Darwin e Deus, Deus e Darwin

Quando perguntam no que você crê, no que você diz que acredita? Na sorte. No destino. No amor. Em Deus. Mas quando perguntam se você acredita em alguém, das duas uma: ou você acredita, e portanto esse alguém diz a verdade, ou não, e este alguém está mentindo. Em uma tal situação, é necessário se provar que a pessoa que afirma algo diz a verdade ou não. Muitas vezes se determinar a verdade dos fatos, ou de argumentos apresentados, não é fácil. Por mais que se busquem argumentos e evidências.

A ciência busca evidências para confirmar hipótese ou propostas, tendo por base a coleta anterior de informações que levam à formulação de tais hipóteses ou propostas. Uma vez encontradas, tais evidências servirão para estabelecer uma maneira de como pode se entender um determinado fenômeno, ou um conjunto deles. Quanto mais evidências são encontradas para se confirmar a existência ou a compreensão de determinados fenômenos, tanto melhor estes poderão ser explicados. Ao conjunto de evidências, e suas inter-relações, que explicam um determinado conjunto de fenômenos dá-se o nome de teoria.

No decorrer da história da humanidade, teorias surgiram e foram sendo substituídas. À medida que se verificava que uma determinada teoria, utilizada para explicar um conjunto de fenômenos, não conseguia os explicar adequadamente, buscou-se novas idéias para formar novas teorias. Assim foi, por exemplo, o processo de conhecimento da constituição da matéria. O filósofo grego Demócrito (cerca de 460 a.C.) foi o primeiro a formular a idéia de átomo, como unidade indivisível que constitui a matéria. Na sua essência, as idéias de Demócrito sofreram poucas modificações até o século XVIII, quando John Dalton (1766-1844) as aprimorou, dizendo que existiam diferentes tipos de átomos, e que estes podiam se combinar formando diferentes substâncias. Além disso, Dalton afirmou que os átomos não podiam ser destruídos e que quando formavam substâncias, os átomos se combinavam em proporções bem definidas. Já no século XIX, J. J. Thomson (1856-1940) descobriu que os átomos eram constituídos por elétrons, muito menores, e sugeriu que os diferentes tipos de átomos teriam uma estrutura de um “pudim de ameixas”, onde as ameixas seriam os elétrons.

Entre o fim do século XIX e o início do século XX, Ernest Rutherford (1871-1937) estudou o comportamento dos átomos com experimentos de radiação e verificou que os átomos também possuíam partículas positivas, os prótons, e partículas neutras, os nêutrons. Além disso, seus experimentos permitiram afirmar que os prótons e os nêutrons seriam “responsáveis” por praticamente toda a massa de cada átomo. Assim, por exemplo, o átomo de hidrogênio mostrou ter um único próton e uma massa correspondente de 1 u.m.a. (unidade de massa atômica, que corresponde à massa em gramas de 6,02 . 1023 átomos de um determinado tipo). O oxigênio mostrou ter massa de 16 u.m.a., o nitrogênio de 14 u.m.a. Rutherford também afirmou que os prótons e os nêutrons estariam localizados no centro dos átomos, que teria uma carga positiva, e que os elétrons estariam em órbitas em volta do núcleo. O problema da teoria de Rutherford é que se os átomos comportam-se como pequenos “sistemas solares”, com elétrons girando em torno dos núcleos (de forma que a força centrífuga de movimento dos elétrons compensaria a atração eletrostática dos prótons), de acordo com a teoria da mecânica clássica de Newton os elétrons deveriam emitir energia radiante, perdendo energia e coalescendo com os núcleos, o que não foi observado. Logo, a teoria de Rutherford estava furada. Mesmo assim, Rutherford recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1908, por suas investigações sobre a desintegração dos elementos e a química das substâncias radioativas.

Niels Bohr (1885-1962) deu continuidade aos estudos de Rutherford, e desenvolveu um modelo físico-matemático para explicar o comportamento dos elétrons. De acordo com a teoria de Bohr os elétrons se situariam em regiões bem específicas dos átomos, chamadas de orbitais atômicos. Uma vez que estavam situados nestas regiões, os elétrons apresentariam quantidades bem definidas de energia. Além disso, Bohr propôs que os elétrons apresentariam movimento em torno de seu próprio eixo, definido como momento angular, e também que os elétrons se comportariam como ondas se propagando em torno do núcleo do átomo em que se situam, sem perder energia e sem coalescer com o núcleo. A teoria de Bohr foi denominada de teoria da mecânica quântica, e teve como base as idéias de Max Planck (1858-1947). A teoria de Bohr permitiu explicar a decomposição da luz de determinados tipos de lâmpadas, e Bohr ganhou o Prêmio Nobel de Física em 1922.

