorarem suas capacidades de leitura e análise, de maneira a aumentar sua auto-confiança e conhecimento. Ou de melhorar sua capacidade de realizar manipulações experimentais em aulas de ciências. Penalizar alunos que não apresentam um bom desempenho em tais atividades pode ser extremamente danoso para seu futuro aprendizado e, consequentemente, para sua formação profissional. É melhor saber estimular em tais atividades.

O editorial pergunta quantos estudantes estão sendo mal aproveitados em escolas nas quais os professores avaliam a capacidade dos alunos em memorizar palavras científicas obscuras, e lendo somente estórias de ficção? Em vez disso, deve-se pensar em um ensino de ciências de qualidade, em conjunto com um ensino de linguagem e comunicação, através de um processo crítico e colaborativo.

Tais considerações parecem óbvias. Mas quão distantes também estão da nossa realidade brasileira, pergunto aos leitores? Os artigos deste número da Science sobre este assunto são indicados a seguir.

ResearchBlogging.orgAlberts, B. (2010). Prioritizing Science Education Science, 328 (5977), 405-405 DOI: 10.1126/science.1190788
ResearchBlogging.orgTaylor, J., Roehrig, A., Hensler, B., Connor, C., & Schatschneider, C. (2010). Teacher Quality Moderates the Genetic Effects on Early Reading Science, 328 (5977), 512-514 DOI: 10.1126/science.1186149
ResearchBlogging.orgOsborne, J. (2010). Arguing to Learn in Science: The Role of Collaborative, Critical Discourse Science, 328 (5977), 463-466 DOI: 10.1126/science.1183944
ResearchBlogging.orgPearson, P., Moje, E., & Greenleaf, C. (2010). Literacy and Science: Each in the Service of the Other Science, 328 (5977), 459-463 DOI: 10.1126/science.1182595
ResearchBlogging.orgKrajcik, J., & Sutherland, L. (2010). Supporting Students in Developing Literacy in Science Science, 328 (5977), 456-459 DOI: 10.1126/science.1182593
ResearchBlogging.orgvan den Broek, P. (2010). Using Texts in Science Education: Cognitive Processes and Knowledge Representation Science, 328 (5977), 453-456 DOI: 10.1126/science.1182594
ResearchBlogging.orgSnow, C. (2010). Academic Language and the Challenge of Reading for Learning About Science Science, 328 (5977), 450-452 DOI: 10.1126/science.1182597
ResearchBlogging.orgWebb, P. (2010). Science Education and Literacy: Imperatives for the Developed and Developing World Science, 328 (5977), 448-450 DOI: 10.1126/science.1182596
ResearchBlogging.orgHines, P., Wible, B., & McCartney, M. (2010). Learning to Read, Reading to Learn Science, 328 (5977), 447-447 DOI: 10.1126/science.328.5977.447
ResearchBlogging.orgSchleicher, A. (2010). Assessing Literacy Across a Changing World Science, 328 (5977), 433-434 DOI: 10.1126/science.1183092

Prêmio Bê Neviani – Porque não basta divulgar, tem que dispersar!

Depois do recente anúncio feito pela vetusta Biblioteca do Congresso (Library of Congress), comunicando que arquivará todas as mensagens públicas postadas no Twitter desde o início do serviço de microblog, não restam dúvidas de que esta mídia social veio para ficar.

Segundo os cofundadores Bizz Stone e Evan Williams, hoje o Twitter tem 105 milhões de usuários registrados, e 300 mil novos usuários ingressam no serviço a cada dia. Seu crescimento médio foi de 1.500% por ano, desde a fundação da “Twitter Inc” em março de 2006. O serviço atende a 19 bilhões de buscas por mês. Apenas comparando, o Google atende a 90 bilhões no mesmo período.

Não se pode negar – o Twitter é uma ferramenta 2.0 por excelência: seu conteúdo é gerado e compartilhado pelos próprios usuários. A dinâmica do microblog funda-se primordialmente na atuação dos tuiteiros, que seguindo e sendo seguidos, dispersam conteúdos virtuais.

A ação de tuiteiros que dispersam conteúdos relevantes no universo tuitiano merece destaque e deve ser aplaudida. Foi essa premissa que inspirou a criação do Prêmio Bê Neviani, reconhecendo a incrível capacidade de dispersão de tuítes com conteúdo diversificado, como cultura, ciência, tecnologia, notícias e muito mais, do perfil @Be_neviani.

Nunca houve uma tuiteira como @Be_neviani

Hoje, dia 22 de abril de 2010, estamos lançando o Prêmio Bê Neviani: porque não basta divulgar, tem que dispersar

Regulamento:

– O Prêmio Bê Neviani é aberto a todos os tuiteiros que tenham blogues de conteúdo informativo: ciências, cultura (literatura, cinema, artes, fotografia, música, etc), filosofia, notícias, dicas e assemelhados.

– Os blogues participantes da campanha tuitarão, no período de 23 de abril de 2010 a 23 de maio de 2010 links para seus posts, publicados em qualquer data e com qualquer temática, obrigatoriamente usando a hashtag #PremioBeNeviani e o encurtador de links Bit.ly.

– No período de vigência da campanha, os retuítes (RTs) que os links desses posts receberem serão computados para a apuração de dois ganhadores, um em cada uma das duas seguintes categorias:

Categoria 1: blogueiros – o vencedor será o blogueiro cujo post recebeu mais RTs. O prêmio dessa categoria será o livro “Criação Imperfeita”, de Marcelo Gleiser.

