Presas camufladas são eficientes em não virar refeição, especialmente quando se disfarçam de objetos do ambiente

Camuflagem aumenta 63% o tempo de procura dos predadores e reduz 28% a taxa de ataque, aponta meta-análise

Por Vinícius Nunes Alves 

A camuflagem é uma das adaptações antipredatórias que continuamente evoluem e tende a reduzir a chance das presas virarem refeição dos predadores no ambiente natural. Um bicho-pau no meio de gravetos desfolhados ou uma taturana verde no meio do limbo de uma folha madura são exemplos comuns de camuflagem. A ecologia já distingue pelo menos 16 estratégias de camuflagem, algumas trazem mais resultados benéficos que outras, dependendo da presa, do predador e do meio.     

Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em parceria com pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do ABC e da Universidade de Exeter (Inglaterra), desenvolveram a primeira meta-análise em escala global que compara a eficiência de algumas estratégias de camuflagem entre diferentes tipos de presa e predador. O estudo intitulado Predator Responses to Prey Camouflage Strategies: A Meta-Analysis (em tradução livre: Respostas de predadores a estratégias de camuflagem de presas: Uma meta-análise) foi publicado em meados de setembro no periódico internacional de impacto Proceedings of the Royal Society B. Os pesquisadores evidenciaram como a natureza é diversificada quando se pensa em camuflagem e a eficiência de cada estratégia varia com o tipo de presa e com o estágio de vida da presa. Ao mesmo tempo, a análise destaca alguns padrões naturais, como o maior tempo de busca da presa camuflada por diferentes predadores, assim como o mascaramento (imitação de um objeto do ambiente) sendo mais eficiente para presas do que a coloração disruptiva ou críptica (mistura com o fundo).

Para estimar estatisticamente o efeito de diferentes estratégias de camuflagem sobre a proteção da presa, os autores acessaram mais de 80 artigos científicos disponíveis em bases de dados internacionais dentro do período de 1900 até julho de 2022. Para entender os critérios de inclusão de artigos e a extração dos dados, consultar o estudo aqui. Nesta entrevista para o blog Natureza Crítica, o biólogo João Vitor de Alcantara Viana – atual doutorando em Ecologia pela Unicamp (PPG Ecologia) e primeiro autor do estudo – explica algumas discrepâncias ou redundâncias encontradas entre as estratégias de camuflagem analisadas, bem como questões importantes para serem investigadas em pesquisas futuras.

João Vitor, primeiro autor do estudo, em uma coleta de campo no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães. Viagem de campo pelo Laboratório de Interações Multi-tróficas e Biodiversidade da Unicamp, coordenado pelo Prof. Dr. Gustavo Quevedo Romero

Dentro do que há disponível na literatura científica das últimas décadas, esta meta-análise testa a eficiência de diversas estratégias de camuflagem de forma comparativa. Quais são as principais lacunas que observou no conhecimento científico existente?

Percebemos que estudos comparativos sobre efeitos de estratégias antipredatórias usadas por diferentes presas contra diferentes predadores é algo ainda pouco explorado pela Ciência. Dessas comparações podemos extrair tendências gerais das estratégias, que são efetivas de acordo com certas circunstâncias e processos evolutivos dos organismos. Muito trabalho de campo e de laboratório é feito ao redor do mundo, mas raramente essas informações são comparadas. Por exemplo, evidenciamos que estratégias que prejudicam o reconhecimento da presa ao invés da detecção, podem ser mais eficientes no aumento de tempo de busca do predador. Assim, estudos comparativos gerais podem nos ajudar no entendimento de padrões cognitivos e sensoriais entre presas e predadores que ainda podem ser elucidados. Acredito que isso é o mais interessante do nosso estudo.

Ao compararem diferentes estratégias de camuflagem, vocês ponderam que o disfarce como objeto específico do ambiente – conhecido como mascaramento – é a maneira mais eficiente da presa não ser procurada e atacada por predador. Basicamente, qual é a explicação ecológica ou evolutiva mais plausível para essa estratégia normalmente ser mais eficiente do que outras?

