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Ciência Pop

Existe uma cultura das histórias em quadrinhos?

A cultura é um dos aspectos sociais estudados em áreas como antropologia, sociologia, entre outras. Desde sua gênese à forma como as sociedades se relacionam com seus rituais, crenças, artefatos e demais produções, estudos sobre cultura buscam, em grande parte, compreender certos fenômenos sociais e oferecer possíveis soluções para problemas comuns a determinados grupos.

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O entendimento de que as histórias em quadrinhos representam um campo próprio do conhecimento e das artes é defendido por Carvalho (2017) ao citar Bourdieu em sua dissertação de mestrado. Para Carvalho, a distinção entre os diversos campos da produção cultural se define na medida em que os elementos constitutivos desses campos são encontrados também no que convencionou-se chamar de Nona Arte.

A importância de se estabelecer essa distinção reside no fato de que, sem ela, o reconhecimento das histórias em quadrinhos como produtos culturais legítimos e de valor equivalente a qualquer outra manifestação artística, não é possível.

Por muito tempo, a validação das histórias em quadrinhos se deu por meio da comparação entre uma história e alguma outra produção como cinema ou literatura. Isso significa que, tal como ocorre com outros campos da produção humana, os quadrinhos possibilitariam a existência de uma cultura própria em que seus participantes compartilhariam saberes comuns e específicos do meio.

Ao afirmar que é possível considerar a organização social da cultura, “como um sistema de significações realizado, que está embutido em uma série completa de atividades, relações e instituições”, Williams (2008, p.208) estabelece que há práticas que delimitam e legitimam a existência de determinadas culturas, corroborando a pesquisa de Mathew Pustz (2000) sobre a existência de uma cultura das histórias em quadrinhos.

Assim, quando Raymond Williams (2008) detalha a história dos processos culturais dentro da perspectiva da sociologia, além de definir cada um dos elementos constitutivos do que ele considera um sistema, também define as organizações envolvidas nesses processos.

Logo, quando divide as formações culturais modernas de acordo com alguns critérios que ele mesmo estabelece, espaços destinados à leitura de quadrinhos, como as gibitecas públicas, seriam o que ele classificou como tipo II, ou seja, “formações que não se baseiam na participação formal de associados, mas se organizam em torno de uma manifestação pública coletiva, tal qual uma exposição, um jornal ou um periódico do grupo, ou um manifesto explícito” (WILLIAMS, 2008, p.68).

Williams (2008, p.70) ainda define os tipos de relações externas que as formações podem estabelecer, dividindo-as em três grupos:

  • a) especializadas, como nos casos de apoio ou de promoção em determinado meio ou ramo de uma arte e, em certas circunstâncias, em determinado estilo;
  • b) alternativas, como nos casos de oferta de facilidades alternativas para a produção, exposição ou publicação de determinados tipos de obras, quando se acredita que as instituições existentes as excluem ou tendem a excluí-las;
  • c) contestadoras, nas quais os casos representados (b) são alçados a contestação ativa às instituições estabelecidas ou , de maneira mais geral, às condições dentro das quais estas existem.

A categorização de Williams é significativa no sentido de fornecer algumas evidências sobre a importância dos espaços dedicados à difusão cultural, demonstrando por meio de suas ações qual seria o seu impacto nas comunidades onde estão inseridos, sugerindo exemplos de outras instituições com as mesmas características como uma forma de ilustrar que tanto as formações artísticas, como suas relações externas, são elementos inerentes à cultura. 

Os três exemplos definidos por Williams surgiram no final do século XIX em contextos em que a produção artística, muitas vezes restrita a espaços mais tradicionais, como museus e universidades, não representavam a diversidade cultural que era produzida por artistas independentes, de forma marginal. Por isso, as formações citadas se tornaram os meios pelo qual o público podia ter acesso a uma variedade de obras que não se encaixavam em um padrão hegemônico e elitista. Sendo assim:

“É aprendendo a estudar a natureza e a diversidade das formações culturais, que podemos caminhar na direção de uma compreensão mais adequada dos processos culturais imediatos da produção cultural”

(WILLIAMS, 2008, p.85).

Para sua pesquisa sobre a existência de uma cultura específica das histórias em quadrinhos, Pustz (2000) se baseou em entrevistas com frequentadores de eventos de quadrinhos, como comic cons – feiras, congressos de fãs – e consumidores de uma loja de quadrinhos chamada Daydreams, na cidade de Iowa, Estados Unidos.