Categoria 2: tuiteiros – o vencedor será o tuiteiro que deu RTs em qualquer dos tuítes postados durante a vigência da campanha. Essa categoria terá sua apuração por sorteio. O prêmio para essa categoria será o livro “Além de Darwin”, de Reinaldo José Lopes.

O anúncio do prêmio será em 30 de maio de 2010, pelo Twitter.

Para participar, envie um tuíte para as administradoras @sibelefausto ou @dra_luluzita, ou então comente aqui, que entraremos em contato.

Abaixo, segue a relação dos blogues e tuiteiros participantes. À medida que mais blogueiros aderirem a essa campanha, essa listagem será atualizada.

Blog – Blogueiro-tuiteiro

100nexos @kenmori

Amiga Jane @lacybarca

Blog Bastos @bastoslab

CeticismoAberto @kenmori

Chapéu, Chicote e Carbono 14 @reinaldojlopes

Ciência na Mídia @ciencianamidia

Discutindo Ecologia @brenoalves e @luizbento

Dicas Caseiras para quem mora só @uoleo

Ecce Medicus @Karl_Ecce_Med

Efeito Azaron @efeitoazaron

Ideias de Fora @IdeiasdeFora

Joey Salgado… mas bem temperado @joeysalgado

Karapanã @alesscar

Maquiagem Baratinha @aninhaarantes

Meio de Cultura @samir_elian

Minha Literatura Agora @jamespenido

O Amigo de Wigner @LFelipeB

O divã de Einsten @aninhaarantes

O que todo mundo quer @desireelaa

Química Viva @quiprona

Quiprona @quiprona

Rabiscos @skrol

Tage des Glücks @nataliadorr

Tateando Amarras @eltonvalente

Terreno Baldio @lacybarca

Twiterrorismo @aninhaarantes

Uma Malla pelo Mundo @luciamalla

Uôleo @uoleo

O que faz um artigo científico ser um bom artigo científico?

Primeiramente, é necessário se definir o que é um artigo científico: no contexto das ciências naturais (ou seja, aquelas que descrevem a natureza), um texto que relata uma proposta, como tal proposta foi verificada e se esta proposta foi comprovada (ou não). É uma definição bastante minimalista, mas que pode ser assim definida para os propósitos desta postagem.

Assim, um bom artigo científico é aquele que, presumivelmente: a) apresenta uma proposta ousada, inovadora, inédita e de grande importância; b) faz uso de metodologias experimentais muito bem aceitas e que comprovadamente podem fornecer evidências contundentes se tal proposta é válida ou não, e; c) se a proposta em questão foi verificada.

Quando o artigo “Self-Sustained Replication of an RNA Enzyme” foi publicado na revista Science há pouco mais de 1 ano (27 de fevereiro de 2009), causou um enorme alarde na comunidade científica do mundo todo e foi amplamente divulgado na World Wide Web (internet).

Qual a proposta do artigo? Segundo os autores
A long-standing research goal has been to devise a nonbiological system that undergoes replication in a self-sustained manner, brought about by enzymatic machinery that is part of the system being replicated. One way to realize this goal, inspired by the notion of primitive RNA-based life, would be for an RNA enzyme to catalyze the replication of RNA molecules, including the RNA enzyme itself.
This has now been achieved in a cross-catalytic system involving two RNA enzymes that catalyze each other’s synthesis from a total of four component substrates.

(Traduzindo: Um objetivo científico há muito tempo buscado seria de se constituir um sistema não-biológico que realiza replicação de maneira auto-sustentada, formado por um maquinário enzimático que é parte do sistema sendo replicado. Uma maneira de atingir este objetivo, tendo como inspiração o conceito de vida primitiva baseada em RNA [ácido ribonucléico], seria uma enzima do tipo RNA que catalisasse a replicação de moléculas de RNA, incluindo a replicação da própria enzima.
Isso foi realizado em um sistema catalítico cruzado com duas enzimas de RNA que catalisam a síntese uma da outra a partir de quatro substratos diferentes.)

Os autores utilizaram uma enzima RNA chamada de R3C e, após formar um complexo enzimático cruzado, estabeleceram as condições para que as enzimas se auto-replicassem sem qualquer interferência externa. Após o consumo inicial das unidades que constituem o RNA (citidina-guanosina, adenosina-uridina), as enzimas formadas foram transferidas para um novo meio reacional contendo quantidades adicionais das suas unidades formadoras. Tal procedimento foi repetido várias vezes, de maneira seqüencial. Assim, as enzimas RNA continuaram a crescer e adquirir sequências de pares C-G, U-A cada vez maiores. Porém, o mais interessante é que as enzimas formadas não se formam na mesma proporção. Algumas sequências são formadas mais rapidamente e crescem mais, dando origem a fragmentos mais longos, e, portanto, são enzimas de RNA mais complexas geradas a partir da ação inicial da R3C.

Ou seja, os autores conseguiram provar sua proposta (hipótese) de formação de um sistema auto-catalítico auto-sustentado. O mais interessante é que o sistema como um todo evolui, e dá origem a poucos fragmentos maiores e mais complexos de RNA, que são mais estáveis. Ou seja, o sistema sofre seleção em função da estabilidade dos produtos formados.