Erwin Schröndinger (1887-1961) aprimorou a teoria de Bohr, estabelecendo um modelo que explicava o comportamento dos elétrons em termos de números quânticos, que justificariam não somente o comportamento dos elétrons,  mas também das ligações químicas entre átomos. Recebeu o prêmio Nobel de Física em 1933.

Ao longo da história, as pesquisas e contribuições de Lavoisier, John Dalton, Avogadro, Gay-Lussac, Berzelius, Cannizaro, Berthelot, Kekulé, Mendeleev, Boltzmann, Le Bel, Van’t Hoff, Thomson, Planck, Rutherford, Bohr, Schrondinger, de Broglie, Einstein e Heisenberg permitiram o acúmulo de evidências e a formulação de modelos que explicam o comportamento da matéria, e chegar a um consenso muito bem aceito sobre a estrutura da matéria. Assim, faz parte da formação de todo estudante do ensino médio conhecer as idéias básicas da teoria que explica a estrutura e o comportamento da matéria.

A história da teoria da evolução não é diferente. De maneira bastante simplista, nasceu com Aristóteles, Anaximander e Empedocles, foi posteriormente desenvolvida pelo biólogo afro-árabe Al-Jahiz, o filósofo persa Ibn Miskawayh, o filósofo chinês Zhuangzi, aprimorada por Pierre Maupertuis, Erasmus Darwin, John Ray, Lineu, Buffon, amadurecida por Lamarck, chegando à sua formulação geral mais aceita por Charles Darwin e Wallace. Porém foi bastante aperfeiçoada durante os últimos 150 anos, principalmente depois do surgimento da genética, da ecologia, da simbiose, e outras derivações biológicas, que levaram à formulação da Síntese Evolucionária Moderna por Julian Huxley, R. A. Fisher, Theodosius Dobzhansky, J.B.S. Haldane, Sewall Wright, E.B. Ford, Ernst Mayr, Bernhard Rensch, Sergei Chetverikov, George Gaylord Simpson e G. Ledyard Stebbins.

A teoria da evolução tem o mesmo status científico da teoria da estrutura da matéria, ou da teoria da mecânica quântica, e da teoria da relatividade de Einstein.

Esta longa introdução tem por objetivo mostrar que as teorias científicas se constroem de maneira extremamente consistente, sendo continuamente questionadas, testadas e verificadas, de maneira a confirmar sua consistência, seu caráter geral e sua falseabilidade.

Por isso, quando o editorial (3/4/2010) de um jornal como a Folha de São Paulo afirma que

“Brasileiros parecem ter discernimento intuitivo de que questões de ciência não competem com convicção religiosa”,

deve-se analisar tal afirmação de maneira a se entender se esta faz sentido ou não.

Faz sentido pensar se “questões de ciência competem com convicção religiosa”? Não, não faz simplesmente porque as religiões nunca foram objeto de estudo das ciências naturais (mas foram da filosofia, da história, da psicologia, da sociologia, da educação, etc.). A ciência não compete com a religião. Não é objetivo das ciências naturais verificar se Deus existe ou não, ou se as religiões fazem sentido ou não.

O editorial do jornal diz ainda que

“a maioria dos brasileiros (59%) combina a aceitação do processo darw
iniano com a fé na condução e supervisão divina, situadas num plano superior ao da natureza. Embora inverossímil aos olhos de quem for ateu, essa conciliação de crenças [o grifo é meu] não é absurda. Sugere, ao contrário, um discernimento intuitivo de que questões de ciência não competem com questões de convicção religiosa. São campos que correspondem a dimensões diferentes da consciência humana.”

Crença? A Teoria da Evolução não é uma crença. É um fato. Comprovado, dezenas, centenas de vezes, ao longo de 150 anos desde que Darwin e Wallace a propuseram. O discernimento intuitivo de parcela significativa da população brasileira parece ser bastante razoável, uma vez que, segundo o jornal, consegue fazer uma distinção entre ciência (evolução) e crença (Deus). Porém, o editorial do jornal não faz esta distinção. Seria cômico, se não fosse trágico.

