Crise do dólar e retomada da hegemonia financeira americana (parte 2)

Paul Volcker, presidente do Federal Reserve em 1979. Fonte: George Tames/The New York Times (com alterações).

Primeiras Mudanças na Ordem Financeira do pós Segunda Guerra

Dando continuidade ao nosso artigo anterior, “De onde vem a hegemonia do dólar?”, retomamos o fato de que os países centrais do então bloco capitalista[1] haviam estabelecido um novo sistema financeiro internacional com base no dólar-ouro e vinham se recuperando da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), passando por um ciclo de crescimento econômico praticamente ininterrupto durante as décadas de 1950 e 1960. Este período, denominado por Hobsbawn (1994) como “Era de Ouro”, chegava ao seu fim no final dos anos 1960, quando os Estados Unidos passaram a registrar reiterados déficits comerciais, apresentavam queda nas taxas de lucro de suas grandes empresas e, ao mesmo tempo, mostravam perda de poder geopolítico em meio à humilhante derrota militar que vinham sofrendo no Vietnã[2].

A institucionalidade do dólar-ouro[3] e a definição de que esta moeda deveria ser o principal meio internacional de troca, reserva de valor e unidade de conta viria, ao mesmo tempo, ser questionada por outros países centrais, entre eles a França do então presidente Charles De Gaulle (1959-1969). Seu ministro das finanças, Valéry Giscard D’Estaing, considerava que uma moeda nacional como o dólar não poderia ser considerada a principal moeda internacional. Este seria, conforme suas palavras, um privilégio exorbitante apenas desfrutado pelos Estados Unidos. Assim afirmava, pois o sistema financeiro internacional estabelecido em Bretton Woods em 1944 acabou por impor a todos os países, com exceção dos EUA, a obrigação de realizar esforços no sentido de produzir superávits comerciais crescentes no sentido de acumular reservas de dólares. Isso se fazia necessário, pois os países que quisessem manter o crescimento econômico e manter a estabilidade de preços internos teriam que acumular dólares para realizar importações no sentido de, por um lado, obter bens e serviços necessários para seu desenvolvimento e, por outro, complementar a oferta interna com importações para controlar os preços, dado que o crescimento econômico, por si só, produz, na maioria das vezes, uma elevação na demanda a frente da capacidade de oferta que se está construindo[4]. O único país que não precisava se preocupar com este esforço eram os Estados Unidos, já que qualquer cidadão ou empresa que obtivesse uma renda neste país, esta seria em dólares e estes dólares tinham a capacidade de comprar praticamente qualquer mercadoria em qualquer lugar do mundo. O governo norte-americano, por sua vez, além de sua receita tributária, poderia endividar-se internamente e, em última instância, emitir sua própria moeda no sentido de realizar os gastos que considerasse necessários. Assim, excepcionalmente, os Estados Unidos não tinham (e ainda não tem) que esperar pelo acúmulo de moeda internacional para projetar-se economicamente, eles mesmos a emitiam (e ainda emitem) essa moeda.

O Fim do Dólar-Ouro

A institucionalidade do dólar-ouro, porém, estava em risco. De um modo geral, o gasto estadunidense no sentido de recuperar a economia capitalista no pós-guerra[5], os efeitos multiplicadores da renda[6] que tal gasto provocou, assim como a resultante de acumulação de capital dada pelo crescimento econômico produzido nos países centrais fez com que a quantidade de dólares em circulação na economia global se tornasse muito maior do que a quantidade de ouro de que dispunham os EUA para honrar o acordo de troca de qualquer quantidade de dólares por suas reservas daquele metal precioso[7]. Os déficits comerciais norte-americanos provocados pela concorrência de economias recuperadas e mais competitivas faziam crescer a quantidade de dólares no recém instituído mercado financeiro de Londres[8]. Tanto esta renovada praça financeira quanto governos centrais como o da França e da Inglaterra viriam a pressionar os EUA para exaurir suas reservas de ouro em troca dos dólares acumulados. Sob tais circunstâncias, o governo estadunidense abandonou a paridade dólar-ouro e as taxas de câmbio fixas em agosto de 1971. Os EUA decidiram, assim, que não trocariam mais os dólares por qualquer quantidade de ouro. O valor do dólar agora flutuaria em relação a outras moedas e ativos, em grande medida, conforme a oferta e demanda dos mercados.

