Estudantes confiam mais na mídia tradicional do que nas mídias sociais
Os estudantes dão muita credibilidade às informações sobre vacinas veiculadas na mídia tradicional (1), porém duvidam daquelas que circulam nas mídias sociais (2) e nos aplicativos mensageiros (como o WhatsApp).
Essas são algumas das conclusões do estudo Leitura de fake news sobre vacinas em contextos formais de aprendizagem, desenvolvido como parte da dissertação de mestrado em Divulgação Científica e Cultural no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, orientada pela jornalista e pesquisadora Graça Caldas. (Link da dissertação será inclusa assim que for publicada)
A pesquisa aponta ainda que o Letramento Midiático e Informacional (3) é uma ferramenta importante no combate à desinformação. Isto porque propõe uma leitura crítica da(s) mídia(s), necessária para que o leitor consiga entender melhor o conteúdo que circula em diferentes plataformas e particularmente nas redes sociais e se posicionar sobre os temas em discussão/debate.
METODOLOGIA
A pesquisa, que se caracteriza como um Estudo Múltiplo de Caso, de natureza qualitativa (4), foi realizada entre maio e novembro de 2021 em duas escolas da cidade de Campinas – uma da rede pública e outra da rede privada – tendo sido selecionadas por livre adesão, dadas as dificuldades do contexto de aulas remotas em função da pandemia da Covid-19.
Por meio de formulário online, 411 estudantes do Ensino Médio (jovens entre 14 e 19 anos) participaram de uma entrevista sobre o fenômeno da desinformação em sala de aula e responderam a um teste contendo 10 textos com informações sobre vacinas, factuais e não factuais, que circularam em veículos da mídia tradicional brasileira, de mídias sociais e em aplicativos mensageiros.
Pedimos aos estudantes que classificassem as informações dentre as alternativas apresentadas (Figura 1, abaixo), construídas com base nos procedimentos de checagem de notícias utilizados pelas agências Lupa e Aos Fatos, nos Sete Tipos de Desinformação – descritos por Claire Wardle e Hossein Derakhshan (2017) – e no Civic Online Reasoning, um estudo do Stanford History Education Group (Sheg), da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos (EUA).
Os textos selecionados procuram avaliar as seguintes habilidades de leitura previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio:
CAMPO DE ATUAÇÃO | CÓDIGOS DA HABILIDADE NA BNCC |
Todos os campos de atuação social | EM13LP11 |
Campo das Práticas de Estudo e Pesquisa | EM13LP31 |
Campo Jornalístico-Midiático | EM13LP36, EM13LP38, EM13LP39, EM13LP40, EM13LP44. |
ALGUNS RESULTADOS
Mídia Tradicional X Mídia Social
Alguns resultados da pesquisa indicam que os estudantes tendem a classificar como verdadeiras informações sobre vacinas quando elas são veiculadas na mídia tradicional (no caso dos textos selecionados, em sites de grandes conglomerados de mídia).
O texto 06 que trazia informações veiculadas no portal G1, do grupo Globo, obteve 90% das respostas como “Verdadeira”, assim como o texto 10 com informações do portal do jornal O Estado de Minas, dos Diários Associados, obteve 87%. Apenas 02% desses estudantes consideraram as informações desses dois textos como “Falsa”.
Por outro lado, quando uma informação sobre vacinas é veiculada numa postagem de mídia social, o resultado é bem diferente. Somente 21% dos estudantes classificaram-na como “Verdadeira”, enquanto 73% duvidam de sua veracidade, dentre os quais 40% a consideram “Insustentável”, 21% “Imprecisa” e 12% totalmente “Falsa”.
Já no caso das informações que circulam nos aplicativos mensageiros, corroborando resultados de outros levantamentos como o do Instituto Datafolha, os estudantes dão pouca credibilidade a elas. Apenas 02,7% dos jovens consideraram “Verdadeira” uma mensagem sobre efeitos colaterais das vacinas (Texto 05). Desconfiaram da informação nada menos que 95,4%, dentre os quais 65,9% consideraram-na “Falsa”, 25,1% “Insustentável” e 04,4% “Imprecisa”.
