Pinte o 7, com RMN-MOUSE

Hoje em dia cada vez mais se realizam exames e diagnósticos por imagem gerada por Ressonância Magnética Nuclear (RMN), ou simplesmente “exames de ressonância”. Frequentemente médicos solicitam exames deste tipo, que não são invasivos (ou seja, não é necessária a inserção de uma sonda no corpo do paciente), não é necessário se tomar uma substância que forneça contraste (como em exames de raios-X, em que pode-se tomar substâncias contendo Iodo ou Bário radioativos para aumentar o contraste da imagem gerada), e o exame não é nocivo para a saúde nem do médico nem do paciente, pois não ficam expostos à radiação (como no caso de exames de raios-x).

Mas, então, qual é o princípio da análise por RMN? Como ela funciona?

Como o próprio nome diz, a técnica se fundamenta no uso das propriedades magnéticas dos núcleos dos átomos. Mas não de qualquer átomo. Não são todos os átomos que podem ser detectados por RMN, apenas alguns. Todos aqueles que não apresentam a massa atômica de número par e número atômico também de número par. Por exemplo, o isótopo 12 do carbono (massa atômica = 12; número atômico = 6) e o isótopo 16 do oxigênio (número de massa = 16; número atômico = 8) não podem ser detectados por RMN. Porquê? Porque os seus núcleos não se comportam como ímãs sub-atômicos.

Ímãs sub-atômicos? Exatamente. Ímãs sub-atômicos, pois são os NÚCLEOS de outros átomos, que não têm número de massa par e número atômico também par, que se comportam como ímãs. Por exemplo, o hidrogênio (massa atômica = 1; número atômico = 1), o isótopo de massa 13 do carbono (massa atômica = 13; número atômico = 6), o deutério (massa atômica = 2; número atômico = 1), o nitrogênio 14 (massa atômica = 14; número atômico = 7), e muitos outros. Comportando-se como ímãs, estes núcleos apresentam um determinado campo magnético. Ora, leitor, você já experimentou colocar um ímã perto de outro? Os dois ímãs “se sentem” mutuamente, em uma relação recíproca.


Não é uma nave espacial, e sim um aparelho de RMN de 900 MHz

Esta propriedade de determinados núcleos se comportarem como ímãs sub-atômicos permite que sejam detectados por aparelhos de RMN, que apresentam um ímã para detectar núcleos. A explicação física de como estes aparelhos funcionam é relativamente complicada, mas pode ser resumida da seguinte maneira: núcleos de átomos que apresentam caráter magnético têm uma determinada freqüência de precessão em torno do próprio eixo. Ou seja, estes núcleos giram em torno de si próprios, com uma determinada freqüência de precessão (número de voltas por segundo, ou freqüência, em Hertz). Quando se ajusta a freqüência do campo magnético do aparelho de RMN para detectar um determinado tipo de núcleo (hidrogênio, por exemplo), os dois campos magnéticos, o do núcleo e o do aparelho, entram em ressonância. Daí surgiu o nome da técnica de RMN. É muito parecida com o funcionamento de um rádio: você tem uma emissora de rádio (que seria o núcleo do átomo que se deseja detectar) e um aparelho de recepção de ondas de rádio (ou, um rádio). Para ouvir aquela emissora de rádio é necessário se ajustar a frequência de recepção das ondas de rádio no aparelho de rádio. Desta forma, o aparelho de rádio “entra em ressonância” com a emissora de rádio.

Bom, e daí? E daí que nós humanos temos cerca de 70% de água no nosso corpo. E água tem hidrogênio (H2O). Logo, aparelhos de RMN detectam água. O diagnóstico por RMN é feito observando-se o padrão de distribuição de água nos tecidos do corpo. Se o padrão de distribuição estiver “anormal”, alguma coisa está errada.