A princípio, o dólar se desvalorizou, mas não houve uma fuga generalizada dessa moeda. Para entendermos melhor por que o dólar se desvalorizou, mas não deixou de ser central no momento em que se desvinculou do ouro, devemos nos questionar: se os Estados Unidos eram ainda a maior e mais industrializada economia do planeta, ainda havia muito o que comprar e investir neste país. Outras questões que nos ajudam a entender o fato seriam: para quem bancos comerciais internacionais, bancos centrais, empresas transnacionais, organizações internacionais, indivíduos multimilionários e outros detentores de grande quantidade de dólares poderiam vendê-la no momento em que deixou de valer tanto quanto ouro? Como seriam desfeitas as amarrações contratuais, ajustados os financiamentos e operações financeiras nesta moeda, ou como seria a re-precificação de ativos, commodities e outros bens e serviços? Qual substituto tão difuso no mundo viria no lugar do dólar com uma capacidade de troca (liquidez) tão maleável como essa moeda? Estas são apenas questões preliminares a serem consideradas. Uma reorganização generalizada da economia capitalista não seria possível, ainda, sem a chancela da maior economia e maior potência militar no mundo capitalista naquele momento. Dessa forma, houve, de início, uma desvalorização do dólar em relação a outras moedas e ativos, mas, de forma alguma, a moeda americana deixou de ser central na economia mundial.

O Dólar Inquestionável

O Choque do Petróleo de 1973[9], dado que o preço do barril é denominado em dólares[10], coincidentemente reforçaria a busca pelo dólar, ao mesmo tempo em que enfraqueceria concorrentes industriais dos Estados Unidos, entre eles, europeus e japoneses, mais propriamente. Sem petróleo e, com certa valorização do dólar, enfrentariam um período de recessão e inflação provocadas pela alta do combustível. Não deixariam, contudo, de considerar o privilégio exorbitante de que desfrutavam os Estados Unidos e, a partir de então pressionariam cada vez mais por uma renovação da ordem financeira no sentido de se criar uma nova moeda internacional alternativa ou definir o uso de uma cesta de moedas para se reduzir a hegemonia da moeda americana no sistema financeiro global. Na reunião multilateral do FMI, em 1979, os EUA foram pressionados com tal proposta, porém a representação americana na pessoa do presidente do Federal Reserve Bank (Fed), Paul Volcker, abandonou a conferência, e, a partir daquele momento, e de forma unilateral, o Fed passou a elevar reiteradamente as taxas básicas de juros da economia americana, promovendo uma corrida para o dólar e um enxugamento da liquidez internacional. Tal fato lançou o mundo todo em recessão profunda em meio a uma situação de inflação nos preços dos combustíveis. Essa capacidade americana de influir sobre o destino das principais economias do mundo vetou qualquer possibilidade de que o dólar como moeda central fosse novamente questionado em mesas multilaterais de negociação. O chamado Choque de Juros de 1979 (ou Choque Volcker) lembrou a todos que os EUA ainda tinham a hegemonia sobre o sistema financeiro internacional e manteriam o dólar no centro das transações financeiras e comerciais globais.

Em nosso próximo artigo, discutiremos como os EUA se ajustaram para restabelecer seu domínio industrial e militar global nos anos seguintes.