Nosso estudo evidenciou que o mascaramento é a estratégia que mais aumentou o tempo de busca dos predadores. Discutimos que isso se deve, provavelmente, por essa estratégia ser um tipo de camuflagem altamente especializada que, diferentemente de outras estratégias crípticas na qual a presa não é detectada, o organismo mascarado é detectado, mas não reconhecido pelo predador. É como se o predador soubesse que no ambiente tem uma pedra, um galho ou um coco de passarinho, mas não identifica aquilo como a presa que ele busca. Apesar de altamente especializada e eficiente, a evolução de organismos mascarados não é algo trivial, o ambiente deve possuir tipos específicos de iluminação e também elementos com tamanho e formato semelhantes ao qual o organismo mascarado imita. Além disso, esses organismos muitas vezes se adaptam comportamentalmente de modo a se assemelhar com os ‘modelos’ do ambiente, seja se movendo lentamente como um galho ao vento ou balançando como um capim. Por isso, tendem a ser organismos pouco móveis, o que implica na baixa ocorrência desses tipos de estratégia na natureza. A seguir, resumo e ilustro importantes resultados obtidos no artigo.

Gráfico com média e intervalo de confiança (95%) do valor protetivo conferido por diferentes estratégias de camuflagem, de acordo com o tempo de procura dos predadores e/ou a taxa de ataque das presas camufladas
Vamos descomplicar um pouco os termos do eixo horizontal (“eixo X”) do gráfico acima?

Mascaramento: Tipo de estratégia de camuflagem na qual o organismo se assemelha a um objeto inanimado. Exemplo: galho, pedra ou coco de passarinho.

Coloração de correspondência de fundo: Tipo clássico de camuflagem em que o organismo se assemelha em coloração e padrão com uma amostra de fundo onde ele está repousado. Exemplo: lagarta verde sobre folha verde.

Coloração disruptiva: Tipo de camuflagem em que o organismo possui colorações altamente contrastantes que quebram a informação de silhueta do corpo. Exemplo: listras contrastantes das víboras ou bordas escuras alternadas com bordas claras em asas de mariposas.

Camuflagem em movimento: Tipo de coloração que dificulta a detecção do organismo quando em movimento. Exemplo: listras das zebras ou listras de navios de guerra da segunda guerra mundial.

Ocelos ou manchas ocelares: Tipo de coloração evidente que geralmente se assemelha a um olho. Ainda é discutida sua real função. Estudos recentes mostram que tanto podem intimidar predadores quanto afastarem o ataque do predador para regiões não letais das presas.

Controle experimental: Modelo de presa não camuflada utilizada nos experimentos que serve de comparativo com os modelos camuflados. 

Na natureza, uma estratégia antipredatória que funciona bem para uma presa ou ambiente, pode não funcionar bem com outra presa ou ambiente. Como estudioso no tema, pode dar exemplos de como a eficiência da camuflagem depende do seu contexto?

Vários fatores podem influenciar no tipo de camuflagem adotada e na eficiência fornecida por ela ao organismo. Um dos mais clássicos exemplos de como a detecção de uma presa que usa camuflagem pode ser relativa é o da mariposa Biston betularia durante a Revolução Industrial do século 19 na Inglaterra. Previamente, o morfotipo claro (f. typica) dessa espécie era o mais favorecido, já que as árvores nas quais elas se camuflavam eram cobertas de líquens. Com a fuligem demasiada das fábricas, os troncos se escureceram e as mariposas mais claras ficaram muito contrastantes nesses substratos, e passaram a ser facilmente detectadas por seus predadores. Tal processo favoreceu o aumento em população do morfotipo escuro (f. carbonaira), que se contrastava menos naqueles troncos. As frequências entre os morfotipos só voltaram aos patamares iniciais após a regulamentação da poluição das fábricas muitos anos depois. Esse é apenas um exemplo do quão complexo e variável podem ser os ambientes em que as estratégias de camuflagem evoluem. Por isso, a evolução favorece a diversificação de estratégias, desde as mais especializadas, como a correspondência de pano de fundo visto na B. betularia, até as mais generalistas, como o padrão de coloração disruptiva que as listras do tigre formam com seu ambiente. No último exemplo, lembramos que camuflagem também é usada por predadores e, nesse caso, o padrão de cores do felino atua como uma quebra de contorno do seu corpo em relação ao seu ambiente de fundo, dificultando a detecção dele pelas presas.   