A descoberta do fenômeno de RMN literalmente revolucionou a ciência. Esta descoberta foi feita independentemente por Bloch e Purcell, que dividiram o prêmio Nobel de Física de 1952. Richard Ernst e Kurt Wütrich também ganharam o prêmio Nobel  em 1991 e 2002 por terem se dedicado ao desenvolvimento e utilização da técnica de RMN na geração de imagens, em análises químicas, físicas, biológicas, geoquímicas, em química de materiais e em outros ramos do conhecimento. Atualmente qualquer universidade do mundo que realiza pesquisa em química e/ou em física possui pelo menos um aparelho de RMN. São aparelhos sofisticados, grandes e caros, em contínuo aprimoramento. Praticamente a cada 2 anos são lançados novos modelos, extremamente versáteis, de aparelhos de RMN. Os campos magnéticos utilizados nos aparelhos de RMN são gerados por magnetos supercondutores que devem ser resfriados por hélio líquido (a cerca de -269 graus Celsius), cujo reservatório deve ser resfriado com nitrogênio líquido (cerca de -200 graus Celsius).

Até recentemente a utilização de aparelhos de RMN estava limitada à localização destes em institutos acadêmicos, ou institutos de pesquisa especializados, em centrais de análises ou ainda em instituições médicas. Porém, já nos anos 80 pesquisadores começaram a desenvolver aparelhos de RMN portáteis, os quais foram colocados em uso em 1996, e atualmente estão sendo cada vez mais utilizados para os mais diversos fins: análise de asfalto de ruas e estradas, de estruturas de pontes e análises de solo. Denominados aparelhos de RMN de varredura (Stray-Field NMR), são aparelhos de RMN em miniatura. São colocados muito próximos à superfície do material que se pretende analisar, de maneira que a geração de um campo magnético pelo aparelho permite que os núcleos dos átomos de hidrogênio no material sob análise sejam detectados. Em geral, analisa-se o padrão de distribuição de água. Mas também de gordura, ou de proteínas.

O aparelho de RMN portátil foi batizado, muito apropriadamente, de RMN-MOUSE (MObile Universal Surface Explorer). Tem o tamanho de um aparelho de telefone celular grande, ou um palm, e é empregado movendo-se um campo magnético que não varia. O aparelho é colocado próximo à superfície que se deseja analisar. O sinal registrado é transmitido para um computador através de um cabo, obtendo-se imagens tanto da superfície como de camadas próximas à superfície, para que se possa conhecer a constituição do material sob análise. A resolução da imagem gerada pode chegar a 2,3 um. Uma das aplicações mais interessantes do RMN-MOUSE é na análise de obras de arte e de construções históricas, de grande valor cultural.


aparelho de RMN-mouse

Por exemplo, a pintura “Adoração de Magi” (Pietro Perugino, pintada entre 1496-1498) foi analisada por RMN-MOUSE, e indicou uma diferença de espessura no tecido da tela das bordas quando comparada com a espessura do centro da pintura. No caso da pintura “Pala Albergotti” (Giorgio Vasari), detectou-se uma diferença da espessura de tinta no centro e nas extremidades da pintura. Esta diferença foi atribuída à presença de oxalatos (sais de ácido oxálico, HO2C-CO2H), originários da degradação da proteína utilizada no acabamento da pintura, detectadas por RMN-MOUSE, microsopia óptica e espectroscopia no infravermelho.


Adoração de Magi, de Pietro Parugino


Pala Albergotti, de Giorgio Vasari

A técnica de RMN-MOUSE também é utilizada na análise de
documentos antigos, uma vez que papel é feito com celulose e lignina, que apresentam tanto “água aprisionada” como “água livre” na sua estrutura. No caso de papel e madeira danificados, a quantidade de água e a crsitalinidade da celulose sofrem modificações, e podem ser detectadas. Assim, é possível se saber qual a extensão do comprometimento de documentos antigos de acordo com o teor de água que estes apresentam. Também se observou efeito corrosivo de tinta utilizada na escrita, feita de ferro e taninos (iron gall ink), em documentos do Codex Major da Collectio Altaemsiana.


tinta de ferro e taninos (iron gall ink)

A técnica de RMN-MOUSE já foi utilizada na análise da madeira de violinos Stradivarius. Em alguns casos, foi possível saber quantas camadas de verniz foram aplicadas na madeira da confecção dos instrumentos. Também foi possível se verificar que os violinos mais antigos foram fabricados com madeiras mais densas, e que a densidade da madeira influencia diretamente na qualidade do som produzido pelo instrumento. Tal técnica também pode ser empregada na distinção de violinos verdadeiramente antigos daqueles que são falsificados.

