De onde vem a hegemonia do dólar? (parte 1)

Foto: Ivan-chirko. 13 August 2019. Fonte: https://www.goodfon.com/miscellanea/wallpaper-dengi-zoloto-dollary.html

Por: Victor Augusto Ferraz Young

Introdução

Conforme havíamos prometido, este ano trataremos de recortes sobre a economia global contemporânea. Não temos a pretensão de explicar aqui o funcionamento do sistema capitalista e as relações que este determina entre os países que dele fazem parte. Buscaremos trazer as questões mais relevantes para instigar aqueles que se interessam pelo tema e nos procuram com suas dúvidas. Tratarei primeiramente do que considero fundamental para o funcionamento do atual sistema econômico global, ou seja, o uso do dólar estadunidense como o principal meio internacional para as trocas comerciais e operações financeiras que é, ao mesmo tempo, o principal ativo financeiro de reserva de valor. Pretendo apresentar, dessa maneira, como a centralidade do dólar no sistema internacional se deu por determinações político históricas.

O Ouro e a Libra Esterlina

Primeiramente, e de forma bastante suscinta, podemos dizer que, antes do advento de um sistema econômico com base no dólar, o principal meio para a conservação da riqueza e para as trocas comerciais e financeiras internacionais era o ouro. Havia, até o início do século XX, moedas de diferentes países que podiam ter seu valor cotado em ouro, sendo a libra esterlina a referência mais estável. Este era o chamado padrão-ouro ou padrão libra-ouro. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a crise financeira internacional desencadeada alguns anos depois com a Quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, este padrão monetário internacional deixou de ser predominante até o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), momento em que o Sistema Financeiro Internacional foi redefinido.

A Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e o Dólar-Ouro

O fim da Segunda Guerra Mundial marca, ao mesmo tempo, a emergência da hegemonia norte-americana sobre o bloco de países capitalistas e dá início ao antagonismo norte americano em relação ao bloco de países comunistas sob a liderança da então União Soviética, a chamada Guerra Fria. A constituição desse bloco passou a ser vista pelos Estados Unidos como uma ameaça vital a seus interesses e até mesmo à sua própria existência, já que sua forma de organização sócio-política não considerava a propriedade privada do capital e dos meios de produção. Os Estados Unidos, que não haviam passado pela destruição da guerra em seu próprio território, eram, por sua vez, uma potência vencedora que havia projetado sua marinha e exército por todo o globo terrestre. Eles detinham a tecnologia da bomba atômica, haviam renovado sua capacidade industrial e tecnológica, contavam com superávits comerciais crescentes, eram os maiores credores das potências econômicas sobreviventes e possuíam um estoque de ouro equivalente a 70% das reservas mundiais. Os americanos, dessa maneira, se empenharam na reconstrução do sistema capitalista e buscaram estabelecer sua liderança sobre a nova ordem capitalista emergente. O desenho dessa ordem levaria em conta o objetivo de enfraquecer e/ou anular a chamada ameaça comunista.

A reconstrução dos países capitalistas exigia certo controle sobre as relações econômicas dentro do sistema, assim, a determinação do dólar como a principal moeda internacional foi elemento de fundamental importância nas conferências para reestruturação do sistema financeiro em Bretton Woods em 1944. Naquela convenção, a proposta do representante norte-americano, Harry Dexter White, estabeleceu que o dólar lastreado em uma certa quantia de ouro seria a divisa internacional balizadora para o valor fixo (mas ajustável) de outras moedas dos outros países que fizeram parte da reunião[1]. Com o poder que detinham, os EUA impuseram o dólar como moeda internacional em contraposição a ideia de uma unidade monetária alternativa, o bancor, sugerida na conferência pelo economista e representante inglês, John Maynard Keynes[2]. Esta outra seria uma moeda internacional a ser emitida por uma entidade internacional multilateral, não estando, dessa forma, sob supervisão do banco central norte-americano. Naquele momento, os EUA fizeram valer sua força política e econômica e ficou estabelecido o padrão dólar-ouro como divisa chave para todas as operações comerciais e financeiras entre os países. A vantagem desse modelo ficava, obviamente, para a economia norte-americana, já que seu governo poderia, no futuro, dispensar superávits comerciais e empréstimos internacionais para conseguir recursos para comprar e/ou financiar qualquer coisa que desejasse no exterior. Ou seja, o Estado americano não precisaria necessariamente acumular reservas internacionais, bastaria, grosso modo, emitir a sua própria moeda.[3]