O jornal também estabelece uma relação direta entre ciência e ateísmo, quando diz que

“UMA APAIXONADA predileção por besouros.” Essa foi a resposta de J.B.S. Haldane (1892-1964) quando lhe perguntaram o que a teoria da seleção natural revelava a respeito dos desígnios de Deus. O biólogo britânico, que era ateu, aludia de forma irônica à fantástica abundância de insetos coleópteros na natureza.

Pesquisa Datafolha publicada ontem revelou que apenas 8% dos brasileiros endossariam Haldane, ao concordar que os seres vivos são produto de lentíssima evolução na qual variações fortuitas, mas vantajosas à sobrevivência e reprodução, se disseminam e acabam por dar origem a novas espécies, mais adaptadas a seu ambiente. Seriam os darwinistas “puros”.

O fato do editorial iniciar com esta narrativa traz em sua mensagem o fato de Haldane ser ateu e o relacionar ao “darwinismo puro” (termo criado pelo jornal). Tal relação não existe. Ser ateu ou acreditar em Deus é uma questão de foro íntimo, de cada pessoa. A validade de teorias científicas independe de acreditarmos nelas ou não. Como o próprio editorial afirma, a ciência e a crença “são campos que correspondem a dimensões diferentes da consciência humana.” Logo, não podem ser considerados em um mesmo contexto.

Porém, a distinção “percebida intuitivamente” pela população não parece ser considerada em seu inverso, ou seja, “Brasileiros parecem ter discernimento intuitivo de que questões religiosas não competem com teorias científicas”. Seria esta afirmativa verdadeira? Aparentemente, não. Se 59% da população acredita que Deus interfere no processo evolutivo, fica evidente que não há uma distinção clara e perceptível de que a ciência se constrói com base no método científico e a crença é variável, de pessoa para pessoa, de acordo com seus valores, sua história pessoal e sua inserção social. São dois contextos bem diferentes.

Embora o “sincretismo brasileiro” entre a Teoria da Evolução e a crença religiosa à que se refere a Folha possa fazer sentido para muitos, este revela a falta de conhecimento por parcela significativa da população, que mistura, talvez inconscientemente,  ciência e religião para satisfazer questões de foro íntimo. Se, por um lado, tal “sincretismo” possa se revelar positivo no sentido de mostrar que a população conhece a Teoria de Evolução, por outro lado tal parcela da população não percebe que esta, no seu âmago, dispensa completamente a noção do sobrenatural, de um ser ou uma energia que direcione ou organize o processo evolutivo. Sendo assim, existe um claro paradoxo de conceituação e compatibilidade entre uma concepção de mundo e uma teoria científica, evidente pela falta de conhecimento sobre esta distinção. Como bem disse Sandro José de Souza, em texto publicado no dia anterior (2/4/2010) no mesmo jornal

“Esta corrente do criacionismo, o evolucionismo teísta, é a mais moderada, no sentido que aceita todas as evidências científicas, mas mantém Deus como agente causal. O evolucionismo teísta, no entanto, não pode ser tratado como ciência devido à sua natureza metafísica. A existência ou não de Deus não pode ser testada e por isso não é científica, e sua aceitação depende de um estado da mente chamado de fé. A evolução, por outro lado, é fato corroborado por evidências científicas acumuladas nos últimos 150 anos.”

Aonde está o problema?

Na educação formal, escolar. A educação escolar é a base para o indivíduo adquirir conhecimento em todas as esferas, bem como espírito de análise, crítico e de distinção. É importante para, justamente, perceber que temas de discussão e questionamento pertencem a diferentes esferas. Com este objetivo, o Conselho do Parlamento Europeu publicou em outubro de 2007 uma resolução do porquê o ensino de criacionismo deve ser restrito às aulas de religião, ao mesmo tempo em que se reforça a necessidade de um ensino de ciências aprofundado, como indicado no artigo 19 da resolução, transcrito a seguir:

The Parliamentary Assembly therefore urges the member states, and especially their education authorities to:

19.1. defend and promote scientific knowledge;

19.2. strengthen the teaching of the foundations of science, its history, its epistemology and its methods alongside the teaching of objective scientific knowledge;

19.3. make science more comprehensible, more attractive and closer to the realities of the contemporary world;

19.4. firmly oppose the teaching of creationism as a scientific discipline on an equal footing with the theory of evolution and in general the presentation of creationist ideas in any discipline other than religion;

19.5. promote the teaching of evolution as a fundamental scientific theory in the school curriculums.

