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Ciência Pop

Mulher-Maravilha, as amazonas e o feminismo

Há algum tempo eu falo sobre a relação entre a criação da Mulher-Maravilha com o movimento sufragista e, posteriormente, da sua identificação com o feminismo. Isso porque, embora essas relações possam parecer óbvias para alguns, foi apenas por meio dos estudos de gênero que pude entender mais claramente por que não podemos afirmar que a personagem é uma feminista, mas sim, um ícone feminista.

De acordo com o dicionário Priberam, entre 4 possíveis significados da palavra ícone estão: 

Signo que tem uma relação de semelhança com aquilo que está a representar; Figura SIMBÓLICA representativa de algo.

Wonder Woman frees imprisoned South Vietnamese women in “Justice League: The New Frontier,” a DVD due in February. Crédito: Warner Home Video

Para entender melhor as relações sobre quadrinhos, iconografia e simbologia, conversei com o prof. Dr. Iuri Reblin, que se tornou uma referência em estudos de super-heróis e teologia. Sua tese de doutorado intitulada O alienígena e o menino foi ganhadora do prêmio Capes de melhor tese no ano de sua publicação, em 2013.

Sobre a importância dos super-heróis na sociedade, Iuri afirma o seguinte:

“Enquanto bens culturais, os super-heróis e as super-heroínas são fornecedores e fornecedoras de sentido. Traduzem um conjunto de valores que são expressos em suas falas e em suas ações. As histórias das personagens da superaventura têm ocupado, frequentemente, o lugar que outras narrativas ocuparam (e ainda ocupam) em nossas vidas, como as sagas bíblicas, os mitos, as histórias de ficção, as estórias e os causos que nossos avôs, nossas avós partilharam, no sentido de fornecer exemplos de atitudes, de ideais a serem almejados, influenciando na construção de identidade, no senso de coletividade e na percepção de mundo. Claro que, se considerarmos essas histórias como produto de massa vinculado a uma indústria cultural e todas as implicações correlacionadas, esses exemplos de atitudes e ideais podem ser questionados e avaliados criticamente. No entanto, isso não muda o fato de que os super-heróis e as super-heroínas hoje têm se tornado modelos de comportamento e expressão de nossos ideais e visões da realidade. Seu papel consiste em ser simultaneamente uma válvula de escape e um símbolo ora mais, ora menos difuso que pode orientar nosso caminhar.”

Diana nunca se assumiu abertamente feminista, até porque de onde ela vem, este conceito sequer existe. Ela pode ser assumidamente qualquer coisa de acordo com as intenções do roteirista que a escreve, no entanto, vale lembrar que histórias em quadrinhos são um produto de uma cultura de massa inseridas em um contexto capitalista, a tendência é que a personagem feminina de maior alcance dos quadrinhos mantenha certa coerência com as demandas do público feminino.

Já nas histórias iniciais, concebidas por William Moulton Marston, Diana tinha um discurso de não submissão aos homens, lembrando constantemente que nenhuma mulher deveria se sentir inferior ou se submeter às vontades masculinas. Esta seria a primeira e mais remota identificação com o discurso feminista de igualdade de gêneros, se não fosse o fato de sua criação estar diretamente ligada ao movimento sufragista entre os anos 10 e 20.

De acordo com a pesquisadora Jill Lepore, em seu livro The Secret History of Wonder Woman, sem o feminismo nossa heroína sequer existiria, pois foi depois de ter conhecido o movimento sufragista que Moulton desistiu de se matar. Posteriormente, após suas experiências com o polígrafo, também de sua criação, constatou que as mulheres eram emocionalmente superiores aos homens, por mentirem menos, por isso, seriam capazes de articular melhores diálogos em prol de um bem comum.

Ou seja, a Mulher-Maravilha não surge de uma concepção de igualdade entre os gêneros, mas de superioridade, o que estaria em discordância com o feminismo, claro. Ainda assim, no decorrer dos seus 75 anos e tendo passado pelas mãos de inúmeros desenhistas e roteiristas, algumas de suas características principais como a busca pela paz e pela justiça e o fato de não precisar ser salva por um herói, sendo capaz de tomar suas decisões baseadas em suas próprias convicções, geraram identificações por parte de grandes feministas como Gloria Steinem.

