Pesquisadores da Unesp desenvolvem escalas que são referências mundiais na avaliação de dor em animais

Por Caroline Marques Maia

A escala da Unesp é o único instrumento validado para avaliar dor em bovinos no mundo

Apatia, isolamento, dificuldade para andar, ansiedade, redução da movimentação ou mesmo desinteresse são exemplos de alterações comportamentais que cachorros, gatos e bovinos podem apresentar quando sentem dor. Mesmo assim, nem sempre é fácil perceber se um animal está ou não com dor. Desafio ainda mais complexo é quantificar a experiência dolorosa, algo fundamental para providenciar o tratamento mais adequado para aliviar o sofrimento do animal. Além da questão do bem-estar animal, solucionar essas questões, no caso do agronegócio, está diretamente relacionado com aspectos econômicos pela consequente perda de produtividade dos animais com dor. Desenvolver escalas que permitem avaliar a dor em animais é o objetivo de um grande projeto apoiado pela FAPESP que é conduzido por um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp (FMVZ), localizada no campus de Botucatu.

Diferentemente dos seres humanos, nos quais a escala da dor é definida por meio do auto relato, a avaliação da dor nos animais depende de um observador. Por exemplo, se na fase pós-operatória, um gato fica inquieto ou mudando frequentemente de posição, isso pode ser um sinal de dor. É a partir do registro sistemático de comportamentos como esses em animais que passaram por algum tipo de intervenção cirúrgica que as escalas de dor são desenvolvidas. A observação e o registro incluem diversos itens, tais como atividade, locomoção, apetite, postura, interação com o ambiente e com o pesquisador. Além disso, esse conjunto de itens pode variar de acordo com a espécie do animal e com o tipo de intervenção cirúrgica a que ele foi submetido. De acordo com o médico veterinário Stelio Luna, que coordena o projeto, as escalas requerem validação do conteúdo, consistência interna e critério claro de validade para que sejam confiáveis.

Evitar movimento e dissociar-se do ambiente também são sinais comportamentais de dor em gatos. Crédito: Pixabay.

A primeira escala desenvolvida pelo grupo de pesquisadores teve como objetivo a detecção de dor pós-operatória em gatos. “Embora cães e gatos sejam populares como animais domésticos, a avaliação e o tratamento da dor em gatos ainda eram negligenciados em comparação aos cães. Isso se fundamentava principalmente pela falta de familiaridade dos profissionais em relação à espécie”, aponta Luna. Na escala multidimensional da Unesp-Botucatu para avaliação de dor pós-operatória em gatos que o grupo desenvolveu, os níveis de dor podem variar entre 0 (sem dor), 1 (leve), 2 (moderada) e 3 (dor intensa). Baseada em critérios objetivos de observação e avaliação, essa escala limita a subjetividade e aumenta a precisão no reconhecimento e na mensuração da dor em gatos. Por conta desse resultado, o método se tornou referência mundial em medicina veterinária. Para compartilhar dados e resultados dessa escala – o que inclui uma série de vídeos com exemplos do comportamento dos felinos – bem como outras informações sobre dor em animais, os pesquisadores da Unesp criaram o portal “Animal Pain” (http://animalpain.com.br). O projeto do site deve ser ampliado para incorporar os resultados das pesquisas desenvolvidas pelo grupo para determinar escalas de dor para outros animais, como por exemplo, os bovinos.

Agronegócio – Na pecuária, atividade que envolve a criação de animais para produção de carne, leite e outros produtos, detectar e tratar a dor é ainda mais relevante, porque ela interfere não apenas na qualidade de vida desses animais, mas também na produtividade. Uma vaca com dor ingere menos alimento e água e, consequentemente, produz menos leite. Para esse grupo de animais, também foi criada uma escala para avaliar a dor pós-operatória, a “Unesp-Botucatu bovine pain scale”. A Food and Drug Administration (FDA), agência federal norte-americana responsável pela liberação de alimentos, bebidas, cosméticos e medicamentos, recomenda essa escala de referência para testes de fármacos analgésicos nos Estados Unidos. Nesses testes, os pesquisadores avaliam a dor em animais que receberam e naqueles que não receberam esses analgésicos para determinar sua eficácia em reduzir a dor. A escala de dor em bovinos desenvolvida na Unesp é considerada como o único instrumento validado para avaliar a dor nesses animais no mundo. De acordo com a pesquisadora Flávia Oliveira, que desenvolveu essa escala em seu doutorado sob orientação de Luna, a dor em bovinos vinha sendo negligenciada entre outros motivos porque persiste uma crença de que bois e vacas são resistentes à dor. “Nosso estudo demonstrou que isso não é verdade, possibilitando reconhecer e mensurar a dor nestes animais a partir de variações em seu comportamento”, explicou. “Com isso, a escala será uma ferramenta essencial para identificar e quantificar a dor e, então, determinar uma analgesia adequada”, complementa a pesquisadora.

Bovinos com dor acabam ingerindo menos água e comida do que o habitual. Crédito: Rubia Mitalli Tomacheuski

Assim como no caso dos gatos, essa escala funciona basicamente através de observação desses animais. “É preciso conhecer o comportamento normal da espécie bovina e, a partir daí, identificar as alterações e correlacioná-las com os comportamentos descritos da escala.”, comenta Oliveira. De acordo com Luna, um dos desafios em desenvolver essa escala para bovinos estava no fato desses animais serem menos expressivos. “Essas espécies não expressam a dor de forma tão clara quanto os cães e gatos, que apresentam uma proximidade maior com os seres humanos”, comenta o pesquisador. O trabalho de campo foi feito tendo como base a raça Nelore, que é predominante no rebanho brasileiro. “Isso representou um grande desafio porque uma das características dessa raça é justamente serem animais muito agitados e temperamentais o que poderia comprometer os resultados das observações”, contou Oliveira. Essa fase da pesquisa foi validada por meio de análises estatísticas. O próximo passo é obter a validação clínica para qualquer procedimento cirúrgico, que vai permitir utilizar a escala de dor em bovinos em diversas situações de rotina clínica, tais como castração, cesariana e descorna – retirada dos chifres.

Outras frentes de trabalho também estão no horizonte do grupo de pesquisa, como por exemplo, criar uma escala de dor para bovinos que seja específica para o pós-processo de descorna. É uma prática comum dos criadores de bovinos retirar os chifres dos animais adultos ou destruir os botões córneos dos recém-nascidos. Isso diminui o risco de acidentes com outros animais, que podem causar infecções ou danificar a pele dos bovinos, e reduz a chance de acidentes também com humanos durante o manejo. “Trata-se de uma área onde há muito para ser explorado”, finaliza a pesquisadora.

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