Extensão ou Comunicação? – O livro de Paulo Freire que mostra seu trabalho com agricultores

O livro “Extensão ou comunicação?”, do educador pernambucano Paulo Freire, é uma obra essencial para quem tem interesse, estuda ou atua nas áreas de divulgação científica e meio ambiente.

Quem me indicou a obra foi o professor Fernando Silveira Franco, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – Campus Sorocaba. Doutor em Ciências Florestais, o conheci anos atrás em um evento na região paulista do Vale do Ribeira. Ele havia ministrado uma palestra sobre o trabalho que estava realizando junto a agricultores na implementação de Sistemas Agroflorestais (SAFs), um modelo de agricultura que, diferentemente da convencional, aproveita a dinâmica da floresta, respeitando a sucessão natural e fornecendo serviços ecossistêmicos. Após a apresentação, puxei Fernandinho, como era conhecido, pra bater um papo. Ele explicou que apesar do nome agrofloresta ter vindo da academia, a prática é um saber tradicional.  Contou que levava seus alunos de graduação para realizar um trabalho de sensibilização junto a agricultores em relação aos SAFs. Esses agricultores, frequentemente, comentavam que já conheciam esse modo de trabalhar. Diziam ter aprendido com seus pais ou avôs. O professor concluiu então que o trabalho da academia consistia em ajudá-los a relembrar daquilo que eles já sabiam.

Em 2021, ano que passou, Paulo Freire completaria 100 anos. Estamos vivendo em uma época muito doida. Em alguns círculos sociais (que não são poucos e nem insignificantes) o autor é execrado, mesmo sendo o pedagogo mais conhecido de nosso país e um dos mais conhecidos do mundo. Por aqueles que o odeiam, ele é frequentemente xingado de petista, coisa que realmente era. Os malucos também o responsabilizam pela má qualidade da educação no país, sendo que ele foi perseguido pela regime militar justamente por causa de seu método de alfabetização e sua produção intelectual que visavam melhorar a situação do ensino no Brasil. O fato é que a maioria das pessoas que criticam Freire jamais leram um capítulo de sua obra. E não estou defendendo que não se possa criticá-lo. Mas que é preciso fazê-lo com um mínimo de embasamento, porque não se pode negar a relevância de sua produção. Então vamos ao livro.

A primeira edição foi publicada em 1969. Quando ocorreu o Golpe Militar no Brasil, em 1964, Paulo Freire foi preso acusado de subversão por causa de sua atuação na educação. Em regimes de governo de ignorantes e facínoras, é sempre crime grave estimular as pessoas a pensar. Naquele mesmo ano, o  educador pediu asilo político e ficou exilado na Bolívia, em seguida indo para o Chile, onde permaneceria até o ano em que foi publicado o livro do qual tratamos. Ele esteve também nos Estados Unidos e na Suíça, retornando ao Brasil apenas em visita no ano de 1979 e voltando a morar por aqui em 1980. “Extensão ou Comunicação?” é o resultado de sua experiência junto a agricultores no Chile.

No livro, Freire critica a prática da extensão rural (processo de transmissão de tecnologia para o campo) a partir de uma análise dos sentidos do termo extensão, mostrando como esse conceito não corresponde a uma educação libertadora, mas a um processo de persuasão, de propaganda domesticadora. O autor critica seu caráter unidirecional e messiânico, no qual há de um lado um sujeito ativo e de outro um passivo e se estabelece uma relação de superioridade e inferioridade entre quem entrega e quem recebe o conteúdo. Freire também trabalha o conceito de invasão cultural e propõe que o conteúdo levado pela extensão reflete a visão de mundo daquelas que o levam e se sobrepõe à visão de mundo daqueles que passivamente o recebem. Deste modo, a extensão pretende substituir uma forma de conhecimento por outra. Trata-se ainda de um  processo mecânico que transforma o camponês em “coisa” e o nega como ser da transformação no mundo, assim como nega a formação do verdadeiro conhecimento, a ação e a reflexão dos camponeses. Para Freire a extensão é um erro, pois não se transfere e deposita algo estático nos outros e o conhecimento é a tarefa não de objetos, mas de sujeitos. A extensão nega esses sujeitos como seres de transformação no mundo.

O autor sugere que se utilize o termo comunicação, ao invés de extensão. Para ele, são conceitos antagônicos, sendo a extensão agrícola uma prática de dominação, na qual o técnico se vê como superior e acredita que o camponês deva aceitar o moderno. Freire propõe a compreensão de que a técnica não é neutra, mas está condicionada social e historicamente. E para uma prática verdadeiramente educadora e libertadora, é necessário possibilitar ao camponês tomar consciência de sua realidade, apropriando-se do conhecimento para reinventá-lo e aplicar em situações concretas. Esta apropriação crítica que os impulsiona a assumir o papel de sujeitos de transformação os humaniza. Por isso, Freie propõe que o trabalho do agrônomo não pode ser de adestramento, que pode até lhe dar alguma rentabilidade, mas não contribuirá com a afirmação deles como homens.

Educação não é estender o saber para salvar os que habitam na ignorância, “educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem – por isso sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais – em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que pouco sabem, possam igualmente saber mais.”

Para quem ainda não leu nada do autor, é um bom texto para começar. E depois que se inicia em Paulo Freire, fica fácil perceber como a obra dele reverbera em outras, fazendo com que ele seja bastante citado. Muitos textos não o citam. Talvez seus autores tenham sido inconscientemente influenciados por ele. Ou talvez façam referência a outros autores, mais antigos, que o tenham influenciado. E sua obra resiste.


Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.

2 Comentários

  1. Excelente lembrança. Mas 58 milhões de brasileiros(as) em 2022 votaram no obscurantismo e quase estamos imersos ainda na incompreensão do significado desta e das demais obras de Paulo Freire.

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