A RMN-MOUSE é empregada para se analisar o teor de água em paredes de prédios e monumentos históricos, de maneira a que os restauradores possam utilizar o material mais adequado na restauração de tais construções. A análise dos afrescos pintados por Pelledrino degli Aretusi na Capela Serra da Igreja da Nossa Senhora do Sagrado Coração, em Roma, indicou que estes estão sujeitos à umidade que se inflitra a partir do solo. A análise detalhada da distribuição de água nos afrescos indicou em que locais este se encontra mais afetado e deve ser restaurado. O teor de água no mosaico Netuno e Amphitrite foi analisado por RMN-MOUSE, e apresentou grandes diferenças de umidade dependendo da área do mosaico.


Netuno e Amphitrite, Herculaneum

Além disso, a análise de monumentos históricos e obras de arte por RMN-MOUSE são extremamente úteis para se indicar quais materiais são mais indicados para sua restauração, dependendo do teor de água, da porosidade do material a ser restaurado e como o emprego de diferentes substâncias na restauração pode afetar a obra a ser restaurada.

Aparelhos de RMN móveis são extremamente versáteis e úteis para se analisar pinturas, madeira, papel, bem como materiais de construção. Atualmente a técnica está sendo aprimorada, para que sua sensibilidade seja aumentada e possa ser facilmente utilizada. Outros núcleos diferentes de hidrogênio também poderão ser analisados em um futuro próximo, como Alumínio-29, presente em vidros e cerâmicas. O futuro é extremamente promissor para a utilização de RMN, nas mais variadas aplicações.

ResearchBlogging.orgBlümich, B., Casanova, F., Perlo, J., Presciutti, F., Anselmi, C., & Doherty, B. (2010). Noninvasive Testing of Art and Cultural Heritage by Mobile NMR, Accounts of Chemical Research DOI: 10.1021/ar900277h

Discussão - 4 comentários

  1. Adorei o post, excelente! (900 MHz? nossa...)

  2. Roberto disse:

    Oi Fernanda,
    Imagine um aparelho destes com uma micro-crio-sonda. Deve permitir a detecção até da "alma química" da amostra em análise 🙂 Não consigo imaginar quanto custa. Uns US$ 2.500.000,00, talvez?
    Roberto

  3. Joey Salgado disse:

    Excelente texto, Roberto, bem didático. Adorei o RMN-MOUSE, muito versátil e eficaz, além de ser uma prova de que mesmo técnicas que, aparentemente, estão bem estabelecidas e possuem pouca promessa de evoluir mais ainda tem muita coisa nova para apresentar.
    Como químico orgânico, confesso que as técnicas de RMN 1H e 13C são as minhas favoritas, dentre as de identificação estrutural. Aqui no IQUSP temos dois aparelhos de 200 MHz, livres para utilização por parte dos alunos de pós, que são os verdadeiros responsáveis por permitir que tantas dissertações e teses sejam defendidas. Quebram frequentemente, mas são verdadeiras "lendas", literalmente.
    E não posso deixar de dividir o sentimento de estupefação com a Fernanda. 900 MHz... que aparelho dos sonhos, rs!
    Abraço!

  4. Roberto disse:

    Caro Joey,
    Obrigado pelo comentário. Eu achei esta história do RMN-MOUSE simplesmente incrível (veja também uma outra aplicação: http://www.act-aachen.com/products.html ), pelo fato destes aparelhos terem sempre sido conhecidos como trambolhos gigantes e imóveis.
    Quanto ao aparelho de 900 MHz... bom, o que dizer, né? Para quem trabalha com química orgânica, como nós, seria realmente um sonho poder utilizar um equipamento destes.
    abraço,
    Roberto

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