Ver o artigo original para a explicação destes gráficos. O gráfico B indica a população relativa de diferentes enzimas RNA formadas.

As conclusões finais dos autores são que
Populations of cross-replicating RNA enzymes can serve as a simplified experimental model of a genetic system with, at present, two genetic loci and 12 alleles per locus. (…) In order to support much greater complexity, it will be necessary to constrain the set of substrates, for example, by using the population of newly formed enzymes to generate a daughter population of substrates. An important challenge for an artificial RNA-based genetic system is to support a broad range of encoded functions, well beyond replication itself.

(Populações de enzimas RNA de replicação cruzada podem servir como modelos experimentais simplificados de um sistema genético com, até agora, 2 loci genéticos e 12 alelos por locus [biólogos e/ou geneticistas: ajuda nestas definições são bem-vindas!]. (…) De forma a suportar uma complexidade muito maior, será necessário restringir o conjunto de substratos, utilizando, por exemplo, a população de enzimas recém-formadas para gerar uma população de substratos “prole”. Um desafio importante para um sistema genético artificial baseado em RNA é apresentar uma ampla variedade de funções codificadas, muito além da simples replicação.)

Em pouco mais de 1 ano, este artigo foi citado por 40 outros artigos científicos (resultados de busca no Institute for Scientific Information – Web of Science), e deu origem a quase 2.000 “entradas” no Google (utilizando a expressão “Self-Sustained Replication of an RNA Enzyme”, com as aspas. Desta maneira a busca no Google é feita com a expressão completa, na ordem especificada). Poderia-se pensar que tais menções pudessem ser a respeito do total absurdo, ou conclusões errôneas, publicado pelos autores. Muito pelo contrário. O artigo de Lincoln e Joyce serviu não somente de base experimental para outros trabalhos, mas também de suporte para a inferência sobre a real pertinência de formação de sistemas biológicos primitivos formados a partir de RNA (o assim chamado “RNA-world”).

Grande sacada dos pesquisadores do Scripps Research Institute (California, EUA). Um bom artigo não passa despercebido.

Muito pelo contrário. Um artigo, um único artigo científico, extremamente ousado e original, com idéias realmente revolucionárias, pode levar ao inesperado: o Prêmio Nobel. Keinichi Fukui e Roald Hoffmann dividiram o Prêmio Nobel de Química de 1981 pela publicação de um único artigo cada um. O de Fukui, originalmente publicado em 1952, foi extremamente criticado à época. O de Hofmann foi publicado em conjunto com Robert B. Woodward (em 3 versões, é verdade, mas que na essência são o mesmo trabalho): “The Conservation of Orbital Symmetry”, originalmente na revista Accounts of Chemical Research em 1968. A versão expandida foi publicada no ano seguinte, com o mesmo título, na revista Angewandte Chemie International Edition. O mesmo artigo foi publicado de maneira bastante sumarizada, com o título “Orbital Symmetry Control of Chemical Reactions”, no ano seguinte na revista Science. Esta teoria, denominada “Teoria dos Orbitais Moleculares de Fronteira” (Frontier Molecular Orbitals Theory), literalmente revolucionou o entendimento da química orgânica, e hoje é ensinada em livros-texto adotados em salas de aula no mundo todo. Woodward também ganhou o Prêmio Nobel de Química, por suas inúmeras contribuições ao desenvolvimento da síntese de substâncias orgânicas.

A Teoria dos Orbitais Moleculares de Fronteira é razoavelmente complicada para ser explicada de maneira simples, mas pode ilustrada de maneira extremamente simplista. Os elétrons em volta dos átomos ocupam regiões chamadas de orbitais. A formação de ligações químicas entre átomos resulta da combinação destes orbitais atômicos, formando orbitais moleculares. A maneira como os orbitais atômicos se combinam para formar orbitais moleculares foi inicialmente explicada pela teoria da mecânica quântica (que consegue explicar a formação de ligações em moléculas extremamente simples, como o gás hidrogênio, H2). Hoffmann e Fukui elaboraram um modelo, de certa forma pictórico, que explica como ocorrem reações químicas orgânicas entre moléculas muito mais complexas do que o H2.


Reação concertada entre um dieno e um dienófilo, que obedece às regras de Woodwad-Hoffmann, de acordo com a Teoria dos Orbitais Moleculares de Fronteira.

Bingo!

Grandes sacadas científicas -> bons artigos científicos -> eventualmente o Prêmio Nobel.

ResearchBlogging.orgFukui, K., Yonezawa, T., & Shingu, H. (1952). A Molecular Orbital Theory of Reactivity in Aromatic Hydrocarbons The Journal of Chemical Physics, 20 (4) DOI: 10.1063/1.1700523
ResearchBlogging.orgLincoln, T., & Joyce, G. (2009). Self-Sustained Replication of an RNA Enzyme Science, 323 (5918), 1229-1232 DOI: 10.1126/science.1167856
ResearchBlogging.orgHoffmann, R., & Woodward, R. (1968). Conservation of orbital symmetry Accounts of Chemical Research, 1 (1), 17-22 DOI: 10.1021/ar50001a003
ResearchBlogging.orgWoodward, R., & Hoffmann, R. (1969). The Conservation of Orbital Symmetry Angewandte Chemie International Edition in English, 8 (11), 781-853 DOI: 10.1002/anie.196907811
ResearchBlogging.orgHoffmann, R., & Woodward, R. (1970). Orbital Symmetry Control of Chemical Reactions Science, 167 (3919), 825-831 DOI: 10.1126/science.167.3919.825