Além do Dólar

Em Bretton Woods, além do dólar-ouro, havia por parte dos norte-americanos a preocupação com a reconstrução de um sistema capitalista destruído física e moralmente. Era necessário superar a atração exercida pela ideia de igualdade comunista. Naquela conferência, estabeleceu-se que os fluxos financeiros seriam controlados unilateralmente pelos estados, eliminando a livre circulação de capitais e seus consequentes efeitos especulativos. Além disso, as taxas de câmbio seriam fixadas em relação ao dólar. Estas iniciativas visaram estabilizar no longo prazos as finanças e o comércio internacional, permitindo crescimento econômico mais rápido. Além disso, duas novas instituições de auxílio ao novo sistema foram criadas. No caso em que os países viessem a ter reiterados déficits no balanço de pagamentos com eventual falta de divisas fortes, tais países poderiam recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) em busca de socorro financeiro. Para a reconstrução do pós-guerra e o financiamento do desenvolvimento econômico, os países requerentes poderiam buscar financiamento junto ao Banco Mundial. O que ocorreu, todavia, foi que estas novas instituições tiveram seus aportes, em grande medida, reaizados pelos próprios EUA o que as tornou na maioria das vezes dependentes de suas decisões. Os recursos alocados também não foram suficientes para os objetivos propostos e as futuras demandas. Depois da conferência, e ainda no sentido de evitar a ameaça comunista, os Estados Unidos criaram o Plano Marshall para ajuda econômica à Europa e os planos de ajuda econômica ao Japão que tinham como objetivo acelerar a recuperação desses países. As empresas norte-americanas não deixaram de penetrar nos mercados europeu e japonês, assim como, em função dos interesses geopolíticos, os EUA permitiriam a expansão e penetração das empresas daqueles países em seus mercados.

O redesenho da estrutura financeira e comercial internacional com base no dólar-ouro depois de 1944 foi o que definiu, num primeiro momento, sua preponderância até os dias de hoje. Assim, a recuperação do sistema capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial foi feita com o uso do dólar e definiu que esta moeda seria a forma da reserva de riqueza propriamente dita. Até que sua validade fosse questionada em momento posterior houve duas décadas ininterruptas de recuperação e desenvolvimento econômico nos principais países capitalistas e em outros em desenvolvimento. No próximo texto veremos como foi o fim da ordem de Bretton Woods, o fim do dólar-ouro e o início da ordem globalizada com o advento do dólar flexível.

Referências:

ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo, SP: Boitempo, 2015.

EICHENGREEN, Barry J. A globalização do capital: uma história do Sistema Monetário Internacional. São Paulo, SP: Editora 34, c2000.

HOBSBAWM, E. J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998, 1994.

MAZZUCCHELLI, Frederico Mathias. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas, SP: FACAMP, 2013.

MEAD, Walter Russell. Special providence: American foreign policy and how it changed the word. New York, NY; London: Routledge, 2002.

VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2016.

YOUNG, Victor Augusto Ferraz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) e a Consolidação da Nova Ordem Econômica Internacional. 2018. 1 recurso online (220 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP.

[1] Uma onça troy de ouro (31,104 gramas) passaria a valer 35 dólares.

[2] Temos vários textos sobre Keynes e suas ideias em nosso blog. Ver: As ideias fundamentais de Keynes; As propostas de reforma social de Keynes; e A Teoria Geral de Keynes: uma apresentação didática.

[3] Os detalhes sobre este ponto específico veremos no próximo texto.

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