Por: Leonardo Dias Nunes
Introdução
O artigo apresenta de forma sucinta os principais argumentos do ensaio O ornitorrinco [1], escrito pelo sociólogo Francisco de Oliveira e publicado originalmente no ano de 2003. O ensaio parte da evolução da economia brasileira durante o século XX e está relacionado com outros três artigos publicados anteriormente aqui no Blog Sobre Economia, quais sejam, Mundialização do capital, Transnacionalização da classe capitalista e Brasilianização do mundo e precarização do trabalho.
O Brasil passava por um momento de efervescência social quando o ensaio foi publicado. Era o ano de 2003 e o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva começava. Havia muita expectativa em torno das transformações que poderiam ocorrer na sociedade brasileira. Não se deixando levar pelas expectativas positivas que envolviam aquela conjuntura, Francisco de Oliveira publica seu ensaio com críticas contundentes ao desenvolvimento capitalista no Brasil e às possibilidades de transformação radical dessa sociedade.
Do subdesenvolvimento ao ornitorrinco
Francisco de Oliveira inicia seu ensaio O ornitorrinco argumentando que a teoria do subdesenvolvimento foi influenciada pelo paradigma da singularidade de Weber, onde há possibilidade de ação e de escolha. Afirma que a realidade do subdesenvolvimento se formou nas ex-colônias da América transformadas em periferia, cuja função era fornecer elementos para a acumulação primitiva de capital para as economias centrais do sistema capitalista. Nessa região foi criada a dependência devido à conjunção existente entre a divisão social do trabalho e a articulação dos interesses internos.
Francisco de Oliveira continua argumentando que foi o processo de substituição de importações que levou à criação do subdesenvolvimento. A crise mundial de 1930 fez com que houvesse uma revolução interna no Brasil, fazendo com que a industrialização se transformasse em um projeto de dominação por meio de outras formas de divisão social do trabalho. De acordo com o autor, o desenvolvimento capitalista é um processo hierarquizado e a divisão social do trabalho é uma expressão dessa hierarquia. Por isso, o prefixo sub não é neutro, pois apreende essa realidade hierarquizada.
Francisco de Oliveira relembra que seu ensaio anterior – Crítica à razão dualista [2] – pertence ao campo marxista e ao campo cepalino. O primeiro campo faz a crítica do processo de desenvolvimento capitalista e o segundo apreende sua especificidade. Além dessas características, o autor afirma que a análise das formações econômicas subdesenvolvidas também deve contemplar a política, pois na forma específica do subdesenvolvimento brasileiro existiram dois fatores singulares. Primeiro, a agricultura de subsistência era útil para o processo de acumulação interna de capital ao ajudar no rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho nas cidades. Segundo, o exército industrial de reserva ocupado nas atividades informais rebaixava o custo de reprodução da força de trabalho urbana. Esses dois fatores que operavam no Brasil resultavam de uma sociedade em que ocorreu uma revolução produtiva sem uma revolução burguesa. Por isso, o subdesenvolvimento poderia ser entendido como a exceção permanente na periferia do sistema capitalista.
Na sociedade brasileira pós-1930, a organização dos trabalhadores perdeu a luta pela diminuição da exploração, a reforma agrária possível de ser realizada não acabou com o exército de reserva das cidades nem com o patrimonialismo. Por fim, faltou o projeto emancipador da burguesia nacional.
Já entre os anos de 1964 até 1984 ocorreu uma longa via prussiana comandada pelos militares, na qual existiram os seguintes fatores: repressão política aos sindicatos, coerção estatal, aumento da presença das empresas estatais, abertura ao capital estrangeiro, industrialização em marcha forçada, ausência de esforço para liquidar com o patrimonialismo, ausência de esforço para resolver o financiamento interno da expansão de capital, solução por meio do endividamento externo e abertura para a financeirização do Estado.
Esses vinte anos levaram à formação de um ornitorrinco, sociedade possuidora das seguintes características: tornou-se altamente urbanizada, possuía pouca força de trabalho no campo e nenhuma característica pré-capitalista. O setor do agrobusiness tornou-se forte e o setor relacionado à 2ª Revolução Industrial estava completo e avançado. Entretanto, o setor relacionado com a 3ª Revolução Industrial era fraco. No que diz respeito ao setor de serviços, a parte direcionada à alta renda era diversificada e a parte direcionada à baixa renda era primitiva. O sistema financeiro era atrofiado e a população economicamente ativa estava em declínio. Depois de algum tempo, adquiriu consciência e democratizou-se, porém, não produzia conhecimento, ciência nem técnica e precisava de dinheiro externo para movimentar a economia. Portanto, por um lado, essa sociedade já não era mais subdesenvolvida e, por outro, encontrava-se em condições similares ao período anterior à crise de 1930.