Ainda citando Sandro J. de Souza, da mesma reportagem de 2/4

“(…) a predominância de uma visão teísta na população brasileira gera um risco de que assuntos da fé sobreponham-se a assuntos da ciência. Aulas de ciência devem se ater à ciência.
Temos visto figuras públicas manifestarem-se a favor da equiparação entre evolucionismo e criacionismo. Escolas brasileiras já ensinam criacionismo em aulas de ciência. Tal absurdo coloca em risco a formação de milhões de brasileiros.”

A falta de conhecimento para se distinguir método científico e teoria da evolução da crença religiosa é demonstrada pelos resultados da pesquisa realizada pelo Datafolha, publicados em reportagem do dia anterior (sexta feira, 2/4/2010). Segundo o jornal, os dados indicam que, dentre os ateus, “7% também se classificam como criacionistas da Terra jovem e 23% como partidários da evolução comandada por Deus.” Por definição, ateus não acreditam em Deus. Ou seja, existe até desconhecimento do que seja ser ateu.

Tal desconhecimento chega à beira de seu limite quando o criacionista Michelson Borges assinala em seu artigo (“Teoria é mal compreendida”), publicado na mesma página, da mesma edição, que

“Segundo o criacionismo, Deus criou os tipos básicos de seres vivos e eles sofreram modificações, dentro de limites preestabelecidos. Dizer que elas descendem de um mesmo ancestral unicelular comum é extrapolação.”

Se parte da Teoria da Evolução estivesse errada, por assumir que seres vivos não descendem de tipos básicos e que não sofrem modificações dentro de limites pré-estabelecidos, teria que ser imediatamente abandonada. Sem dó nem piedade. Não poderia mais ser aceita para explicar a biodiversidade do planeta Terra. Não poderia mais ser adotada para entender o processo de surgimento de viroses, de resistência bacteriana, de novas espécies de organismos vivos. Não poderia ser ensinada nas escolas.

O método científico é rigoroso, e se fundamenta em um questionamento constante, em contínua elab
oração e aperfeiçoamento, de maneira a trazer à luz o conhecimento sem que este tenha que se fundamentar em hipóteses mal formuladas, em justificativas parciais ou em idéias pré-concebidas. O método científico resulta de mais de 2000 anos de história da humanidade associado à história da cultura, da geração do conhecimento e busca do entendimento dos fenômenos naturais. Querendo ou não, é de longe a melhor forma de fornecer explicações sobre a validade (ou não) de conceitos, tais como os indicados por Michelson Borges: “informação complexa, aperiódica e específica” e “códigos zipados, encriptados, compartimentados e com uma lógica algorítmica”.

A distinção entre ciência e religião nos mostra que “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”, pois têm em sua essência pressupostos diferentes. Uma se fundamenta em experimentação, observação e verificação, e a outra em fé. O fato de cientistas serem católicos, muçulmanos, ateus ou budistas não interefere, em absoluto, na validade da ciência e do método científico. São duas concepções distintas, uma de visão de mundo pessoal a outra de geração de conhecimento e conhecimento de como os processos naturais funcionam. Por isso,  uma educação de qualidade, que permita formar cidadãos esclarecidos, é absolutamente imprescindível para o bom entendimento do que é ciência e do que é religião.

Os tempos estão mudando

O que os pesquisadores acham de seus artigos científicos estarem completamente disponíveis, de graça, na web depois de 1 ano de publicação?

Se você, pesquisador, ainda não tem opinião formada a este respeito… é bom saber que isso pode acontecer, muito em breve.

Segundo editorial da revista Science desta sexta feira, dia 22/01/2009, na semana passada foi realizada uma mesa-redonda intitulada “Mesa-Redonda do Comitê Norte-Americano de Ciência e Tecnologia em Publicações Científicas” (U.S. House Science and Technology Comittee’s Roundtable on Scholarly Publishing). Como resultado, foi disponibilizado um relatório no qual se apresentam decisões que artigos de revistas científicas financiados com fundos federais norte-americanos deverão se tornar públicos e de acesso livre o mais rapidamente possível – em um ano ou menos após sua publicação. O objetivo desta iniciativa seria melhorar o acesso ao conhecimento científico por parte da sociedade em geral, bem como de se estabelecer relações entre os trabalhos científicos publicados, da maneira mais ampla possível. Embora não tenha havido consenso qual versão dos trabalhos científicos seria disponibilizada, como tendência se observou que seria a forma definitiva dos mesmos, tal como publicada nas revistas científicas.