Pinte o 7, com RMN-MOUSE

Hoje em dia cada vez mais se realizam exames e diagnósticos por imagem gerada por Ressonância Magnética Nuclear (RMN), ou simplesmente “exames de ressonância”. Frequentemente médicos solicitam exames deste tipo, que não são invasivos (ou seja, não é necessária a inserção de uma sonda no corpo do paciente), não é necessário se tomar uma substância que forneça contraste (como em exames de raios-X, em que pode-se tomar substâncias contendo Iodo ou Bário radioativos para aumentar o contraste da imagem gerada), e o exame não é nocivo para a saúde nem do médico nem do paciente, pois não ficam expostos à radiação (como no caso de exames de raios-x).

Mas, então, qual é o princípio da análise por RMN? Como ela funciona?

Como o próprio nome diz, a técnica se fundamenta no uso das propriedades magnéticas dos núcleos dos átomos. Mas não de qualquer átomo. Não são todos os átomos que podem ser detectados por RMN, apenas alguns. Todos aqueles que não apresentam a massa atômica de número par e número atômico também de número par. Por exemplo, o isótopo 12 do carbono (massa atômica = 12; número atômico = 6) e o isótopo 16 do oxigênio (número de massa = 16; número atômico = 8) não podem ser detectados por RMN. Porquê? Porque os seus núcleos não se comportam como ímãs sub-atômicos.

Ímãs sub-atômicos? Exatamente. Ímãs sub-atômicos, pois são os NÚCLEOS de outros átomos, que não têm número de massa par e número atômico também par, que se comportam como ímãs. Por exemplo, o hidrogênio (massa atômica = 1; número atômico = 1), o isótopo de massa 13 do carbono (massa atômica = 13; número atômico = 6), o deutério (massa atômica = 2; número atômico = 1), o nitrogênio 14 (massa atômica = 14; número atômico = 7), e muitos outros. Comportando-se como ímãs, estes núcleos apresentam um determinado campo magnético. Ora, leitor, você já experimentou colocar um ímã perto de outro? Os dois ímãs “se sentem” mutuamente, em uma relação recíproca.


Não é uma nave espacial, e sim um aparelho de RMN de 900 MHz

Esta propriedade de determinados núcleos se comportarem como ímãs sub-atômicos permite que sejam detectados por aparelhos de RMN, que apresentam um ímã para detectar núcleos. A explicação física de como estes aparelhos funcionam é relativamente complicada, mas pode ser resumida da seguinte maneira: núcleos de átomos que apresentam caráter magnético têm uma determinada freqüência de precessão em torno do próprio eixo. Ou seja, estes núcleos giram em torno de si próprios, com uma determinada freqüência de precessão (número de voltas por segundo, ou freqüência, em Hertz). Quando se ajusta a freqüência do campo magnético do aparelho de RMN para detectar um determinado tipo de núcleo (hidrogênio, por exemplo), os dois campos magnéticos, o do núcleo e o do aparelho, entram em ressonância. Daí surgiu o nome da técnica de RMN. É muito parecida com o funcionamento de um rádio: você tem uma emissora de rádio (que seria o núcleo do átomo que se deseja detectar) e um aparelho de recepção de ondas de rádio (ou, um rádio). Para ouvir aquela emissora de rádio é necessário se ajustar a frequência de recepção das ondas de rádio no aparelho de rádio. Desta forma, o aparelho de rádio “entra em ressonância” com a emissora de rádio.

Bom, e daí? E daí que nós humanos temos cerca de 70% de água no nosso corpo. E água tem hidrogênio (H2O). Logo, aparelhos de RMN detectam água. O diagnóstico por RMN é feito observando-se o padrão de distribuição de água nos tecidos do corpo. Se o padrão de distribuição estiver “anormal”, alguma coisa está errada.

A descoberta do fenômeno de RMN literalmente revolucionou a ciência. Esta descoberta foi feita independentemente por Bloch e Purcell, que dividiram o prêmio Nobel de Física de 1952. Richard Ernst e Kurt Wütrich também ganharam o prêmio Nobel  em 1991 e 2002 por terem se dedicado ao desenvolvimento e utilização da técnica de RMN na geração de imagens, em análises químicas, físicas, biológicas, geoquímicas, em química de materiais e em outros ramos do conhecimento. Atualmente qualquer universidade do mundo que realiza pesquisa em química e/ou em física possui pelo menos um aparelho de RMN. São aparelhos sofisticados, grandes e caros, em contínuo aprimoramento. Praticamente a cada 2 anos são lançados novos modelos, extremamente versáteis, de aparelhos de RMN. Os campos magnéticos utilizados nos aparelhos de RMN são gerados por magnetos supercondutores que devem ser resfriados por hélio líquido (a cerca de -269 graus Celsius), cujo reservatório deve ser resfriado com nitrogênio líquido (cerca de -200 graus Celsius).