A utopia feminista das amazonas

Já as amazonas, retratadas em diversas histórias há vários séculos, tiveram na versão do desenhista e roteirista George Perez (1994-1996) uma representação muito próxima à que foi imaginada pela escritora Christine de Pizan em sua utopia feminista Cidade das Damas, em 1405:

Considerada a primeira obra a questionar a supremacia masculina em relação à mulher em vários domínios, A Cidade das Damas busca reavaliar o papel feminino ao longo dos tempos, através da compilação de exemplos de várias figuras históricas, lendárias, mitológicas, de grandes virtudes, que deram prova da capacidade intelectual e física, cujas histórias foram emprestadas de obras de escritores de renome, como Ovídio, Virgílio, Jean de Meung, Jehan Le Fèvre, Boccaccio. (DEPLAGNE, 2013, p. 116)

Se o surgimento de utopias feministas se deve à necessidade de fuga de um mundo onde a violência contra as mulheres impera, nas histórias em quadrinhos da Mulher-Maravilha não é diferente. Entre as mais diversas origens que justifiquem a criação de Themyscira habitada por Amazonas, a versão de George Perez se consolidou como uma tentativa de “reiniciar” o universo da super-heroína. Nessa versão, o assassinato de uma mulher por seu companheiro em 30.000 a. C abre a narrativa, estabelecendo que a violência contra a mulher existe desde os primórdios da humanidade.

 

DC Modern Classics – Mulher Maravilha: Deuses e Mortais – Escritores: George Perez, Len Wein e Greg Potter – Ilustradores: George Perez e Bruce Patterson

Alguns mil anos depois, em uma discussão entre os deuses no Olimpo sobre como a violência imposta por Ares vinha destruindo a humanidade com guerras e a afastando de sua adoração a eles, o deus da guerra propõe a criação de uma nova raça de mortais que se submetam aos deuses por medo, contrariando o posicionamento das deusas que acreditam que a humanidade deve ser composta por homens e mulheres que se relacionem de forma harmoniosa.

Como os deuses não chegam a um consenso e Zeus não se posiciona, as deusas decidem seguir ao interior de Gaia, onde “as almas de todas as mulheres cujas vidas foram encurtadas pelo medo e pela ignorância do homem” (PEREZ, 2017, p.16) aguardam por seu renascimento após eras de lamentação no limbo. Com o sopro de Ártemis, as almas inundam o centro de Gaia, dando origem às Amazonas:

“Vocês são uma raça escolhida…nascidas para mostrar à humanidade a trilha da virtude… e os ensinamentos de Gaia! Graças as vocês, todos os homens nos conhecerão melhor… e nos adorarão para sempre! Assim sendo, Atena lhes confere sabedoria para se guiarem pela luz da verdade e da justiça! Eu, Ártemis, lhes concedo o dom da caça. Deméter fará com que seus prados frutifiquem. Héstia há de erigir-lhes uma cidade e aquecer seus corações. A doce Afrodite, dar-lhes-á o dom do amor!” (PEREZ, 2017, p. 18)

As Amazonas, lideradas por Hipólita e Antíope, ambas possuidoras dos cinturões de Gaia, símbolos de poder oferecido pelas deusas, habitam Themyscira, lutam contra invasores e não se submetem aos homens, o que levanta a ira de soberanos gregos, que passam a enxergá-las como uma ameaça.

Instigado por Ares, Herácles declara guerra às Amazonas em cenas que retratam misoginia em seu discurso ao se referir à Hipólita como meretriz, no entanto, em um primeiro momento, ele reconhece que as Amazonas são boas aliadas e pede a seus homens que guardem as armas.

Assim, em uma noite de celebração entre homens e mulheres, Hipólita se dirige a Herácles para lhe comunicar seu contentamento com a situação, mas o semideus a droga, a espanca e a acorrenta em um calabouço após retirar-lhe o cinturão de Gaia, enquanto seus homens incendeiam Themyscira.

Desejando vingança, Hipólita suplica a Atena que a liberte, mas a deusa lhe adverte sobre seu verdadeiro propósito, o de promover o amor de Gaia e não se submeter aos homens ou ao seu ódio. Hipólita então se liberta e luta com suas irmãs contra os soldados de Herácles, mas por sua traição aos princípios estipulados pelas deusas para que elas retornassem à Terra, elas seriam então enviadas a uma nova localização “onde os homens não descobrirão facilmente. Ela parece o paraíso e realmente o será enquanto guardarem seu terrível segredo” (PEREZ, 2017, p. 32), e onde teriam que usar os símbolos de seu cativeiro, entre eles, braceletes que as lembrariam eternamente que não deveriam errar novamente.

Então, por muitos séculos, elas viveriam como imortais enquanto estivessem na ilha, a nova Themyscira, protegidas do mundo exterior, em uma sociedade justa, longe das quedas e guerras das civilizações. Porém, Hipólita, sentia grande descontentamento e angústia continuamente, o que lhe foi explicado por Menalipe, a Oráculo, se tratar da frustração por ter sido assassinada enquanto estava grávida em sua vida anterior.