Notícia Patrocinada
Outro dado que impressiona, mas não surpreende, é a constatação de que os estudantes não identificam e diferenciam um conteúdo publicitário em formato de notícia de uma notícia real: apenas 16% conseguem localizar no texto elementos, alguns deles explícitos, que caracterizam a finalidade comercial de um texto jornalístico pago por uma empresa para ser publicado, enquanto 75,4% consideraram o texto verdadeiro.
Ocorre que para alcançar uma competência leitora avançada, o indivíduo precisa (entre outras coisas) saber identificar a origem do texto (seus autores, veículos, financiadores, linha editorial etc.).
É preciso observar que a notícia patrocinada não tem como objetivo principal o interesse público, mas o privado, comercial, isto é, ela interessa primeiramente à empresa que a patrocinou e que pretende vender determinado produto, no caso selecionado, vacinas contra a gripe.
No entanto, não há surpresa nesse resultado porque ele se assemelha ao de outra pesquisa internacional (5) divulgada em 2016 pela Universidade de Stanford (EUA), cujos resultados demonstram que menos de 20% dos estudantes conseguem identificar o interesse privado de uma notícia.
Os pesquisadores do Sheg classificam esses resultados como preocupantes, uma vez que expõem uma lacuna na aprendizagem das habilidades de leitura dos alunos estadunidenses.
DISCUSSÃO
O perigo de acreditar cegamente na mídia tradicional
A ilustração acima mostra William Randolph Hearst (1863-1951) – empresário estadunidense do ramo de editoras, que chegou a ter uma enorme rede com 28 jornais diários e 18 revistas – como um bobo da corte, jogando jornais com manchetes como apelos à paixão, veneno, sensacionalismo, ataques a funcionários honestos, contendas, notícias distorcidas, queixas pessoais e deturpação.
Consta que ele é considerado o expoente da Imprensa Amarela (6), conhecido por usar suas publicações como arma política, abusando de manipulação de fatos e gerando escândalos para atingir seus objetivos comerciais e/ou políticos.
Foi eleito pelo Partido Democrata americano para a Câmara de Representantes por dois mandatos e concorreu à prefeitura da cidade de Nova Iorque e ao governo do Estado de Nova Iorque, perdendo nas duas oportunidades.
Observa-se que as (hoje denominadas) fake news eram disseminadas por veículos da mídia tradicional, no entanto, engana-se quem acredita que tal prática tenha ficado no passado.
Muito ao contrário, uma pesquisa (7) do Laboratório de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais (Midiars), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), constatou que os canais da mídia tradicional brasileira tiveram um papel central na promoção do uso de cloroquina e hidroxicloroquina (pró-HCQ) para Covid-19.
Segundo os pesquisadores, eles foram maioria entre os produtores de vídeos pro-HCQ no YouTube, como mostra o Gráfico 1, abaixo:
Isso derruba o argumento amplamente divulgado (pela própria mídia tradicional) de que as fake news são produzidas apenas por autores baseados nas mídias sociais e nas alternativas.
O estudo mostra que, nesse episódio, a grande mídia contribuiu para o contexto de desinformação sobre a Covid-19 ao promover medicamentos que não possuem eficácia no tratamento da doença.
De fato, não foi difícil encontrar, principalmente no período mais agudo e mais mortal da pandemia, jornalísticos de alguns veículos da mídia tradicional que, a pretexto de “mostrar os dois lados”, promoveram o negacionismo da vacina. Isso não é segredo para ninguém.
LETRAMENTO MIDIÁTICO COMO SAÍDA PARA A DESINFORMAÇÃO
Apesar desses resultados, é preciso levar em conta que a leitura de um texto contendo desinformação no ambiente controlado da escola difere bastante do contexto em que as pessoas recebem uma avalanche de informações em seu celular em diferentes momentos do dia.
