O dispositivo militar para o golpe, segundo N. W. Sodré

Foto obtida em Wikimedia Commons

Sodré

Por Ulisses Rubioi

Introdução

No texto inicial deste blog falamos sobre os vários temas que podem ser abordados pela “Economia” e como esta área do conhecimento dialoga com outras áreas, como a política por exemplo. Um dos temas que tem sido abordado neste blog é o do pensamento econômico, tratados nos textos de Victor Lopes (texto 1; texto 2). Outro tema que também já foi abordado aqui é o diálogo que a economia faz com o pensamento social brasileiro e a política, como pode ser visto no texto de Ulisses Rubio e Gustavo Zullo.

Coerente com esta trajetória, apresentamos hoje um pouco sobre Nelson Werneck Sodré. Sodré foi um militar nacionalista; lecionou História Militar na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e História no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB); dentre os diversos livros escrito está o Formação Histórica do Brasil; ficou preso e perdeu seus direitos políticos após o golpe de 1964. Neste artigo, falamos mais especificamente sobre como Sodré percebeu a manobra dos militares em direção ao golpe nos anos 1960.

Dispositivo e Manobra

Segundo Sodré, a disputa eleitoral de 1960 teria começado mais cedo que o convencional. Neste sentido, o autor analisava a necessidade de se montar um dispositivo para o combate (às eleições). Através deste texto, Sodré mostra que os militares conheciam a relação entre manobra e dispositivo1. Disse o autor: “a toda manobra corresponde um dispositivo; a todo combate, uma forma de combater; a toda tática, um modo de dispor os dados, ou as forças”2. O papel do dispositivo é importante para entender como Sodré percebeu a manobra para o golpe. Para realizar o golpe, era necessário, antes, que os golpistas dispusessem os dados, as forças; isto é, montassem o dispositivo.

Caracterização do golpe e seu dispositivo

o golpe “caracteriza-se antes pela sucessividade e pelo rigor crescente das ações atentatórias aos direitos constitucionais, até um ponto em que só a força domina e dita as regras”

Portanto, para Sodré, era engano pensar que o golpe ocorreria numa ação única, súbita; era engano pensar que o golpe consistiria na passagem, “de uma hora para outra, de um regime de franquias para um regime de exceção”. Segundo o autor, o golpe “caracteriza-se antes pela sucessividade e pelo rigor crescente das ações atentatórias aos direitos constitucionais, até um ponto em que só a força domina e dita as regras”3. Isto é, o regime de exceção estava sendo implementado através de medidas arbitrárias até se chegar definitivamente ao fim do formal regime democrático e da Constituição.

De acordo com Sodré, o dispositivo que garantia a manutenção do regime democrático havia sido desmontado quando da saída de Lott do Ministério da Guerra. A partir do momento em que este posto foi assumido por Odílio Denys, iniciou-se então os preparativos para montar o dispositivo golpista. A montagem deste dispositivo, entretanto, teria sido aprofundada após a posse de Jânio Quadros. Para Sodré, “Assistiu-se, então, o alijamento quase total de todos os elementos que não tinham vínculos com a conspiração que começava, desde logo, a funcionar para a liquidação do regime. Os postos-chaves, os instrumentos de poder militar foram rigorosamente ocupados4.

“não é preciso argumentar, basta comprar nas feiras, basta ter alguém de alimentar-se”

Para Sodré, Jânio Quadros havia sido eleito por duas forças contraditórias: “dos grupos econômicos estrangeiros, monopolistas, ajudados pelos seus agentes internos”; e a “opinião popular, congregando os descontentamentos, alimentada pelas promessas”. Contudo, uma vez no governo, Jânio Quadros tinha que se definir por uma destas forças, a qual representaria. E, ainda segundo Sodré, já estava nítida a escolha de Jânio: “não é preciso argumentar, basta comprar nas feiras, basta ter alguém de alimentar-se”. Ou seja, o aumento dos preços em itens de consumo básico da população, mostrava que Quadros não cumpria as “promessas” feitas à opinião popular.

Concretamente, esta escolha se realizava nas medidas econômicas, a começar pelas Instruções da SUMOC, entre elas, a Instrução 2045. Segundo Sodré, esta escolha subordinava não só a economia a interesses estranhos à nação. Esta escolha subordinava também “a política em seu sentido lato, o que abrange o regime, os partidos, as eleições, a representação, os direitos individuais, as garantias democráticas”6.