Por isso, as deusas a concederam o direito à maternidade quando ela forjou um bebê de barro com suas mãos e pediu as bençãos do Olimpo. A menina, que recebeu dons divinos, se chamava Diana e ficaria conhecida posteriormente como a Mulher-Maravilha.

Essa versão de Perez estabelece então que os fatores determinantes para o surgimento das Amazonas e da Mulher-Maravilha estão relacionados à violência imposta pelos homens, que leva as mulheres a precisarem se proteger deles em um lugar fora de seu alcance, e ao amor das deusas pelas Amazonas, que lhes concedem dons e presentes para que possam viver de forma digna e harmoniosa, longe dos conflitos provocados pelo patriarcado.

Em outras versões, Diana é fruto de um relacionamento entre Zeus e Hipólita, um possível estupro, já que Zeus costuma se disfarçar para se relacionar com as mais diversas mulheres, provocando sempre a ira de sua esposa Hera. Entretanto, em todas as versões de Themyscira, a ilha existe como um refúgio seguro para as Amazonas, mesmo que eventualmente elas se relacionem sexualmente com marinheiros que naveguem em suas águas.

A violência contra a mulher como recurso narrativo utilizado para definir seu papel nas tramas não é uma exclusividade dos quadrinhos. Na verdade, se trata de uma representação recorrente em todos os tipos de produções, desde sempre, como se os autores não conseguissem conceber nossa existência se não a partir da violência que promovem:

A coadjuvância feminina não é novidade. Desde o início das divulgações massivas as personagens femininas aparecem como mocinhas a serem resgatadas por um herói, secretárias de importantes agentes de polícia, figuras que serviram aos assuntos relativos ao sexo, em grande parte dotadas de belos atributos físicos. A representação do corpo feminino, por exemplo “[…] tem sido, há várias gerações, um lócus erotizado de significações, uma instância de vigilância e controle sobre as sexualidades masculinas e femininas” (apud OLIVEIRA, 2007, p.150). As criações artísticas, literárias, foram durante muito tempo de hegemonia masculina. Esse domínio, se não determinou a constituição de estereótipos femininos, pode ser responsabilizado, em parte, pela menos presença das protagonistas femininas. (BOFF, 2014, p. 63)

Essa mesma violência, tão presente nas obras de autoria masculina, gerou a certeza para muitas autoras de que seria necessário reescrever a história das mulheres a partir de uma perspectiva onde não fôssemos definidas exclusivamente a partir da violência que nos é perpetrada e que nos possibilitasse sonhar novos futuros onde igualdade, justiça, amor, pudessem ser encontrados.

Além das justificativas para a criação de um espaço exclusivo de mulheres, há outras similaridades entre as obras aqui mencionadas: tanto na obra de Perez como na obra de Pizan, as amazonas são retratadas de maneira mais diversa do que nas versões mais difundidas do mito e seus feitos são enaltecidos, não questionados.

Essa percepção corrobora um recente estudo feito por Adrienne Mayor, pesquisadora de Stanford, onde a autora constata, por meio de descobertas de vasos e outros utensílios gregos, que as origens das Amazonas eram as mais variadas possíveis, contemplando mulheres da África, Ásia e Europa e contrariando a perspectiva de Boccaccio que excluí determinados grupos de mulheres do eixo das mulheres bravas e corajosas em sua obra.

Obviamente, com mais de 80 anos de existência, seria possível escrever um verdadeiro tratado sobre essa heroína tão icônica, e de fato, há várias teses e dissertações em áreas diversas que também exploram as relações entre feminismo e representatividade nas histórias em quadrinhos da Mulher-Maravilha.

Outros aspectos podem ser observados a partir de outros vieses acadêmicos em praticamente todas as áreas do conhecimento. E você? Já pensou tinha parado para pensar nas aproximações entre a Mulher-Maravilha e outras teorias acadêmicas?

Sobre a entrevista com Iuri Reblin

Apesar de milhares de estudos e publicações reforçarem que a figura da Mulher-Maravilha como um ícone feminista, é preciso ter claro em mente que isso não significa que ela seja uma, ao menos até que um roteirista faça tal afirmação, como foi o caso de sua bissexualidade atestada por Greg Rucka. De qualquer forma, essa escolha feita por feministas e endossada por mulheres no mundo todo, não deixa dúvidas que a identificação é muito maior que qualquer teoria que tente desmerecer seu título, portanto, é bem possível que seu posicionamento como uma personagem assumidamente feminista nos quadrinhos mainstream venha em breve, selando de uma vez por todas essa discussão e norteando suas futuras histórias.