Contudo, uma pesquisa (8) publicada pelo American Educational Research Journal, em 2017, realizada com jovens estadunidenses entre 15 e 27 anos mostra que entre os que tiveram oportunidade de aprendizado de alfabetização midiática houve um “efeito de interação positivo e estatisticamente significativo” sobre a “visualização de uma postagem baseada em evidências em relação à exibição de uma postagem com desinformação.”
A jornalista e pesquisadora Graça Caldas, do Labjor da Unicamp, defende que é preciso realizar um exercício de leitura das linhas editoriais das empresas e de seus veículos, pois, uma perspectiva comparativa da mídia é de extrema importância para a leitura crítica desses meios:
Sabe-se, que a aquisição do conhecimento e a formação crítica de leitores não se dá pela leitura única de um veículo, mas justamente pela comparação entre eles. É exatamente pelo acesso ao contraditório, à percepção e ao reconhecimento de diferentes visões e interpretações de um mesmo fato, pela polifonia das vozes, que é possível efetuar uma leitura do mundo que vá além da leitura das palavras.
(CALDAS, 2006:126-127)
Por um lado, a confiança dos estudantes na mídia tradicional apontada nesta pesquisa, é positiva uma vez que nela existe uma estrutura de funcionamento e uma linha editorial definida (ao menos nos manuais da Redação), enfim, há certa transparência que possibilita que se faça críticas na Sessão de Leitores, por exemplo, e que se obtenha algum retorno, como nas redações onde há a figura do ombudsman.
Por outro lado, é preciso também ter criticidade para desconfiar do porquê alguns assuntos frequentam o noticiário e outros são estrategicamente “esquecidos”; do porque uma pessoa adolescente presa com entorpecentes num bairro rico é identificado como “jovem” e num bairro pobre é “traficante”, só pra ficar em dois exemplos.
Assim como mostram a história e os estudos científicos, a mídia tradicional também pode exercer um papel central na dinâmica da desinformação, principalmente se na recepção estiverem leitores acríticos, situação que pode se modificar com o letramento midiático.
Seria ingenuidade julgar antecipadamente uma informação apenas pela mídia que ela foi transmitida. Ao contrário do que responderam os participantes desta pesquisa sobre leitura de fake news em ambiente de aprendizagem, muita coisa interessante e fidedigna pode circular em diferentes plataformas e mídias, seja no WhatsApp, assim como nas mídias alternativas (como blogs e similares). Todas elas são ferramentas que democratizam a comunicação. É preciso, portanto, saber utilizá-las com criticidade e desfazer preconceitos.
Por fim, é importante lembrar que, no papel, a BNCC traça um rol interessante de habilidades de leitura a serem perseguidas pelos educadores.
E eles, assim como os estudantes, precisam cada vez mais aprender a utilizar as ferramentas e a desenvolver habilidades e competências para leitura crítica da mídia.
Novas e amplas pesquisas precisam ser realizadas para investigar se a escola tem conseguido executar metodologias eficazes de aprendizagem sobre a mídia e quais são elas. Para combater a desinformação, nunca o clichê “a Educação pode mudar o futuro” foi tão necessário e urgente.
Para saber mais:
- Para definir este termo, eu concordo com o entendimento da jornalista e pesquisadora em comunicação Liziane Guazina, para quem a Mídia Tradicional engloba o conjunto de meios enquanto indústria da comunicação – o rádio, a televisão e o cinema – com suas empresas e rotinas próprias dentro da sociedade capitalista detentora de linguagens, formatos, estratégias, processos e agentes múltiplos que envolvem a comunicação de massa, projetam imagens e visibilidades e a constituem um poder no mundo contemporâneo (GUAZINA, 2007:54)
- Considero mídias sociais como plataformas baseadas na Internet que permitem a criação e a troca de conteúdo gerado pelo usuário, geralmente usando tecnologias móveis ou baseadas na Web. (MARGETTS et al., 2015).