Camarões camuflados em erva-marinha. Fotografia: Rafael Duarte

Uma pesquisa da Nature de 2016 revelou que no campo da biologia, mais de 70% dos pesquisadores não conseguem reproduzir as descobertas de outros cientistas e aproximadamente 60% dos pesquisadores não conseguem reproduzir suas próprias descobertas. Isso se estende para a dificuldade dos pesquisadores compararem, generalizarem e discutirem biologicamente os resultados entre estudos diferentes. Em sua meta-análise é mencionada a necessidade das pesquisas padronizarem melhor os métodos e as métricas para testar e quantificar a eficiência da camuflagem na proteção das presas. Pode comentar algumas maneiras de padronizar os estudos de camuflagem? 

A padronização de métricas de camuflagem é importante, pois muitos estudos que testam experimentalmente algum tipo de camuflagem não usam metodologias adequadas em que é possível testar se o organismo em questão está realmente camuflado ou não. Um maior cuidado com isso é necessário, considerando que a camuflagem é dependente não somente do organismo que a usa, sua coloração e formato etc., mas também do observador, das suas características sensoriais e cognitivas. Por exemplo, se um estudo busca estudar a camuflagem em um organismo que reflete comprimentos de onda na faixa do ultravioleta (UV) e seu predador também tem capacidade sensorial para detectar esse espectro da luz, o pesquisador precisa planejar um experimento que reproduza a refletância UV nos seus modelos. Senão, o estudo não estará representando a realidade. Por isso, acreditamos que é importante o uso de modelos sensoriais já bem estabelecidos na literatura ao desenvolver experimentos com camuflagem, partindo de informações já conhecidas sobre reflectância de organismos e substratos.

A partir desta meta-análise em escala global que você e coautores conduziram, houve a descoberta notável de que a maioria dos estudos com camuflagem foi realizado no Hemisfério Norte. Então vocês discutem que essa negligência de pesquisas sobre camuflagem está nos trópicos que são justamente a região do globo que tem presas e predadores interagindo mais intensamente. Comente basicamente sobre as perdas e as perspectivas desse cenário para a ciência da camuflagem.

Considero como um reflexo triste e preocupante da nossa falta de capacidade competitiva frente aos países desenvolvidos. Cientificamente falando, o conhecimento de mecanismos funcionais e ecológicos dos trópicos têm sido historicamente negligenciados. No entanto, recentemente temos feito boa ciência e de forma independente. Assim, tendo a acreditar que é questão de tempo para que essas lacunas sejam preenchidas, especialmente se pensarmos que muitos padrões e estratégias novas podem ser descritas aqui. Por isso acho importante o que o nosso estudo mostra em relação a essa ausência de estudos.  Verificamos que há uma grande lacuna na área mais biodiversa do planeta, em que algumas presas não interagem apenas com um ou dois tipos de predadores como nas regiões temperadas, mas com muito mais predadores. Assim, múltiplos predadores com diferentes capacidades sensoriais podem gerar múltiplas pressões seletivas nas estratégias de camuflagem que são pouco conhecidas ainda. Temos muito a aprender sobre nossa própria região. Certamente aqui padrões e processos muito diferentes poderão ser desvendados.

Camuflagem do inseto esperança em uma bromélia. Fotografia: Vinícius Nunes Alves

Vinícius Nunes Alves é biólogo pela Unesp-IBB, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU-Inbio e especialista em Jornalismo Científico pela Unicamp-Labjor. É Professor de Ciências da Prefeitura de Botucatu, Professor Substituto da subárea Filosofia da Ciência na Unesp-IBB e, também, atua como colunista no jornal Notícias Botucatu.

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