Sobre o significado dessa escolha, Iuri Reblin me enviou um lindo tratado que tento resumir aqui:

 Escolher a Mulher Maravilha como um ícone significa assumir um símbolo de poder num exercício de empoderamento.

A Mulher-Maravilha é um símbolo de poder, de poder da mulher. Mesmo que haja uma ambiguidade e, inclusive, uma contrariedade nos enfoques em quase 80 anos de histórias (isto é, nem sempre as histórias da Mulher-Maravilha foram pró-libertação das mulheres, reproduzindo, não raras vezes, clichês patriarcais, sobretudo, pelo fato de essas histórias serem escritas por homens imersos em uma sociedade patriarcal) há certas convenções primárias em torno do mitema de suas histórias que perduram ao longo dos anos, de modo que, dentro dessa ambiguidade, seja possível identificar e reconhecer a Mulher-Maravilha como símbolo de poder da mulher.

2º Escolher a Mulher-Maravilha como um ícone significa construir uma representatividade pública e cultural.

Isso significa que, em termos quantitativos, as mulheres sempre foram coadjuvantes nas histórias ou dependentes de narrativas masculinas. Nessa direção, essa representatividade significa uma reivindicação de protagonismo, assumir as rédeas da história e ser sua protagonista, considerando igualmente o impacto que uma personagem como a Mulher-Maravilha possui na vida social cotidiana e no imaginário comum.

 Escolher a Mulher-Maravilha como um ícone significa assumir um norteador na construção de identidade de adolescentes (meninas e também meninos) e mulheres, como uma alternativa a Barbie e as Princesas da Disney.

À medida que o papel da Mulher-Maravilha como ícone nítido da luta de mulheres se torna mais claro publicamente, e os novos enredos de suas histórias assumem esse papel, há uma diversificação entre os modelos identitários existentes e até mesmo uma tensão entre eles.

 Escolher a Mulher-Maravilha como um ícone significa assumir valores específicos como Verdade, Justiça e Igualdade, que estão articulados e intrinsecamente vinculados aos anseios de uma transformação social, cultural e política.

A premissa do mito da Mulher-Maravilha remete a uma heroína estranha ao mundo (ela vem de fora) que enxerga a violência machista e se propõe a desconstrui-la, lutando por uma nova ordem social. Esse movimento está intimamente relacionado à luta por direitos de igualdade. Sua principal arma é a Verdade, representada por um laço. Isto é, a verdade é uma ferramenta indelével de sua luta pela igualdade.

5º Escolher a Mulher-Maravilha como um ícone não significa (ou não deve significar) ignorar que o movimento feminista é plural e que vai se permanecer crítico também em relação à Mulher Maravilha.

Na perspectiva de Heleieth Saffioti, em seu texto “Ontogênese e filogênese do gênero: ordem patriarcal de gênero e a violência”, a complexidade do feminismo abrange a desconstrução de estruturas racistas, classistas, de opressão, de exploração que vão identificar também as limitações da Mulher-Maravilha. 

Sem a diversidade e a pluralidade, há o silenciamento de experiências e identidades. Nessa direção, penso que a luta vai ser para que a Mulher-Maravilha não seja um ícone domesticado dentro da lógica hegemônica constituída.

O que quero dizer é:

Nem todas as mulheres se sentem (e não precisam se sentir) representadas pela Mulher-Maravilha.

O movimento feminista é plural e contestador e sua luta política vai além da tensão entre igualdade entre homens e mulheres, ou, melhor dizendo, a luta pela igualdade entre homens e mulheres vai além do binômio, envolvendo outras esferas e outros conflitos sociais.

Para saber mais:
https://germinablog.wordpress.com/2020/07/20/christine-de-pizan-e-mulher-maravilha/

Referências:
BOFF, Ediliane de Oliveira. De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadrinhos. 2014. Tese (Doutorado em Interfaces Sociais da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014

DEPLAGNE, Luciana Eleonora de F. C. A reescrita do mito das amazonas na obra A Cidade das Damas de Christine de Pizan. Anu. Lit., Florianópolis, v.18, n. esp. 1, p. 115-136, 2013.

__. A Cidade das Damas: A construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan. Tese de Doutorado – Estudo e Tradução, Universidade Federal de Pernambuco, 2006.

LEPORE, Jill. A História Secreta da Mulher-Maravilha. Bestseller, São Paulo, 2017.
PEREZ, George. Mulher-Maravilha:Lendas do Universo DC, vol. 1. Panini, Sâo Paulo, 2017.

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