- Letramento Midiático ou Alfabetização Midiática é uma forma de letramento crítico. Envolve análise, avaliação e reflexão crítica. Isso implica a aquisição de uma “metalinguagem” – isto é, um meio de descrever as formas e estruturas dos diferentes modos de comunicação; e envolve uma compreensão mais ampla dos contextos sociais, econômicos e institucionais da comunicação e como eles afetam as experiências e práticas das pessoas (Luke, 2000). O letramento midiático certamente inclui a capacidade de usar e interpretar mídias; mas também envolve um entendimento analítico muito mais amplo. (BUCKINGHAM, 2013:37-38)
- A pesquisa de natureza qualitativa, em oposição à quantitativa, pretende trazer dados para descrever o comportamento específico daquele grupo pesquisado. Portanto, seus resultados não podem ser estendidos para o todo da população.
- DONALD, Brooke. Stanford researchers find students have trouble judging the credibility of information online. Stanford Graduate School of Education. Santa Clara (EUA). 22 nov. 2016. Disponível em: https://ed.stanford.edu/news/stanford-researchers-find-students-have-trouble-judging-credibility-information-online Acesso em 01 jun. 2022
- A Imprensa Amarela ou o Jornalismo Amarelo (do inglês “yellow press”) é uma expressão estadunidense que surgiu no final do século XIX a partir da concorrência entre os jornais New York World (de propriedade de Joseph Pulitzer) e The New York Journal (de propriedade de William Randolph Hearst). Eles haviam entrado em guerra para ter em suas páginas as aventuras de Yellow Kid, a primeira tira em quadrinhos da história. A disputa nos bastidores foi tão pesada que o amarelo do cobiçado personagem acabou virando sinônimo de publicações sem escrúpulos, sensacionalistas e de veracidade duvidosa. Desde então, o termo passou a ser utilizado nos EUA para designar práticas jornalísticas de manipulação dos fatos. No Brasil esse tipo de jornalismo é denominado “Imprensa Marrom” (REVISTA SUPERINTERESSANTE, 2011).
- SOARES, Felipe. SALGUEIRO, Igor. BONOTO, Carolina. VINHAS, Otávio. YouTube as a source of information about unproven drugs for Covid-19: The role of the mainstream media and recommendation algorithms in promoting misinformation. Preprint. 08 set. 2021. Disponível em: https://wp.ufpel.edu.br/midiars/2021/09/08/preprint-youtube-as-a-source-of-information-about-unproven-drugs-for-covid-19-the-role-of-the-mainstream-media-and-recommendation-algorithms-in-promoting-misinformation/ Acesso em 06 jun. 2022
- KAHNE, Joseph. BOWYER, Benjamin. Educating for Democracy in a Partisan Age: Confronting the Challenges of Motivated Reasoning and Misinformation. American Educational Research Journal, Vol. 54 (1), p. 3–34. 2017. Disponível em: https://doi.org/10.3102/0002831216679817 Acesso em 02 jun. 2022.
Referências
CALDAS, Graça. Mídia, escola e leitura crítica do mundo. Educação & Sociedade. Campinas, vol. 27, n. 94, p. 117-130, jan./abr. 2006. Disponível em: https://www.cedes.unicamp.br/publicacoes/edicao/122. Acesso em 12 jul. 2018
BUCKINGHAM, David. Media education: Literacy, learning and contemporary culture. John Wiley & Sons, 2013. Disponível em: <https://bit.ly/2ClZLwl> Acesso em 20 mai. 2020.
GUAZINA, Liziane. O conceito de mídia na comunicação e na ciência política: desafios interdisciplinares. Porto Alegre. Revista Debates, v. 1, n. 1, p. 49-64, jul.-dez. 2007.
MARGETTS, Helen; JOHN, Peter; HALE, Scott; YASSERI, Taha. Political turbulence: How social media shape collective action. Princeton University Press, 2015. Disponível em: <https://bit.ly/3htPqOS> . Acesso em 06 jun. 2022.
WARDLE, Claire, DERAKHSHAN, Hossein. Information Disorder – Toward an interdisciplinary framework for research and policy making. Council of Europe. Estrasburgo, França. 27 out 2017. Disponível em https://rm.coe.int/information-disorder-toward-an-interdisciplinary-framework-for-researc/168076277c . Acesso em 04 jun. 2022