O nome científico da cocaína

A lanchonete era espaço apertado. Limitava-se a um pequeno balcão com uma vitrine de salgados, uma máquina de café e uma geladeira na parte de trás. Pelas paredes ficavam expostos trabalhos dos alunos nas mais variadas técnicas: lápis, nanquim, aquarela, pastel, óleo, aerografia… O intervalo das aulas na escola de artes era um momento peculiar. Em uma época em que ainda era possível se aglomerar sem medo de contágio por uma doença viral mortal, o andar do café abrigava um ecossistema complexo e biodiverso.

Se as aulas dividiam os alunos pelos seus diferentes interesses nas artes, o intervalo juntava toda essa fauna dentro de uma mesma jaula. Havia dois grupos predominantes: os mais jovens, que ainda criam no sistema de ensino como caminho para a garantir seus futuros, e pessoas mais velhas, com a vida já ganha, sem que a dedicação aos estudos tenha necessariamente influenciado nisso. Quem não tivesse um olhar aguçado enfrentava dificuldades para distinguir presas e predadores naquele ambiente. 

A escola ficava em um bairro nobre da cidade de São Paulo. Bairro esse que coincidentemente (ou não) leva o mesmo nome de um bairro de Nova Iorque que já foi pobre mas, com a chegada dos artistas, o custo de vida subiu. Gentrificação que fala? No nosso Brooklin (com “i”) o processo de expulsão dos pobres da região é um pouco diferente: usa-se o fogo. E em cidade grande não tem a figura folclórica do boi bombeiro para apagar os incêndios nas favelas, que curiosamente não ocorrem com a mesma frequência nas comunidades localizadas nas periferias. Em alguns casos, fora do meio urbano, o fogo é até importante para a conservação e equilíbrio da natureza podendo ser usado no manejo, como ocorre nas vegetações de Cerrado. Mas é exceção. Quando se brinca com fogo, muitas vezes não se sabe se está acendendo uma vela ou uma banana de dinamite.

Os colegas de aula costumavam ficar juntos conversando sobre os mais variados temas. Rolava umas paquerinhas, umas trocas de olhares com quem fosse de outra turma. Para as pessoas mais tímidas, contemplar os trabalhos em exposição era a salvação para evitar aquele constrangimento de não saber o que fazer ou o que falar no momento de confraternização. Naquele tempo, lá pela segunda metade da última década do século passado, não tinha como fugir do mundo mergulhando no espertofone. Muitas vezes as obras dos alunos até se tornavam o assunto. Volta e meia rolava até um bate-papo entre pessoas de turmas diferentes.

Uma vez pedi à uma mulher que fazia aula em outra turma, esposa de um roqueiro famoso, que me trouxesse um autógrafo no encarte do álbum que eu tinha da banda dele (não vou dizer quem é o artista, mas ele fez um álbum memorável em dueto com um dos maiores nomes de nossa música e recentemente deu declarações vergonhosas contra o isolamento social para combate da pandemia da Covid-19). Ela achou que o CD que eu trouxe era pirata. Jurei que tinha comprado no shopping center. Ela acusou a má qualidade do encarte e reclamou do trabalho da gravadora. Mas esta é apenas uma tangente, como tantas que pegamos na vida.

Em outra ocasião, dois amigos papeavam sobre algum assunto qualquer. Eram adolescentes. O mais velho usava corte cabelo moicano, barba por fazer, tatuagem de caveira e suas roupas jeans rasgadas e rabiscadas com caneta esferográfica. O outro tinha o cabelo comprido ensebado e as roupas todas pretas, a camiseta estampando a imagem de algum metaleiro com a face entorpecida ou de algum demônio de capa de disco. Eles também tinhas suas pulseiras, anéis brincos e correntes que eram bem diferentes das pulseiras, anéis, brincos e correntes das duas senhoras bem nascidas que se aproximaram e interromperam a conversa subitamente:

– Vocês saberiam nos informar o nome científico da cocaína?