A advertência de Sodré

Diante deste cenário de ameaça ao regime democrático observada por um militar nacionalista e democrático e que enxergava o dispositivo que estava sendo articulado para o golpe, o qual teve um importante precedente após a renúncia de Jânio Quadros, é que Sodré chamava a atenção para “mostrar a nação a necessidade de desmontar o sinistro aparelho policial-militar que trouxe a Nação em sobresalto, que violou a tranquilidade, que derrogou todas as leis e que se preparou para transformar um regime democrático em um regime de força. Se a lição não for aproveitada, se a experiência não for considerada, poderemos deparar, adiante, com novas demonstrações dessa espécie”7.

Notas

iAs ideias deste artigo estão contidas na tese de doutorado do autor, realizada no Instituto de Economia da Unicamp: “A questão nacional no Brasil entre 1954 e 1964 : perspectivas de Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré”. A tese está disponível em repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/331530. Um artigo foi publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, cujo título é: “Nelson Werneck Sodré: vida militar, democracia e política econômica, disponível em http://www.revistasep.org.br/index.php/SEP/article/view/429.

1Acreditamos que o significado de “manobra”, aqui, pode ser entendido pelos seguintes termos: 1) “PRINCÍPIO DA MANOBRA – Princípio de Guerra que se caracteriza pela capacidade de movimentar forças de forma eficaz e rápida de uma posição para outra, contribuindo para obter superioridade, aproveitar o êxito alcançado e preservar a liberdade de ação, bem como para reduzir as próprias vulnerabilidades. A finalidade da manobra é criar, pela utilização da mobilidade de um conjunto de forças, uma situação favorável para alcançar objetivo estratégico ou tático. Dessa maneira, os meios serão dispostos de forma tal que as forças inimigas sejam colocadas em desvantagem, contribuindo para que os propósitos pretendidos sejam alcançados com menores perdas de pessoal e material”; 2) MANOBRA – “Movimento ou série de movimentos destinados a colocar forças, navios, aeronaves, tropas, equipamentos ou fogos em uma situação vantajosa, em relação ao inimigo ou para cumprir determinada missão”.

Por sua vez, “dispositivo” pode ser entendido pelos seguintes termos: “DISPOSITIVO – 1. Modo particular por que são desdobrados, numa situação tática, os elementos de uma força. 2. Arranjo ordenado de navios dispostos em formatura para atender a determinadas finalidades, navegando juntos, sob o mesmo comando. 3. Qualquer instrumento, mecanismo, peça, aparelho, pertence ou acessório, inclusive o equipamento de comunicações, empregado ou destinado a operar ou controlar uma plataforma”. Retiramos estes significados do Glossário de Termos e Expressões para uso no Exército (EB20-MF_03.109), 5ª Edição, 2018. Disponível em https://bdex.eb.mil.br/jspui/handle/1/1148. Acesso em 31/05/2021..

2 N.W.S.“Dispositivo e manobra”. O semanário. Rio de Janeiro, 08-14/08/1959, p. 2. Coluna Situação Militar. Assinado como Cel. X. http://memoria.bn.br/DocReader/149322/2596

3 N.W.S.“O golpe: sua prática”. O Semanário. Rio de Janeiro, 02-09/08/1961, p. 2. Sessão Fato da Semana. Sem assinar. http://memoria.bn.br/DocReader/149322/3842

4 N.W.S. “Origens do golpe militar”. O Semanário. Rio de Janeiro, 26/09 a 02/10/1961, p. 2. Sessão Fato da semana. Sem assinar. http://memoria.bn.br/DocReader/149322/3938

5N.W.S. “O golpe: sua teoria”. O Semanário. Rio de Janeiro, 30/07 a 05/08/1961, p. 2. Seção Fato da Semana. Sem assinar. http://memoria.bn.br/DocReader/149322/3830

6 N.W.S.“O golpe: sua prática”. O Semanário. Rio de Janeiro, 02-09/08/1961, p. 2. Sessão Fato da Semana. Sem assinar. http://memoria.bn.br/DocReader/149322/3842

7 N.W.S. “Origens do golpe militar”. O Semanário. Rio de Janeiro, 26/09 a 02/10/1961, p. 2. Sessão Fato da semana. Sem assinar. http://memoria.bn.br/DocReader/149322/3938

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