Com ornitorrincos machos não se brinca
Ornitorrinco é um bicho muito esquisito. É um mamífero semi-aquático, que vive apenas na Oceania (Austrália e Tasmânia). O verbete da Wikipédia sobre este animal está bastante completo, e diz que
O macho tem esporões nos tornozelos, que produzem um coquetel venenoso, composto principalmente por proteínas do tipo defensinas, que são únicas do ornitorrinco. Embora poderoso o suficiente para matar pequenos animais, o veneno não é letal para os humanos, mas pode causar uma dor martirizante e levar à incapacidade. Como somente os machos produzem veneno e a produção aumenta durante o período de acasalamento, é teorizado que ele seja usado como arma defensiva para afirmar dominância durante esse período.
O que não é dito pela Wikipédia é que o venoma do ornitorrinco é constituído não somente de peptídeos do tipo defensinas, mas também de vários outros tipos de peptídeos (detalhe: peptídios são pequenas proteínas). O curioso é que os genes que regulam a síntese destes peptídeos são muito similares a genes responsáveis pela regulação da síntese de peptídios análogos em répteis.
Recentemente o grupo de Daisuke Uemura, um dos grandes feras da química de produtos naturais, descobriu mais onze peptídeos do venoma do ornitorrinco. Estas substâncias regulam o fluxo de cálcio em células de neuroblastoma humano. O peptídeo 1, com apenas 7 aminoácidos, foi isolado como sendo o componente majoritário do venoma (concentração no venoma: 200 ng/uL). As estruturas deste e dos 10 outros peptídios foram estabelecidas por análises de espectrometria de massas do tipo MALDI-TOF/TOF (Matrix Assisted Laser Desorption Ionization-Timeof-Flight/Time-of-Flight; Ionização por dessorpção a laser assistida por matriz-tempo-de-vôo/tempo-de-vôo), e mostraram ser coincidentes com fragmentos de um peptídeo precursor (denominado OvCNP), cuja estrutura foi predita a partir da análise do genoma do ornitorrinco.
Detalhe: o peptídio 1 é bastante polar, pois apresenta um aminoácido do tipo arginina (o primeiro, de cima para baixo), além de duas histidinas (o quinto e o sétimo aminoácidos na cadeia). Além disso, deve apresentar alguma rigidez conformacional devido à presença das duas prolinas.
O grupo de Uemura não é fraco: todos os peptídeos isolados do ornitorrinco foram sintetizados para terem suas estruturas confirmadas. Os peptídios do tipo CNP são hormônios vasorrelaxantes, de ampla distribuição no endotélio, no miocárdio, nos tratos gastrintestinais e genitourinários de humanos. Embora os autores tenham testado o peptídio 1 em diversos modelos de testes farmacológicos, ainda não conseguiram desvendar seu mecanismo de ação.
Isolar e manipular 200 ng de uma substância não é brincadeira. É ciência de primeira. Não se vê a amostra isolada. Apenas sabe-se que ela existe quando a mesma é analisada pelas técnicas de espectroscopia extremamente sofisticadas, hoje disponíveis.
Referência
Kita, M., Black, D., Ohno, O., Yamada, K., Kigoshi, H., & Uemura, D. (2009). Duck-Billed Platypus Venom Peptides Induce Ca Influx in Neuroblastoma Cells
Journal of the American Chemical Society, 131 (50), 18038-18039 DOI: 10.1021/ja908148z
Discussão - 4 comentários
Gosto dessas técnicas de Massas. São bem criativos nos arranjos e nos nomes. 🙂
Oi Luís,
Você pode imaginar os alunos rindo... TOF/TOF é demais. Me lembra o Fradim, do Henfil.
Muito autual este site. Estou fazendo Pós em gestão ambiental e fiquei maravilhado com tudo.
Obrigado, Luis Carlos.