A partir do que Henry Jenkins traz em seus livros sobre cultura de fãs de cinema e TV e do que McCloud fala sobre a linguagem dos quadrinhos, Pustz demonstra que, a partir de certos elementos encontrados nas interações ente leitores de histórias em quadrinhos, é possível afirmar que leitores e fãs criaram uma cultura distinta e com sua própria linguagem, conhecimento e práticas (2000, p. ix), tal qual ocorre em qualquer outro universo que gire em torno de uma determinada forma de arte:

Um exemplo recente captura acuradamente a ideia que este grupo de pessoas constitui uma cultura única. Em Simpsons Comics #39, Homer e o “cara da loja de quadrinhos”, dono da loja de quadrinhos de Springfield, são levados a julgamento por possuírem e venderem quadrinhos obscenos. Atuando em seu favor e ao de Homer, o “cara da loja de quadrinhos” faz uma declaração tão repleta de referências sobre quadrinhos e filmes de ficção científica, que o júri fica tão confuso a ponto de solicitar que um grupo de fãs traduza o que foi dito.

(PUSTZ, 2000, p. ix)
Simpsons Comics #39

No episódio citado por Pustz, os tradutores são leitores de quadrinhos, assim como os dois acusados, no entanto, o júri não é. A questão apontada pelos personagens é que os integrantes do júri não seriam empáticos a eles por desconhecerem o que envolve ser um fã de quadrinhos. Assim, o juiz é convencido a preencher o júri com alguns fãs que acabam inocentando os réus da acusação de obscenidade, indicando que grupos de fãs de quadrinhos podem ser muito diferentes dos “cidadãos comuns”.

Pustz ainda atenta para o fato que mesmo dentro da cultura dos quadrinhos há culturas distintas dependendo do tipo de quadrinhos que os leitores consomem, identificando comportamentos também específicos entre os fãs de quadrinhos “mainstream” e “alternativos” e demonstrando como os gibis contribuem para a construção dessas culturas.

Uma outra prática que contribui para o consumo dos gibis é a interação: ao criar um senso de cooperação entre leitores e criadores por meio das seções de cartas dos leitores em cada edição, editoras como a antiga EC Comics ofereciam aos consumidores a chance de interagir entre si e entre seus artistas favoritos (PUSTZ, 2000, p. xi), permitindo que os fãs sugerissem rumos e desfechos para as histórias que acompanhavam.

Hoje em dia, essa interação é feita por meio de sites e redes sociais, via comentários e discussões acaloradas sobre questões relacionadas ao mercado, personagens, artistas e o que mais surgir em torno das publicações mais populares. É também por meio das redes sociais e eventos presenciais realizados por sites especializados que fãs refletem acerca de temas relacionados aos quadrinhos.

O colecionismo é uma das principais práticas presentes na cultura das histórias em quadrinhos. Wright (2008) afirma que grande parte das práticas relacionadas ao ato de colecionar quadrinhos está ligada à sua materialidade:

“qualquer pessoa que já tenha precisado mudar uma coleção de gibis de endereço pode testemunhar sobre sua presença física, principalmente no que tange ao seu peso”.

Como lembra o autor, uma edição de The Flash não pesa muito, mas vários volumes colecionados ao longo de anos, enchem certamente uma caixa. 

Assim, a prática social de colecionar afeta os envolvidos de forma física, pois envolve a classificação, separação, conservação, tudo de acordo com os fins que cada revista pode ter, não sendo possível então, separar tal atividade da materialidade de seus objetos. Por isso, é compreensível que muitos dos colecionadores entrevistados por Wright, afirmem que manter quadrinhos em arquivos de computador ou outros dispositivos eletrônicos, não caracterizaria uma coleção, afinal, o prazer da experiência envolve atividades como “caçar” quadrinhos raros, organizá-los, observar suas condições e texturas…

The Big Bang Theory 11×21 “The Comet Polarization” Temporada 11 Episódio 21 All Sneak Peeks – A loja de quadrinhos de Sheldon experimenta mudanças quando o escritor Neil Gaiman coloca a loja de Stuart no mapa.

“Tanto leitores “mainstream” como “alternativos” são devotados à mídia dos quadrinhos e são unidos por seu conhecimento em literacia dos quadrinhos” (PUSTZ, 2000, p. xii), o que significa, em um nível mais básico, que essa literacia envolve fluência na “linguagem dos quadrinhos”.

