Com 5 prioridades para a ação climática e a equidade social o mundo pós-pandemia pode ser socioambientalmente mais justo
A crise global instalada pela pandemia do coronavírus mostra como as desigualdades sociais são agravadas em situações em que grupos vulneráveis ficam mais expostos à contaminação: pessoas de baixa renda, minorias e grupos marginalizados que muitas vezes atuam em setores essenciais, incluindo empregos autônomos e informais.
Com milhões de infectados, mais da metade da força de trabalho global está em risco de perder seus meios de subsistência. Isso sem considerar aqueles já enfrentavam o problema da fome, intensificado pela perda de renda, o aumento dos preços dos alimentos e a interrupção das cadeias de abastecimento dos alimentos durante a pandemia.
A Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO)[1] já chamou a COVID-19 de “vírus da fome” ao concluir que uma entre nove pessoas no mundo sofre de desnutrição crônica (cerca de 265 milhões), 54 milhões sendo crianças[2], em especial, nos países em desenvolvimento, onde os meios de subsistência são precários.
Em um ano marcado pela pandemia global, 2020 também registrou uma onda global de protestos que destacou a necessidade urgente de abordar a ação climática e a justiça social. Isso inclui o movimento Black Lives Matter (vidas negras importam), contra o racismo, iniciado nos Estados Unidos após a morte de George Floyd em consequência de truculência policial
A insatisfação global sobre os rumos do planeta com o crescimento exponencial da contaminação pelo coronavírus gera uma oportunidade para que os países repensem estratégias de recuperação mais sustentáveis e resilientes. Para isso, incluir o combate à desigualdade social e ambiental precisa estar no cerne de suas políticas públicas.
A estratégia de recuperação pós-COVID – oxalá consigamos garantir imunização para todos o quanto antes – deve abordar a desigualdade, a crise econômica e as mudanças climáticas numa perspectiva integrada. Para isso, cinco iniciativas viáveis podem contribuir com esse objetivo:
1. Políticas de proteção social
Garantir renda básica e acesso aos cuidados de saúde para grupos excluídos, como moradores de rua, trabalhadores informais e migrantes pode ser particularmente importante para os cidadãos afetados pela falta de emprego resultante das restrições impostas pela pandemia. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT)[3], o mundo perdeu 255 milhões de postos de trabalho na pandemia. Isso inclui os pequenos agricultores, que sofrem diretamente os impactos do clima na sua produção.
2. Empregos verdes
A perda de trabalho durante a pandemia prejudicou o sustento de famílias em todo o mundo. O investimento em atividades verdes que podem incentivar a segurança alimentar, como energia limpa e restauração de ecossistemas, é fundamental para gerar novos postos de trabalho mais sustentáveis após a pandemia. Planos de recuperação e requalificação profissional também podem ser elaborados para apoiar estratégias de transição para trabalhadores e comunidades que dependem de setores que precisam encolher ou se adaptar para reduzir sua pegada de carbono, como é o caso da indústria do petróleo.
3. Equidade de gênero
Medidas de longo prazo são necessárias para apoiar as mulheres, que já representam quase 40% da força de trabalho em todo o mundo, segundo deste ano do Banco Mundial[4]. Só no setor de saúde e serviço social, por exemplo, 70% dos 136 milhões de profissionais são mulheres. Isso significa que manter a atual política desigual de salários é inviável.
4. Agricultura familiar
Práticas agroecológicas bem planejadas são essenciais para o clima e freiam o risco de insegurança alimentar. Dados do Censo Agropecuário 2017-2018[5], realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que 76,8% dos 5,073 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil foram caracterizados como pertencentes à agricultura familiar. Em muitos países, as importações restritas de suprimentos essenciais de alimentos e a falta de trabalhadores para colher as safras levaram à escassez de produtos alimentícios.
5. Transporte de baixo carbono
Se o transporte público não for melhorado, com tecnologias mais limpas e preço mais acessível, a mobilidade de populações vulneráveis vai ser ainda mais prejudicada. Mobilidade equitativa e sustentável, como ônibus elétricos, sistemas de ônibus rápido e mobilidade ativa – ciclismo e caminhada, devem ser impulsionados para avançarmos nos objetivos de saúde pública e climáticos. O transporte de passageiros é a fonte de emissão de gases de efeito estufa (GEE) que mais cresce no Brasil – entre 1990 e 2012, subiu de 84 para 204 mi/ton – sendo a principal fonte de emissões municipais e o segundo no Brasil depois da agropecuária, conforme dados divulgados pelo Observatório do Clima.[6]
Durante a pandemia, o modelo de trabalho home office deve se estabelecer, com impacto considerável no modelo vigente de locomoção. No entanto, vale ressaltar o gap digital como outro fator de desigualdade no Brasil. Isso foi visto de forma mais flagrante com a escolaridade inadequada para famílias de baixa renda, com dificuldade no acesso à banda larga e internet em todas as regiões do país.
Por uma sociedade com mais justiça social e climática
Conforme a recuperação toma forma, investimentos em ambiente e sociedade de longo prazo serão necessários em todos os níveis de governo. Neste sentido, a dicotomia homem-natureza deve ser diluída e mais recursos financeiros devem ser aportados para apoiar o mundo pós COVID-19.
Além das medidas mencionadas, políticas fiscais equitativas, precificação de carbono, tributação justa e revisão da dívida de países vulneráveis são igualmente importantes.
A redução das desigualdades também requer a participação ativa dos cidadãos para que uma nova agenda socioambientalmente justa possa acolher a voz das populações mais vulneráveis com adesão efetiva de suas demandas. Afinal, os dados cotidianos sobre a pandemia continuam a dar sinais de que ela está longe de ser extinta. E os países pobres já ficaram para trás na corrida pela vacina.
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Referências:
[1] The impact of COVID-19 on food security and nutrition. Disponível em: http://www.fao.org/policy-support/tools-and-publications/resources-details/es/c/1287907/https://www.wfp.org/stories/risk-hunger-pandemic-coronavirus-set-almost-double-acute-hunger-end-2020
[2] FORE, Henrietta H. et al. Child malnutrition and COVID-19: the time to act is now. The Lancet, v. 396, n. 10250, p. 517-518, 2020. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31648-2/fulltext?rss=yes#articleInformation
[3] ILO Monitor: COVID-19 and the world of work. Seventh edition. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/briefingnote/wcms_767028.pdf
[4] https://data.worldbank.org/indicator/SL.TLF.TOTL.FE.ZS
[5] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/21814-2017-censo-agropecuario.html
[6] OBSERVATÓRIO DO CLIMA (2008). Diretrizes para Formulação de Políticas Públicas em Mudanças Climáticas no Brasil. Disponível em: http://intranet.gvces.com.br/arquivos/mudancasclimaticasnobrasil.pdf.
[7] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Reducing Global Health Risks through mitigation of Short- Lived Climate Pollutants. Scoping Report for Policy-makers. Scovronick N, editor. Switzerland; 2015.
Jaqueline Nichi é graduada em Jornalismo e Sociologia, com mestrado em Sustentabilidade pela EACH-USP. Atualmente, é doutoranda no Programa Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (NEPAM-UNICAMP). Sua área de pesquisa é centrada nas dimensões sociais e políticas das mudanças climáticas nas cidades e governança local.
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