O que o ensino não-presencial e o Brainly tem nos acrescentado no debate sobre a nossa estrutura educacional.
Caso você esteja atuando como professor desde abril de 2020, tentando se adaptar, de forma rápida e sem preparo, a um ensino remoto improvisado e pouco estruturado, com certeza você conhece o novo arqui-inimigo dos professores, que tem deixado toda a organização escolar de cabelo em pé: o site Brainly.
Brainly?
Não está familiarizado com esta plataforma? Pois bem, ela funciona da seguinte maneira: aos moldes do finado Yahoo respostas, o estudante coloca a sua questão no site do Brainly, esperando que alguém da comunidade responda. Sabemos que muitas questões utilizadas pelos professores são recicladas de banco de dados, vestibulares e sites de exercícios, os estudantes encontram com facilidade as respostas. Dessa forma, muitas vezes, o estudante copia a questão, cola-a na barra de pesquisa do Google e encontra a resposta em menos de 1 minuto.
Essa nova relação escolar forçada pela pandemia da COVID-19 expõe diversos fatores que nos levam a repensar a própria estrutura da escola. Por exemplo, podemos refletir sobre a estrutura escolar e a forma como organizamos e trabalhamos nas escolas atualmente. Trago aqui algumas reflexões específicas, que poderiam ser exploradas e expandidas.
Sobre a escola e sua estrutura
Iniciemos com a reflexão sobre a importância da estrutura escolar, a partir do que Michael Foucault coloca em sua obra “Vigiar e Punir”. Nela, o autor descreve a estrutura escolar como uma forma de poder disciplinar e que transforma os corpos em dóceis. Assim, a estrutura de avaliação tradicional, com prova escrita, sem consulta, sentado em seu lugar imóvel, com pessoas separadas geometricamente de você, é um instrumento que reforça a escola como local de poder disciplinar.
Ao tirar o estudante deste local quase inóspito e colocarmos ele com o acesso à internet e comunicação, essa estrutura tradicional perde o seu sentido. Ou seja, não está mais se ensinando ao estudante sentar, olhar recurvado para baixo, apenas uma caneta em mãos, respeitar e obedecer a autoridade das estruturas de poder colocadas na escola. Assim, organização do tempo e do espaço disciplinar, tanto quanto a imposição dos ritmos comumente exercidos no ambiente da escola se ressignificam no ensino remoto.
Cabe a nós, docentes, essa reflexão. Eu realmente espero que a minha aula, o espaço que posso construir, debater e transformar os meus estudantes, seja apenas um momento de repetição de um tradicionalismo avaliativo? Essa pergunta já permeia o debate acerca dos processos de ensino-aprendizagem e avaliação há muitos anos. Contudo, neste momento específico ganha força e precisa ser retomado.
O debate não se restringe a um tempo escolarizado subutilizado
Além disso, aqui entramos em outra problemática exposta e piorada durante o período de ensino remoto: a desvalorização do trabalho docente como um trabalho reflexivo, que demanda tempo. Tempo para refletir, experienciar, conhecer, desenvolver técnicas e instrumentos, escolher e adaptar formas avaliativas. Os professores, que assumem um número de aulas exagerado para conseguir compor um mínimo de um salário decente, precisaram assumir outras funções durante esse período.
Dessa forma, além de aprender a usar novas ferramentas para as aulas, os professores também começaram a ultrapassar os horários para conseguir garantir um mínimo de presença e interação com seus estudantes. O que já era de extrema dificuldade para os professores, durante as aulas remotas se tornou praticamente impossível. Logo, a única forma rápida e que cabe no horário disponível aos professores é continuar com a avaliação tradicional. Obviamente, os estudantes aproveitam todas as respostas no banco de dados da plataforma do Brainly. Essa prática pode perpetuar um ciclo de pouco aproveitamento avaliativo nas escolas.
Os dois fatores anteriormente citados são apenas pedaços de uma vivência complexa e difícil que os professores têm passado durante esse período.
Existem soluções para eles?
É importante reforçar que o instrumento, por si só, não é o causador de todo o mal que analisamos. O potencial da internet como ferramenta de ensino é muito valioso. Ela pode ser adicionada e utilizada em desenvolvimentos críticos educacionais. Mas essa mudança precisa acontecer nas estruturas de poder e de organização escolar, e não apenas na cobrança solitária do professor.
A reflexão e as possíveis mudanças sobre essa problemática precisam acontecer em um momento anterior. Vamos iniciar com a reflexão da estrutura geral das escolas. Conhecer e entender que a escola é um ambiente de docilidade dos corpos é importante. Todavia, a sua superação depende não somente de uma mudança prática dos professores. Isto é, isso compõe um trabalho social, de percepção da função da escola e do conhecimento que será trabalhado. E isso podemos continuar discutindo futuramente.
Acredito que podemos focar neste próximo ponto. O que precisamos, primeiramente, é fornecer possibilidades reflexivas sobre a própria prática para os professores. Permitir que os professores pensem e escolham sobre as suas aulas, métodos e instrumentos avaliativos. Atualmente, a estrutura geral da educação não permite essa prática, e os professores acabam forçados ao que é, supostamente, cômodo e ágil, sem que se permita que o professor tenha experiências pedagógicas, possibilidades reflexivas e condições para escolhas pedagógicas.
Finalizando
O que a plataforma Brainly fez foi escancarar algo que já se tornou historicamente problemático no ambiente escolar, e que continuará mesmo se o ensino tradicional presencial retorne a sua normalidade anterior a COVID-19. Os estudantes estarão sempre a um passo da internet e de todas as respostas de uma prova tradicional. Por outro lado, os professores sempre atolados e desmotivados para utilizar de outros pensamentos e modelos educacionais e avaliativos.
Em suma, essas mudanças precisam ser repensadas, levando-se em conta a organização da sociedade. O poder disciplinar, tal como descrito em Foucault, acontece dentro do espaço escolar, é produtivo (como diz o autor), mas não necessariamente precisa acontecer de forma apenas a partir da reprodução contínua de atos e ritmos: é preciso que ensinemos mais do que a repetição automatizada de respostas.
Para saber mais
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
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