Atualmente muito se especula sobre os caminhos a serem seguidos pelas publicações científicas. O relativamente recente surgimento do “acesso aberto” (open access) de várias revistas (pagas; mas nem todas) está ganhando importância, porém o preço a se pagar para se publicar em algumas destas revistas pode ser proibitivo. Sendo assim, o relatório apresentado discute vários aspectos relacionados à disponibilização de informações científicas de maneira irrestrita, sem que existam diretrizes específicas. Mas enfatiza a importância crescente de uma criteriosa revisão-por-pares (peer review), da participação de proprietários de empresas editoriais de publicação científica (stakeholders – é isso mesmo?), bem como de uma contínua inovação deste processo.

De maneira a que estas mudanças sejam efetivas, será necessário um processo extremamente colaborativo e flexível por todas as partes envolvidas. Em particular as agências de fomento norte-americanas deverão estimular a disponibilização das publicações científicas, de preferência nos próprios sites das revistas, em vez de se criar um repositório onde todas estas publicações estariam centralizadas. A elaboração de um sistema desta natureza envolveria pesquisadores, editores, bibliotecários, administradores de universidades e, obviamente, o público em geral. Deverá ser criado um sistema que proporcione um sistema eficaz de busca de informações bibliográficas, de maneira a que estas possam ser utilizadas de maneira mais eficaz e gerar conhecimento.

Os signatários do editorial da Science – Paul N. Courant, James J. O’Donnell, Ann Okerson e Crispin B. Taylor – se mostraram particularmente otimistas em vista de tais mudanças.

É isso. Os tempos estão mudando. A disponibilização do conhecimento científico de forma irrestrita pode trazer mudanças radicais à sociedade em geral. Seria de se prever que o aumento do nível geral de informação e de educação da sociedade como um todo levasse à total derrocada de crenças obscurantistas e totalmente infundadas, como o criacionismo por exemplo.

Não li o relatório resultante do encontro da mesa-redonda. Mas este pode ser acessado livremente aqui.

A referência do editorial da Science é:ResearchBlogging.org
Courant, P., O’Donnell, J., Okerson, A., & Taylor, C. (2010). Improving Access to Research Science, 327 (5964), 393-393 DOI: 10.1126/science.1186933

Ciência fundamental ou ciência aplicada?

Em referência à postagem anterior, o texto a seguir foi publicado no Jornal da Ciência, 1998, 13 (395), 7, sem as citações finais em inglês. O mais inusitado é que o então diretor científico da FAPESP, Prof. José Fernando Perez, publicou texto relacionado ao mesmo tema no mesmo número do Jornal da Ciência, 1998, 13 (395), 6. Não encontrei versões on-line destes textos. Assim, escaneei e disponibilizei ambos no blog Química de Produtos Naturais.

Ciência fundamental ou ciência aplicada?

Pure and applied science are inseparable and can only grow together.”
 Charles H. Townes, Nobel de física em 1964

Tal questão têm sido frequentemente levantada, porém com muito mais ênfase na última década visto que o investimento na pesquisa científica atingiu números sem precedentes. A fusão das indústrias farmacêuticas Glaxo Wellcome e SmithKline Beecham, por exemplo, levará as mesmas a aplicar um montante equivalente a 2,34 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento durante os próximos anos, e deverá constituír uma companhia com valor de mercado estimado em 125 bilhões de dólares (The Globe and Mail, 02.03.98) . Se por um lado o setor empresarial privado internacional não mede esforços para desenvolver novos produtos e processos, por outro lado pouco se sabe sobre investimentos dessa natureza no mercado brasileiro. Seja porque pouco se divulga sobre esse assunto ou porque tal investimento é negligível.