Até recentemente a utilização de aparelhos de RMN estava limitada à localização destes em institutos acadêmicos, ou institutos de pesquisa especializados, em centrais de análises ou ainda em instituições médicas. Porém, já nos anos 80 pesquisadores começaram a desenvolver aparelhos de RMN portáteis, os quais foram colocados em uso em 1996, e atualmente estão sendo cada vez mais utilizados para os mais diversos fins: análise de asfalto de ruas e estradas, de estruturas de pontes e análises de solo. Denominados aparelhos de RMN de varredura (Stray-Field NMR), são aparelhos de RMN em miniatura. São colocados muito próximos à superfície do material que se pretende analisar, de maneira que a geração de um campo magnético pelo aparelho permite que os núcleos dos átomos de hidrogênio no material sob análise sejam detectados. Em geral, analisa-se o padrão de distribuição de água. Mas também de gordura, ou de proteínas.

O aparelho de RMN portátil foi batizado, muito apropriadamente, de RMN-MOUSE (MObile Universal Surface Explorer). Tem o tamanho de um aparelho de telefone celular grande, ou um palm, e é empregado movendo-se um campo magnético que não varia. O aparelho é colocado próximo à superfície que se deseja analisar. O sinal registrado é transmitido para um computador através de um cabo, obtendo-se imagens tanto da superfície como de camadas próximas à superfície, para que se possa conhecer a constituição do material sob análise. A resolução da imagem gerada pode chegar a 2,3 um. Uma das aplicações mais interessantes do RMN-MOUSE é na análise de obras de arte e de construções históricas, de grande valor cultural.


aparelho de RMN-mouse

Por exemplo, a pintura “Adoração de Magi” (Pietro Perugino, pintada entre 1496-1498) foi analisada por RMN-MOUSE, e indicou uma diferença de espessura no tecido da tela das bordas quando comparada com a espessura do centro da pintura. No caso da pintura “Pala Albergotti” (Giorgio Vasari), detectou-se uma diferença da espessura de tinta no centro e nas extremidades da pintura. Esta diferença foi atribuída à presença de oxalatos (sais de ácido oxálico, HO2C-CO2H), originários da degradação da proteína utilizada no acabamento da pintura, detectadas por RMN-MOUSE, microsopia óptica e espectroscopia no infravermelho.


Adoração de Magi, de Pietro Parugino


Pala Albergotti, de Giorgio Vasari

A técnica de RMN-MOUSE também é utilizada na análise de
documentos antigos, uma vez que papel é feito com celulose e lignina, que apresentam tanto “água aprisionada” como “água livre” na sua estrutura. No caso de papel e madeira danificados, a quantidade de água e a crsitalinidade da celulose sofrem modificações, e podem ser detectadas. Assim, é possível se saber qual a extensão do comprometimento de documentos antigos de acordo com o teor de água que estes apresentam. Também se observou efeito corrosivo de tinta utilizada na escrita, feita de ferro e taninos (iron gall ink), em documentos do Codex Major da Collectio Altaemsiana.


tinta de ferro e taninos (iron gall ink)

A técnica de RMN-MOUSE já foi utilizada na análise da madeira de violinos Stradivarius. Em alguns casos, foi possível saber quantas camadas de verniz foram aplicadas na madeira da confecção dos instrumentos. Também foi possível se verificar que os violinos mais antigos foram fabricados com madeiras mais densas, e que a densidade da madeira influencia diretamente na qualidade do som produzido pelo instrumento. Tal técnica também pode ser empregada na distinção de violinos verdadeiramente antigos daqueles que são falsificados.

A RMN-MOUSE é empregada para se analisar o teor de água em paredes de prédios e monumentos históricos, de maneira a que os restauradores possam utilizar o material mais adequado na restauração de tais construções. A análise dos afrescos pintados por Pelledrino degli Aretusi na Capela Serra da Igreja da Nossa Senhora do Sagrado Coração, em Roma, indicou que estes estão sujeitos à umidade que se inflitra a partir do solo. A análise detalhada da distribuição de água nos afrescos indicou em que locais este se encontra mais afetado e deve ser restaurado. O teor de água no mosaico Netuno e Amphitrite foi analisado por RMN-MOUSE, e apresentou grandes diferenças de umidade dependendo da área do mosaico.


Netuno e Amphitrite, Herculaneum

Além disso, a análise de monumentos históricos e obras de arte por RMN-MOUSE são extremamente úteis para se indicar quais materiais são mais indicados para sua restauração, dependendo do teor de água, da porosidade do material a ser restaurado e como o emprego de diferentes substâncias na restauração pode afetar a obra a ser restaurada.

Aparelhos de RMN móveis são extremamente versáteis e úteis para se analisar pinturas, madeira, papel, bem como materiais de construção. Atualmente a técnica está sendo aprimorada, para que sua sensibilidade seja aumentada e possa ser facilmente utilizada. Outros núcleos diferentes de hidrogênio também poderão ser analisados em um futuro próximo, como Alumínio-29, presente em vidros e cerâmicas. O futuro é extremamente promissor para a utilização de RMN, nas mais variadas aplicações.

ResearchBlogging.orgBlümich, B., Casanova, F., Perlo, J., Presciutti, F., Anselmi, C., & Doherty, B. (2010). Noninvasive Testing of Art and Cultural Heritage by Mobile NMR, Accounts of Chemical Research DOI: 10.1021/ar900277h

Darwin e Deus, Deus e Darwin

Quando perguntam no que você crê, no que você diz que acredita? Na sorte. No destino. No amor. Em Deus. Mas quando perguntam se você acredita em alguém, das duas uma: ou você acredita, e portanto esse alguém diz a verdade, ou não, e este alguém está mentindo. Em uma tal situação, é necessário se provar que a pessoa que afirma algo diz a verdade ou não. Muitas vezes se determinar a verdade dos fatos, ou de argumentos apresentados, não é fácil. Por mais que se busquem argumentos e evidências.