Os dois jovens voltaram-se um ao outro e pelo olhar estabeleceram uma conexão quase telepática. Eles conseguiam saber exatamente o que o outro estava pensando. O primeiro sentimento que compartilharam foi de indignação. E a indagação “Por que elas estão perguntando isso para nós?”, que não foi dita em voz alta, era uma pergunta retórica.

As senhoras deviam ter no mínimo uns 50 anos. Provavelmente mais. Difícil saber, porque naquela época meu conceito de velhice era outro. Os meninos eram moleques. Crianças. Um deles ainda não tinha experimentado nem tabaco.

A segunda reação que trocaram pelo olhar foi de deboche. Os dois imaginaram que as senhoras tinham fumado demais (e por isso o esquecimento). Deduziram que elas tinham confundido cocaína e maconha. Sabe quando se pensa em uma coisa e se diz outra sem perceber? Foi o que elas fizeram. Visualizaram mentalmente a que se fuma e verbalizaram a que se cheira. A maconha tinha o nome científico bem disseminado, talvez pelo sucesso da banda Planet Hemp na época. Demonstrar sabê-lo fazia algumas pessoas se sentirem eruditas e descoladas ao mesmo tempo. Mas teria sido muito mais rock and roll se elas tivessem pintado o cabelo com genciana.

A cocaína não tem nome científico, mas uma fórmula química: C17H21NO4. Trata-se de uma substância com propriedades anestésicas e estimulantes que pode ser extraída de espécies vegetais de um mesmo gênero botânico da família Erythroxylaceae. A mais conhecida dessas plantas provavelmente seja a que ocorre na América do Sul, na região dos Andes, popularmente conhecida como coca. Esta sim tem um nome científico: Erythroxylum coca.

As fórmulas químicas são representações dos compostos químicos com seus tipos e números de átomos. Já o nome científico é um padrão universal de classificação os seres vivos. Cada espécie tem o seu, que é o mesmo em qualquer lugar do mundo, independentemente do idioma falado. 

Se as senhoras tivessem perguntado aos jovens a fórmula da cocaína eles poderiam pensar que elas estavam interessadas em entrar para o ramo da fabricação desse tipo de entorpecente. Neste caso teria sido importante lembrá-las que o uso da coca pelos povos andinos é milenar e faz parte daquela cultura. Nada tem a ver com o consumo de drogas. A folha que eles mascam ou o chá que tomam é como o cafézinho que a gente toma por aqui. E que para a preparação do pó branco que muitas pessoas colocam no nariz pra ficarem doidonas é necessária uma série de procedimentos químicos e adição de produtos como ácido sulfúrico, gasolina e acetona. Imagine que loucura se resolvessem criminalizar o café no Brasil… ou adicionar esses ingredientes nele pra fazer dele outra coisa.

Mas elas estavam interessadas na maconha mesmo. A famosa Cannabis sativa, cientificamente falando. Hoje já se discute em televisão aberta o uso medicinal da planta. Naquela década o senso comum dizia que a maconha abriria as portas para drogas mais pesadas e que o jovem de classe média (afinal, ninguém parecia estar ligando pra quem estivesse abaixo disso) roubaria a própria família para manter o vício e se tornaria um zumbi. Como se a situação da cracolândia, no centro da cidade São Paulo, tivesse mais a ver com drogas do que com vulnerabilidade social. Ou ganância. Afinal, quem é que vai deixar o estado dar assistência àquelas pessoas, como por exemplo moradia na própria região, já que os tubarões da especulação imobiliária precisam se alimentar? Daqui a pouco o Bom Retiro passa a pertencer ao mesmo tipo de bioma que o Brooklin. Pois é… esse tipo de ecologia é uma merda.

A troca de olhares entre os dois não durou mais do que um segundo. E na época eles não sabiam explicar para as senhoras tudo isso que acabei de contar rapidamente aqui. Mas com o que tinham na ocasião, se esquivaram:

– Desculpe. Não tive isso nas aulas de química – respondeu o mais velho – e eu ainda não vi isso nas aulas de biologia – complementou o mais novo – Mas acho que não vai cair na prova.

Se caísse, talvez as coisas fossem um pouco diferentes nos dias de hoje.

 

 

Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.

2 Comentários

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