No Brasil, tanto a pesquisa científica quanto tecnológica são essencialmente financiadas por órgãos públicos estaduais e federais de fomento. Este financiamento é e continuará sendo por muito tempo absolutamente imprescindível. Porém, este é um quadro em mudança: atualmente, estimula-se a elaboração de projetos de pesquisa científica e tecnológica em parceria com o setor privado, de tal maneira que o conhecimento adquirido ou gerado possa levar ao desenvolvimento de processos e produtos de utilidade para a sociedade. Essas iniciativas só podem ser vistas com bons olhos, tendo-se em vista necessidades regionais de desenvolvimento científico e tecnológico. Contudo, ainda questiona-se a eficácia de tais programas pois acredita-se que o financiamento de pesquisa por parte do setor privado possa limitar o campo de atuação da ciência que obtenha este tipo de financiamento. A história nos mostra, porém, que cabe ao próprio cientista conduzir o trabalho de investigação científica. De acordo com sua filosofia de trabalho, o cientista poderá caracterizar sua investigação seja por um caráter mais fundamental, seja por um caráter mais aplicado, ou ainda por uma mistura de ambas, denominada “pesquisa fundamental orientada à aplicação”.

Como exemplo da primeira, poderíamos citar: a) o trabalho de Niels Bohr, físico alemão que dedicou-se a estudar a estrutura do átomo no início do século; b) as pesquisas de Linus Pauling sobre a natureza das ligações químicas e a estrutura das proteínas; c) as descobertas de Albert Einstein sobre a teoria da relatividade e a LASER (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation), ou; d) a descrição por Bloch e Purcell do fenômeno de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) no fim dos anos 40. Interessante, porém, é notar que todos estes exemplos serviram de base para o desenvolvimento posterior de inúmeros projetos de ciência aplicada, os quais modificariam o rumo da história: no caso de Bohr e outros físicos e químicos que se dedicaram ao estudo das partículas fundamentais da matéria, ao desenvolvimento e aplicação da energia atômica; no caso de Pauling, ao desenvolvimento da biologia molecular e em última instância da biotecnologia; no caso de Einstein, a teoria da relatividade, em conjunto com outras descobertas, permitiu a implantação dos programas de exploração espacial e a LASER levou à descoberta da MASER (Microwave Amplification by Stimulated Emission of Radiation) a qual, por exemplo, é utilizada em leitores de discos compactos e códigos de barra; e no caso de Bloch e Purcell, ao desenvolvimento das inúmeras técnicas de RMN tanto em estado sólido como em estado líquido, dentre as quais a geração de imagens em medicina. Fato interessante, quando Einstein descreveu a LASER, o fenômeno foi considerado de “interesse puramente teórico, sem qualquer utilização prática”.

Como exemplo da segunda forma de utilização da ciência, de caráter essencialmente aplicado, poderíamos citar a descoberta da técnica de polymerase chain reaction (PCR), descrita por Kary Mullis (prêmio Nobel de química de 1993), e as inúmeras invenções de Thomas Edison. No primeiro caso, Mullis estava preocupado em como obter maior quantidade de material genético, sem ter que se limitar a extrair DNA durante semanas a partir da fonte original do mesmo. As decorrências da descoberta da técnica de PCR são inúmeras, como, por exemplo, para a realização do Projeto Genoma Humano. No caso de Edison, é notório o fato deste cientista não ter se preocupado em estudar a natureza do fenômeno elétrico, mas apenas em desenvolver uma enorme gama de aparelhos que pudessem ser úteis. Tanto em um caso como em outro, a visão de ciência essencialmente aplicada foi essencial para descobertas revolucionárias.

A terceira forma de utilização da ciência, que combina pesquisa fundamental e aplicada, poderia ser exemplificada pelos trabalhos de Louis Pasteur. Por possuir ligações familiares com produtores leiteiros, Pasteur esteve inicialmente inclinado à trabalhos de natureza essencialmente aplicada. Contudo, com o intuito de melhor compreender a contaminação do leite e outros alimentos, Pasteur rapidamente iniciou estudos de caráter fundamental para encontrar as razões para tal e dos fenômenos microbiológicos em geral, bem como para as causas de doenças infecciosas e da natureza quiral do átomo de carbono. Mesmo assim, Pasteur nunca perdeu de vista a aplicação prática de seus conhecimentos na indústria de alimentos, por exemplo, que consequentemente levou à descoberta do método de pasteurização do leite.

Outra área que combina conhecimentos de pesquisa fundamental e aplicada é a descoberta de novos medicamentos. Inúmeros cientistas estão atualmente envolvidos em projetos para melhor entender o funcionamento do sistema imunológico, de resistência de microorganismos e na descoberta de novas substâncias farmacologicamente ativas, para que estes conhecimentos possam contribuir para melhorar a qualidade de vida de uma forma geral. Particularmente neste último caso, a natureza inter- e multidisciplinar da pesquisa em saúde humana é tão ampla que deixou de ser tema de áreas exclusivas do conhecimento e passou a integrar ecologia, biofísica, medicina, farmacologia, antropologia, química, bioquímica e biologia.