A ciência busca evidências para confirmar hipótese ou propostas, tendo por base a coleta anterior de informações que levam à formulação de tais hipóteses ou propostas. Uma vez encontradas, tais evidências servirão para estabelecer uma maneira de como pode se entender um determinado fenômeno, ou um conjunto deles. Quanto mais evidências são encontradas para se confirmar a existência ou a compreensão de determinados fenômenos, tanto melhor estes poderão ser explicados. Ao conjunto de evidências, e suas inter-relações, que explicam um determinado conjunto de fenômenos dá-se o nome de teoria.

No decorrer da história da humanidade, teorias surgiram e foram sendo substituídas. À medida que se verificava que uma determinada teoria, utilizada para explicar um conjunto de fenômenos, não conseguia os explicar adequadamente, buscou-se novas idéias para formar novas teorias. Assim foi, por exemplo, o processo de conhecimento da constituição da matéria. O filósofo grego Demócrito (cerca de 460 a.C.) foi o primeiro a formular a idéia de átomo, como unidade indivisível que constitui a matéria. Na sua essência, as idéias de Demócrito sofreram poucas modificações até o século XVIII, quando John Dalton (1766-1844) as aprimorou, dizendo que existiam diferentes tipos de átomos, e que estes podiam se combinar formando diferentes substâncias. Além disso, Dalton afirmou que os átomos não podiam ser destruídos e que quando formavam substâncias, os átomos se combinavam em proporções bem definidas. Já no século XIX, J. J. Thomson (1856-1940) descobriu que os átomos eram constituídos por elétrons, muito menores, e sugeriu que os diferentes tipos de átomos teriam uma estrutura de um “pudim de ameixas”, onde as ameixas seriam os elétrons.

Entre o fim do século XIX e o início do século XX, Ernest Rutherford (1871-1937) estudou o comportamento dos átomos com experimentos de radiação e verificou que os átomos também possuíam partículas positivas, os prótons, e partículas neutras, os nêutrons. Além disso, seus experimentos permitiram afirmar que os prótons e os nêutrons seriam “responsáveis” por praticamente toda a massa de cada átomo. Assim, por exemplo, o átomo de hidrogênio mostrou ter um único próton e uma massa correspondente de 1 u.m.a. (unidade de massa atômica, que corresponde à massa em gramas de 6,02 . 1023 átomos de um determinado tipo). O oxigênio mostrou ter massa de 16 u.m.a., o nitrogênio de 14 u.m.a. Rutherford também afirmou que os prótons e os nêutrons estariam localizados no centro dos átomos, que teria uma carga positiva, e que os elétrons estariam em órbitas em volta do núcleo. O problema da teoria de Rutherford é que se os átomos comportam-se como pequenos “sistemas solares”, com elétrons girando em torno dos núcleos (de forma que a força centrífuga de movimento dos elétrons compensaria a atração eletrostática dos prótons), de acordo com a teoria da mecânica clássica de Newton os elétrons deveriam emitir energia radiante, perdendo energia e coalescendo com os núcleos, o que não foi observado. Logo, a teoria de Rutherford estava furada. Mesmo assim, Rutherford recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1908, por suas investigações sobre a desintegração dos elementos e a química das substâncias radioativas.

Niels Bohr (1885-1962) deu continuidade aos estudos de Rutherford, e desenvolveu um modelo físico-matemático para explicar o comportamento dos elétrons. De acordo com a teoria de Bohr os elétrons se situariam em regiões bem específicas dos átomos, chamadas de orbitais atômicos. Uma vez que estavam situados nestas regiões, os elétrons apresentariam quantidades bem definidas de energia. Além disso, Bohr propôs que os elétrons apresentariam movimento em torno de seu próprio eixo, definido como momento angular, e também que os elétrons se comportariam como ondas se propagando em torno do núcleo do átomo em que se situam, sem perder energia e sem coalescer com o núcleo. A teoria de Bohr foi denominada de teoria da mecânica quântica, e teve como base as idéias de Max Planck (1858-1947). A teoria de Bohr permitiu explicar a decomposição da luz de determinados tipos de lâmpadas, e Bohr ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1922.

Erwin Schröndinger (1887-1961) aprimorou a teoria de Bohr, estabelecendo um modelo que explicava o comportamento dos elétrons em termos de números quânticos, que justificariam não somente o comportamento dos elétrons,  mas também das ligações químicas entre átomos. Recebeu o prêmio Nobel de Física em 1933.

Ao longo da história, as pesquisas e contribuições de Lavoisier, John Dalton, Avogadro, Gay-Lussac, Berzelius, Cannizaro, Berthelot, Kekulé, Mendeleev, Boltzmann, Le Bel, Van’t Hoff, Thomson, Planck, Rutherford, Bohr, Schrondinger, de Broglie, Einstein e Heisenberg permitiram o acúmulo de evidências e a formulação de modelos que explicam o comportamento da matéria, e chegar a um consenso muito bem aceito sobre a estrutura da matéria. Assim, faz parte da formação de todo estudante do ensino médio conhecer as idéias básicas da teoria que explica a estrutura e o comportamento da matéria.