Ao citar McCloud, Pustz explica que essa linguagem é internalizada pelos leitores com base em sua experiência com os gibis e é por meio dessa compreensão que o público é delimitado, uma vez que as publicações costumam ser direcionadas a leitores que possuem um conhecimento prévio necessário para a decodificação das mensagens transmitidas nas histórias.

A existência de um local físico para encontro de fãs, sejam eles convenções ou gibitecas, possibilita que os leitores interajam e conversem sobre seus personagens favoritos e discutam questões relacionadas aos quadrinhos (PUSTZ, 2000, p. xiii), contribuindo para a formação de uma cultura específica das histórias em quadrinhos. Pustz atribui à interação um fator crucial para a importância dessa cultura, uma vez que a participação em eventos é central para sua realização, pois cada membro da cultura dos quadrinhos é um participante ativo dela, não apenas um consumidor.

Portanto, “essa cultura serve como um exemplo importante de como a cultura em geral é criada por meio da participação e delimitação de fronteiras” (PUSTZ, 2000, p. xiv). Tal qual ocorre com outras expressões artísticas ou mesmo em relação aos esportes, “fãs de quadrinhos apreciam ser especialistas, mesmo quando não há ninguém com quem compartilhar seu conhecimento” (PUSTZ, 2000, p. 114).

Nesse sentido, Pustz afirma que os fãs de gibis possuem um conhecimento muito mais detalhado sobre os títulos que escolhem, até mesmo quando se trata de alguma história que não tenham lido, do que os não-leitores podem imaginar. Como resultado, o leitor ideal que essas histórias embebidas de literacia “quadrinística” miram não é um indivíduo: é a própria cultura das histórias em quadrinhos. (PUSTZ, 2000, p.115)

Assim, como outros autores já afirmaram anteriormente (Groesteen, 2015; Barbieri, 2017, McCloud, 1993), as histórias em quadrinhos possuem recursos narrativos específicos que exigem de seus fãs e consumidores habilidades também específicas para decodificá-los:

Sem o domínio dessa linguagem, um domínio que muitos fãs internalizaram, quadrinhos se provaram uma leitura difícil para aqueles sem experiência. McCloud diz que cada aspecto de uma página de quadrinhos, do layout do painel ao uso das cores, da interação entre palavras e imagens à tendência do artista em direção (ou afastamento) do abstrato, é importante para a criação de significado.

(PUSTZ, 2000, p.115)
Vingadores Era de Ultron – Filme 2015

Os estudos acadêmicos de histórias em quadrinhos são transdisciplinares o que possibilita que muitas publicações científicas de áreas diversas circulem por espaços também diversos, contribuindo para a construção de um conhecimento distinto sobre uma cultura compartilhada por um grupo de pessoas e que se difere de outras culturas por suas particularidades como o uso de uma linguagem específica, jargões da área, práticas e saberes que são pertinentes a esse grupo de maneira única.

Portanto, poderíamos falar em uma cultura das histórias em quadrinhos, não?

Referências:

BARBIERI, Daniele. A Linguagem dos Quadrinhos. Peirópolis, São Paulo, 2017.

CARVALHO, Beatriz Sequeira de. O processo de legitimação cultural das histórias em quadrinhos. Dissertação de Mestrado. ECA/USP, São Paulo, 2017. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-31102017-123128/pt-br.php >

GROESTEEN, Thierry. O Sistema dos Quadrinhos. Marsupial, Rio de Janeiro, 2015.

MCCLOUD, Scott. Understanding Comics: The Invisible Art. Northampton, Mass. : Kitchen Sink Press, 1993.

PUSTZ, Matthew. Comic Book Culture: Fanboys and True Believers. Mississipi University, 2000.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Paz e Terra, São Paulo, 2008.

WRIGHT, Frederick. How Can 575 Comic Books Weigh Under an Ounce?: Comic Book Collecting in the Digital Age. V. 11Issue 3, Fall 2008. Disponível em: <https://quod.lib.umich.edu/j/jep/3336451.0011.304/–how-can-575-comic-books-weigh-under-an-ounce-comic-book?rgn=main;view=fulltext;q1=How+Can+575+Comic+Books+Weigh+Under+an+Ounce.>Acesso em 15 ago. 2017.

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