O ponto fundamental é que, tanto a ciência aplicada como a ciência fundamental mantêm entre si laços bastante estreitos para serem separadas como se fossem dois ramos extremos da atividade científica. Tal separação foi proposta por Vanevar Bush, quando da elaboração de um plano nacional norte-americano para o financiamento de pesquisa científica, solicitado pelo então presidente Franklin D. Roosevelt após a 2a Guerra Mundial. Além do plano de Bush ter sido bastante criticado pelos seus pares, o plano sugeria que se fortalecessem estudos principalmente na área de agricultura, engenharia mecânica e para a fabricação da gasolina sintética, a qual, acreditavam, estaria sendo desenvolvida pelos alemães. Em essência, a comissão que elaborou o plano solicitado por Roosevelt priorizou estudos
que já vinham sendo desenvolvidos, pois é praticamente impossível prever novas e importantes descobertas. Dentre aquelas que surgiram nos anos seguintes (e que passaram “despercebidas” à referida comissão) estão os antibióticos, então já descritos por Fleming, mas completamente ignorados, os jet aircraft (“carros flutuadores”), os foguetes e a exploração espacial, os computadores, o transístor, a MASER, a engenharia genética, entre outras.

O estabelecimento de prioridades para a pesquisa científica é uma realidade. Do mesmo modo, os próprios cientistas não devem perder a convicção de que a pesquisa fundamental é absolutamente necessária. Como complemento, voltar os olhos para a aplicabilidade do conhecimento científico deve ser uma das metas daqueles que são responsáveis pela formação de profissionais altamente qualificados, bem como pela geração de conhecimento.

A integração universidade-setor privado, porém, ainda é vista com extrema cautela por diversos setores da comunidade científica. Talvez por falta de experiência, acredita-se que o desenvolvimento de projetos de ciência aplicada deixará de lado a busca de questões fundamentais. O caso de Pasteur mostra que não é esse o caso. Cabe ao cientista combinar os elementos necessários, sejam eles de caráter fundamental ou aplicado, para o desenvolvimento de um projeto em particular. Também, cabe à iniciativa privada levantar questões e problemas, bem como estimular a busca de soluções de caráter aplicado que possam contribuir para o aprimoramento de um setor produtivo mais competitivo, menos imediatista e que se integre de forma muito mais efetiva à comunidade científica e ao desenvolvimento da nação.

Para terminar, aproveitaria para citar o livro, “Science and Society”*, o qual reúne uma série de palestras proferidas por ganhadores de prêmios Nobel por ocasião das “John C. Polanyi Nobel Laureates Lectures” em 1994 na Universidade de Toronto. Os textos contém menções interessantes sobre a questão ciência basica e ciência aplicada:

“Nature speakes in many tongues. They are all alien. The task of the scientist pursuing “curiosity-driven” research is to try to discover something of the vocabulary and the grammar of one or more of these languages. To the extent that the scientist succeeds, we gain the ability to decipher many messages that nature has left for us, blithely or coyly. No matter how much human effort and money we might invest to solve a practical problem in science or technology, failure is inevitable unless we can read the answers that nature is willing to give us. The basic research that provides such understanding is the most practical investment we can make.” (no capítulo The Shape of Molecular Collisions, por Dudley R. Herschbach, prêmio Nobel de química de 1986).

“Science and technology can bring about changes within a decade or so. Young people can expect to see profound changes in their lifetime. No one knows now what they will be – making it difficult to plan for them – but they will take place, and science will play a major role in producing them. How can we devise a plan to accomplish important tasks if we do not know where the changes will be? A look ahead reveals nothing very clearly about presently unknown and new discoveries. Contrary to what most people believe, scientists do not possess the ability to predict the future, despite their intensive knowledge.” (no capítulo Unpredictability in Science and Technology, pelo prêmio Nobel de física de 1964, Charles H. Townes).