Soma-se à caracterização realizada acima a existência de uma economia industrial subordinada financeiramente. Além disso, com a 3ª Revolução Industrial e a mundialização do capital, houve um aumento brutal da produtividade do trabalho que levou à plenitude do trabalho abstrato.
Nesse novo contexto, o regime de trabalho em que a exploração se dava por meio da mais-valia relativa passou a ser utilizado para gerir o trabalho em que a exploração se dava por meio da mais-valia absoluta. Os fatores listados acima fizeram com que o ornitorrinco se tornasse em uma das sociedades mais desiguais do mundo capitalista.
Enquanto no subdesenvolvimento havia a capacidade de escolher a forma de organização da divisão do trabalho interna que preservaria a dominação, com a evolução para a sociedade do ornitorrinco essa capacidade foi perdida.
Para explicar melhor seu argumento, Francisco de Oliveira diferencia as consequências da 2ª Revolução Industrial e da 3ª Revolução Industrial. De acordo com o autor, o progresso técnico da 2ª Revolução Industrial era caracterizado por ser difuso e universal, já o da 3ª Revolução Industrial era incremental, dependia de conhecimentos anteriores, era descartável e efêmero. Por ter essas características, na 3ª Revolução Industrial era anulada a fronteira entre a ciência e a tecnologia.
O novo cenário fez com que as economias periféricas só pudessem copiar o descartável e esse tipo de acumulação torna-se obsoleta rapidamente. Consequentemente, por um lado, o constante esforço de investimento nesses setores leva à dependência financeira. Por outro, o reduzido nível de direitos trabalhistas existentes no Brasil reduziu a dificuldade da exploração realizada pelo capital da 3ª Revolução Industrial, fazendo do Brasil uma das sociedades mais desiguais do mundo devido ao rebaixamento da força de trabalho e à dependência externa.
Francisco de Oliveira também aponta para a transformação da estrutura de classe ocorrida no Brasil e, ao mesmo tempo, mostra como houve uma aproximação entre o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Para o autor, os técnicos, economistas e professores universitários do PSDB transformaram-se em banqueiros. Já os quadros do alto proletariado do PT transformaram-se nos administradores dos fundos de previdência. Assim, “(…) a identidade dos dois casos reside no controle do acesso aos fundos públicos, no conhecimento do mapa da mina” (OLIVEIRA, 2013, p. 147).
Considerações finais
O artigo apresentou de forma sucinta os principais argumentos presentes no ensaio O ornitorrinco escrito por Francisco de Oliveira, autor que propõe uma interpretação da formação do subdesenvolvimento no Brasil e, posteriormente, da formação do ornitorrinco. Esta última, corresponde a uma sociedade fundada em uma avançada e complexa industrialização da 2ª Revolução Industrial quando a 3ª Revolução Industrial já dominava a produção nas economias centrais do sistema capitalista, fato que a tornou dependente financeira e tecnologicamente. No ornitorrinco, a imensa quantidade de trabalhadores de baixa qualificação é gerida pela reduzida quantidade de trabalhadores altamente qualificados. Finalmente, a estrutura de classe foi transformada nessa sociedade, fazendo com que houvesse uma aproximação entre os técnicos, economistas e professores universitários do PSDB e os quadros do alto proletariado do PT. Aqueles transformaram-se em banqueiros, estes em gestores de fundos de pensão, caracterizando a formação de uma nova elite possuidora de acesso aos fundos públicos.
Mais de vinte anos após sua publicação, o ensaio de Francisco de Oliveira continua atual e sua crítica auxilia na compreensão e na reflexão sobre as contradições e as desigualdades existentes na sociedade brasileira contemporânea [3]. É um ensaio que mostra as desiguais características das possibilidades de desenvolvimento capitalista no Brasil e, ao mesmo tempo, as impossibilidades de transformação de uma economia periférica do sistema e que já não é mais subdesenvolvida.
Créditos da imagem que ilustra o artigo: Wikipédia.
Notas
[1] OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. 1ª ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2013.
[2] Ensaio publicado em 1972 pelo autor.
[3] Um pequeno texto sobre os 20 anos do ensaio O ornitorrinco pode ser encontrado aqui. Outros dois artigos que fazem a análise do ensaio após vinte anos de sua publicação podem ser acessados aqui e aqui.
Referências
DOS SANTOS, Fabiano José Araújo. “O Ornitorrinco”, 20 anos depois. Mediações-Revista de Ciências Sociais, p. 1-17, 2023.
DUARTE, João Marcos. 20 anos de “O ornitorrinco”. Blog da Boitempo. 2023. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2023/07/11/20-anos-de-o-ornitorrinco/Acesso em: 21 abr. 2024.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. 1ª ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2013.
RODRIGUES, Glauco Bruce; RAMOS, Tatiana Tramontani. O Ornitorrinco 20 anos depois: o que passou? Boletim Campineiro de Geografia, v. 13, n. 2, p. 409-433, 2023.
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