A história da teoria da evolução não é diferente. De maneira bastante simplista, nasceu com Aristóteles, Anaximander e Empedocles, foi posteriormente desenvolvida pelo biólogo afro-árabe Al-Jahiz, o filósofo persa Ibn Miskawayh, o filósofo chinês Zhuangzi, aprimorada por Pierre Maupertuis, Erasmus Darwin, John Ray, Lineu, Buffon, amadurecida por Lamarck, chegando à sua formulação geral mais aceita por Charles Darwin e Wallace. Porém foi bastante aperfeiçoada durante os últimos 150 anos, principalmente depois do surgimento da genética, da ecologia, da simbiose, e outras derivações biológicas, que levaram à formulação da Síntese Evolucionária Moderna por Julian Huxley, R. A. Fisher, Theodosius Dobzhansky, J.B.S. Haldane, Sewall Wright, E.B. Ford, Ernst Mayr, Bernhard Rensch, Sergei Chetverikov, George Gaylord Simpson e G. Ledyard Stebbins.

A teoria da evolução tem o mesmo status científico da teoria da estrutura da matéria, ou da teoria da mecânica quântica, e da teoria da relatividade de Einstein.

Esta longa introdução tem por objetivo mostrar que as teorias científicas se constroem de maneira extremamente consistente, sendo continuamente questionadas, testadas e verificadas, de maneira a confirmar sua consistência, seu caráter geral e sua falseabilidade.

Por isso, quando o editorial (3/4/2010) de um jornal como a Folha de São Paulo afirma que

“Brasileiros parecem ter discernimento intuitivo de que questões de ciência não competem com convicção religiosa”,

deve-se analisar tal afirmação de maneira a se entender se esta faz sentido ou não.

Faz sentido pensar se “questões de ciência competem com convicção religiosa”? Não, não faz simplesmente porque as religiões nunca foram objeto de estudo das ciências naturais (mas foram da filosofia, da história, da psicologia, da sociologia, da educação, etc.). A ciência não compete com a religião. Não é objetivo das ciências naturais verificar se Deus existe ou não, ou se as religiões fazem sentido ou não.

O editorial do jornal diz ainda que

“a maioria dos brasileiros (59%) combina a aceitação do processo darw
iniano com a fé na condução e supervisão divina, situadas num plano superior ao da natureza. Embora inverossímil aos olhos de quem for ateu, essa conciliação de crenças [o grifo é meu] não é absurda. Sugere, ao contrário, um discernimento intuitivo de que questões de ciência não competem com questões de convicção religiosa. São campos que correspondem a dimensões diferentes da consciência humana.”

Crença? A Teoria da Evolução não é uma crença. É um fato. Comprovado, dezenas, centenas de vezes, ao longo de 150 anos desde que Darwin e Wallace a propuseram. O discernimento intuitivo de parcela significativa da população brasileira parece ser bastante razoável, uma vez que, segundo o jornal, consegue fazer uma distinção entre ciência (evolução) e crença (Deus). Porém, o editorial do jornal não faz esta distinção. Seria cômico, se não fosse trágico.

O jornal também estabelece uma relação direta entre ciência e ateísmo, quando diz que

“UMA APAIXONADA predileção por besouros.” Essa foi a resposta de J.B.S. Haldane (1892-1964) quando lhe perguntaram o que a teoria da seleção natural revelava a respeito dos desígnios de Deus. O biólogo britânico, que era ateu, aludia de forma irônica à fantástica abundância de insetos coleópteros na natureza.

Pesquisa Datafolha publicada ontem revelou que apenas 8% dos brasileiros endossariam Haldane, ao concordar que os seres vivos são produto de lentíssima evolução na qual variações fortuitas, mas vantajosas à sobrevivência e reprodução, se disseminam e acabam por dar origem a novas espécies, mais adaptadas a seu ambiente. Seriam os darwinistas “puros”.

O fato do editorial iniciar com esta narrativa traz em sua mensagem o fato de Haldane ser ateu e o relacionar ao “darwinismo puro” (termo criado pelo jornal). Tal relação não existe. Ser ateu ou acreditar em Deus é uma questão de foro íntimo, de cada pessoa. A validade de teorias científicas independe de acreditarmos nelas ou não. Como o próprio editorial afirma, a ciência e a crença “são campos que correspondem a dimensões diferentes da consciência humana.” Logo, não podem ser considerados em um mesmo contexto.

Porém, a distinção “percebida intuitivamente” pela população não parece ser considerada em seu inverso, ou seja, “Brasileiros parecem ter discernimento intuitivo de que questões religiosas não competem com teorias científicas”. Seria esta afirmativa verdadeira? Aparentemente, não. Se 59% da população acredita que Deus interfere no processo evolutivo, fica evidente que não há uma distinção clara e perceptível de que a ciência se constrói com base no método científico e a crença é variável, de pessoa para pessoa, de acordo com seus valores, sua história pessoal e sua inserção social. São dois contextos bem diferentes.