Referências Bibliográficas:

Saudi dove in the oil slick. Sheikh Yamani tells Oliver Morgan and Faisal Islam why a production cut would hurt everyone – even Opec. THE OBSERVER. Londres. 14 de Janeiro de 2001. Business. Disponível em: https://www.theguardian.com/business/2001/jan/14/globalrecession.oilandpetrol. Consultado em 26/09/2016.

ANDERSON, Perry. A política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo, SP: Boitempo, 2015.

EICHENGREEN, Barry J. A globalização do capital: uma história do Sistema Monetário Internacional. São Paulo, SP: Editora 34, c2000.

HOBSBAWM, E. J. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1998, 1994.

MAZZUCCHELLI, Frederico Mathias. Os dias de sol: a trajetória do capitalismo no pós-guerra. Campinas, SP: FACAMP, 2013.

MEAD, Walter Russell. Special providence: American foreign policy and how it changed the word. New York, NY; London: Routledge, 2002.

METRI, Maurício. A Diplomacia Monetária dos Estados Unidos nos Anos Setenta. Revista Tempo do Mundo, v. 3, p. 155-179, 2017.

VAROUFAKIS, Yanis. O Minotauro Global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2016.

YOUNG, Victor Augusto Ferraz. O Governo de Ronald Reagan (1981-1989) e a Consolidação da Nova Ordem Econômica Internacional. 2018. 1 recurso online (220 p.) Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, Campinas, SP.

Notas:

[1] Países vinculados ao sistema capitalista de produção no período da Guerra Fria (1947-1991).

[2] A retirada das tropas americanas do Vietnã do Sul ocorreria em 1973.

[3] O termo dólar-ouro explicita o fato de que os EUA se comprometiam a trocar o dólar pelo metal a qualquer tempo desde os acordos de Bretton Woods em 1944.

[4] Qualquer país que busca o crescimento econômico no sentido de melhorar a condição de vida material de sua população, precisa contar com a possibilidade de realizar importações no sentido de manter a oferta de bens e serviços interna e controlar pressões inflacionárias sem a necessidade de diminuir a demanda. Medidas para diminuir a demanda, baseiam-se usualmente na restrição ao crescimento econômico através de juros altos, elevação de impostos e/ou corte de gastos do governo.

[5] Os Estados Unidos, com receio de uma expansão de regimes comunistas, contribuíram no imediato pós-guerra com vultosa ajuda econômica à Europa e ao Japão. O gasto americano também se elevou significativamente no sentido de implementar a corrida armamentista, a corrida espacial, as políticas de intervenção externa e de instalações de bases militares em função do advento da Guerra Fria em 1947.

[6] Um único gasto de investimento, por exemplo, gera outros gastos produzindo um aumento de demanda e de produção maior do que aquele realizado por aquele único gasto.

[7] A paridade definida em Bretton Woods era de 35 dólares para cada onça troy de ouro.

[8] O acúmulo de superávits comerciais do período de crescimento econômico da “Era de Ouro” seria crescentemente depositado no novo paraíso fiscal criado em Londres, o chamado mercado de “eurodólares”.

[9] Em 1973, os principais países produtores de petróleo, associados em torno da Organização dos Países Exportadores de Petróleo decidiram por uma elevação de 400% no preço internacional do barril de petróleo. Tal decisão teria se dado como protesto ao apoio dos EUA à Israel na Guerra do Yom Kippur naquele mesmo ano.

[10] Varoufakis (2016: 172, 174) informa sobre a pressão americana para a precificação exclusiva do barril de petróleo em dólares sobre a Arábia Saudita, tento como pano de fundo, inclusive, a ameaça de intervenção e ocupação dos poços de petróleo daquele país. Além disso, o ex-ministro do Petróleo da Arábia Saudita, entre 1962 e 1986, Sheik Yaki Yamani, afirmou em 2001 ao jornal britânico, The Observer: “Tenho 100 por cento de certeza de que os americanos estiveram por trás do aumento do preço do petróleo” em 1973 (The Observer: 2016).

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*