“We do not know exactly what research will pay off, what will build up, but we do know, historically, that important discoveries will occur and that they will have a major effect on technology and business.” (idem)

 “Society must be interested in ideas and must value them; it must be excited by them and by new discoveries. We must accept a long-range approach. We must accept failures by encouraging trial and error, because no person can plan what scientific research is going to be successful. We must support people in a variety of situations, especially people with different ideas, because the different ideas are most likely to lead to something new. There must be a diversity of approach, a diversity of situations, a diversity of people. There must also be a lot of interaction among them so they can exchange their thoughts.
The places where the activity is high, where many scientists are interacting, where there are outstanding people, where many factors are just right – those are the circumstances that are going to pay off the most. That doesn’t mean we don’t need the others, but we must see that there are places where the important factors all add up; that’s where we can expect to find the most intensive productivity.” (idem)

*(editado por Martin Moskovits, editora da Universidade de Toronto, 1995, ISBN 0-88784-589-4)

Petição em favor da pesquisa básica

Uma petição (abaixo assinado) com 18.000 assinaturas de acadêmicos do Reino Unido foi encaminhado para o Conselho de Financiamento de Educação Superior da Inglaterra (Hefce, Higher Education Funding Council for England), solicitando a não-inclusão da avaliação do impacto econômico em pedidos de financiamento de projetos de pesquisas.

Em setembro último (2009), a Hefce revelou que 25% das solicitações de auxílio à pesquisa encaminhadas à Research Excellence Framework (REF) seriam avaliadas segundo critérios de impacto econômico e social das propostas apresentadas. O novo sistema, designado “Research Excellence Framework (REF)” para avaliação da qualidade de projetos de pesquisa em instituições de ensino superior, entrará em vigor em 2013. Tal mudança provocou tensão no meio acadêmico, preocupado com o impacto que tal medida resultará no desenvolvimento da pesquisa básica (de caráter fundamental).

Uma campanha encabeçada pela União de Universidades e Faculdades do Reino Unido (UK’s University and College Union, UCU) obteve 18.000 assinaturas para que as propostas da REF sejam retiradas e para que os conselhos de financiamento trabalhem em conjunto com pesquisadores, visando a elaboração de um novo modelo de avaliação de propostas de projetos, que estimule a pesquisa básica em vez de diminuir a importância desta.

Alex Rossiter, da UCU, diz que “a pesquisa acadêmica não deve estar sujeita às tendências do mercado”, e ainda que “a grandeza da pesquisa científica é a busca do conhecimento, sem que existam pressupostos ou idéias preconcebidas sobre os objetivos a serem atingidos”. Manifesta ainda sua preocupação sobre os “indicadores de impacto”, que podem levar à direção oposta do que preconizam.

Seis ganhadores de prêmios Nobel encontram-se entre os signatários da petição, dos quais quatro são químicos. Lee Cronin, professor de química da Universidade de Glasgow, acredita que a “ênfase na pesquisa de impacto” pode levar á uma falsa idéia do que constitui o real valor da ciência para o público em geral. Segundo Cronin, “estão dizendo ao público que nossa pesquisa é determinística – mas não é. Na verdade, esta é uma grande montanha russa de fracasso e de falta de inspiração, e o público não está sendo advertido sobre a perda da alma científica.” Diz ainda que “deve-se oferecer as melhores condições financeiras às melhores idéias para realizar descobertas, e não estabelecer restrições”. “Com o direcionamento objetivando o ‘impacto científico’, o público em geral passará a ver a ciência com objetivos pré-definidos, em vez de levar às fronteiras do conhecimento.”

Todavia, a Hefce nega que tais premissas sejam verdadeiras, e afirma que tais pressupostos não passam de mal-entendidos. Que as propostas não devem predizer como promoverão impacto para a sociedade, e sim esclarecer onde e quando houve impacto para a sociedade em decorrência do desenvolvimento científico. Atesta ainda que não se espera que projetos de pesquisa individuais promovam impacto social, mas sim o conjunto de programas investigativos realizados por uma determinada instituição acadêmica.

As avaliações da Hefce serão realizadas durante o verão (junho-agosto) de 2010, e, segundo o Conselho, serão baseadas em evidências e experiência. Todavia, os critérios de impacto não foram retirados. As 18.000 assinaturas da petição encaminhada à Hefce indicam a real preocupação dos acadêmicos ingleses sobre tais mudanças de critérios na avaliação de propostas de projetos científicos.

fonte: Chemistry World.

Nota: escrevi um texto sobre este assunto em 1998, no Jornal da Ciência, 13 (395), 7. Vejam a postagem seguinte.

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