Embora o “sincretismo brasileiro” entre a Teoria da Evolução e a crença religiosa à que se refere a Folha possa fazer sentido para muitos, este revela a falta de conhecimento por parcela significativa da população, que mistura, talvez inconscientemente,  ciência e religião para satisfazer questões de foro íntimo. Se, por um lado, tal “sincretismo” possa se revelar positivo no sentido de mostrar que a população conhece a Teoria de Evolução, por outro lado tal parcela da população não percebe que esta, no seu âmago, dispensa completamente a noção do sobrenatural, de um ser ou uma energia que direcione ou organize o processo evolutivo. Sendo assim, existe um claro paradoxo de conceituação e compatibilidade entre uma concepção de mundo e uma teoria científica, evidente pela falta de conhecimento sobre esta distinção. Como bem disse Sandro José de Souza, em texto publicado no dia anterior (2/4/2010) no mesmo jornal

“Esta corrente do criacionismo, o evolucionismo teísta, é a mais moderada, no sentido que aceita todas as evidências científicas, mas mantém Deus como agente causal. O evolucionismo teísta, no entanto, não pode ser tratado como ciência devido à sua natureza metafísica. A existência ou não de Deus não pode ser testada e por isso não é científica, e sua aceitação depende de um estado da mente chamado de fé. A evolução, por outro lado, é fato corroborado por evidências científicas acumuladas nos últimos 150 anos.”

Aonde está o problema?

Na educação formal, escolar. A educação escolar é a base para o indivíduo adquirir conhecimento em todas as esferas, bem como espírito de análise, crítico e de distinção. É importante para, justamente, perceber que temas de discussão e questionamento pertencem a diferentes esferas. Com este objetivo, o Conselho do Parlamento Europeu publicou em outubro de 2007 uma resolução do porquê o ensino de criacionismo deve ser restrito às aulas de religião, ao mesmo tempo em que se reforça a necessidade de um ensino de ciências aprofundado, como indicado no artigo 19 da resolução, transcrito a seguir:

The Parliamentary Assembly therefore urges the member states, and especially their education authorities to:

19.1. defend and promote scientific knowledge;

19.2. strengthen the teaching of the foundations of science, its history, its epistemology and its methods alongside the teaching of objective scientific knowledge;

19.3. make science more comprehensible, more attractive and closer to the realities of the contemporary world;

19.4. firmly oppose the teaching of creationism as a scientific discipline on an equal footing with the theory of evolution and in general the presentation of creationist ideas in any discipline other than religion;

19.5. promote the teaching of evolution as a fundamental scientific theory in the school curriculums.

Ainda citando Sandro J. de Souza, da mesma reportagem de 2/4

“(…) a predominância de uma visão teísta na população brasileira gera um risco de que assuntos da fé sobreponham-se a assuntos da ciência. Aulas de ciência devem se ater à ciência.
Temos visto figuras públicas manifestarem-se a favor da equiparação entre evolucionismo e criacionismo. Escolas brasileiras já ensinam criacionismo em aulas de ciência. Tal absurdo coloca em risco a formação de milhões de brasileiros.”

A falta de conhecimento para se distinguir método científico e teoria da evolução da crença religiosa é demonstrada pelos resultados da pesquisa realizada pelo Datafolha, publicados em reportagem do dia anterior (sexta feira, 2/4/2010). Segundo o jornal, os dados indicam que, dentre os ateus, “7% também se classificam como criacionistas da Terra jovem e 23% como partidários da evolução comandada por Deus.” Por definição, ateus não acreditam em Deus. Ou seja, existe até desconhecimento do que seja ser ateu.

Tal desconhecimento chega à beira de seu limite quando o criacionista Michelson Borges assinala em seu artigo (“Teoria é mal compreendida”), publicado na mesma página, da mesma edição, que

“Segundo o criacionismo, Deus criou os tipos básicos de seres vivos e eles sofreram modificações, dentro de limites preestabelecidos. Dizer que elas descendem de um mesmo ancestral unicelular comum é extrapolação.”

Se parte da Teoria da Evolução estivesse errada, por assumir que seres vivos não descendem de tipos básicos e que não sofrem modificações dentro de limites pré-estabelecidos, teria que ser imediatamente abandonada. Sem dó nem piedade. Não poderia mais ser aceita para explicar a biodiversidade do planeta Terra. Não poderia mais ser adotada para entender o processo de surgimento de viroses, de resistência bacteriana, de novas espécies de organismos vivos. Não poderia ser ensinada nas escolas.

O método científico é rigoroso, e se fundamenta em um questionamento constante, em contínua elab
oração e aperfeiçoamento, de maneira a trazer à luz o conhecimento sem que este tenha que se fundamentar em hipóteses mal formuladas, em justificativas parciais ou em idéias pré-concebidas. O método científico resulta de mais de 2000 anos de história da humanidade associado à história da cultura, da geração do conhecimento e busca do entendimento dos fenômenos naturais. Querendo ou não, é de longe a melhor forma de fornecer explicações sobre a validade (ou não) de conceitos, tais como os indicados por Michelson Borges: “informação complexa, aperiódica e específica” e “códigos zipados, encriptados, compartimentados e com uma lógica algorítmica”.

A distinção entre ciência e religião nos mostra que “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”, pois têm em sua essência pressupostos diferentes. Uma se fundamenta em experimentação, observação e verificação, e a outra em fé. O fato de cientistas serem católicos, muçulmanos, ateus ou budistas não interefere, em absoluto, na validade da ciência e do método científico. São duas concepções distintas, uma de visão de mundo pessoal a outra de geração de conhecimento e conhecimento de como os processos naturais funcionam. Por isso,  uma educação de qualidade, que permita formar cidadãos esclarecidos, é absolutamente imprescindível para o bom entendimento do que é ciência e do que é religião.

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