Gestar atrapalha a ciência, cobrar por políticas públicas também

Mulher, segurando um bebê, em uma maternidade. Ó fundo da foto está desfocado.

Recentemente vimos o caso em que uma pesquisadora recebeu um parecer ultrajante, sobre sua solicitação de Bolsa Produtividade. Constava em seu parecer o indicativo da não execução de um pós-doc internacional, apesar do reconhecimento da carreira. A pesquisadora divulgou que o parecer apontava que isto aconteceu pois “provavelmente suas gestações atrapalharam essas iniciativas, o que poderá ser compensado no futuro”. 

Este debate não é recente no campo científico. Aliás, o Brasil aparentemente tem uma presença alta de mulheres em profissões universitárias e científicas. O que gera uma impressão, à primeira vista, de que existe equidade de gênero dentro de profissões acadêmicas. Todavia, a questão não é de quantidade de mulheres (neste caso, referindo-se a mulheres cisgênero, uma vez que é importante destacar que dentro do debate de gênero, pessoas cisgênero parecem ser maioria no meio acadêmico).

É fundamental observar, dentro do cenário, quais são os espaços ocupados por estas “categorias de sujeito”, esmiuçando também suas características enquanto grupos sociais. Este tipo de indicador nos possibilita interrogar e analisar quais são as condições de acesso a cargos e posições hierárquicas, na carreira de pesquisa e quais são os grupos que majoritariamente estão ocupando os espaços.

Um dos termos utilizados frequentemente para apresentar a falta de equidade de gênero é o “teto de vidro”, que diz respeito às limitações no acesso aos diferentes (e superiores) espaços hierárquicos institucionais e de carreira, sendo que conseguimos ver os passos que precisaríamos dar, mas não alcançamos esse espaço, mesmo possuindo condições técnicas e competência para tal (MAFFIA, 2002).

Quando falamos a palavra cultura – sempre bom retomar – não estamos falando daquela compreensão de “o melhor feito e produzido pelo ser humano”, mas como práticas cotidianas e rotineiras, que tornam passível de reconhecimento quem somos, enquanto grupos sociais e humanos, em uma sociedade. Nossa cultura é, historicamente, machista e patriarcal. É uma cultura que tem como prática sistemática colocar os sujeitos “em seus devidos lugares”. Isto não acontece necessariamente de maneira formal e estruturada em regras explícitas. Ao contrário, faz parte de inúmeras estratégias, políticas, narrativas e práticas – muitas vezes pequenas e pouco perceptíveis, mas constantes. Tudo isto nos ensina cotidianamente os papéis sociais que devemos assumir.

Pelo contrário, são parte de um conjunto de lutas, socialmente empreendidas por movimentos e grupos sociais. Seu objetivo? Questionar privilégios e opressões estabelecidas em nossa sociedade.

E o que isso tem a ver com a ciência?

Quando estamos falando da carreira científica, o status social que hierarquicamente é inquestionável ainda é aquele ocupado por homens, brancos, heterossexuais e cisgêneros. Assim, é esta “categoria de sujeito” que estabelece, majoritariamente, quais são os critérios válidos para ocupar cargos e estabelecer etapas para avançarmos em uma carreira de cientista e pesquisador.

Ao falarmos sobre “cultura” e ao falarmos em “categoria de sujeito” estamos nos referindo não a um homem específico e individual. Mas à formação de um modo de pensar que se vincula à vida deste grupo social específico, que se auto intitula – há um certo tempo – como o sujeito universal. Com seus benefícios e privilégios sociais. Além disso, junta-se a sua não percepção (ou até mesmo negação) de demandas e necessidades advindas da diversidade humana e de diferentes grupos sociais.

A ciência, como prática humana inserida dentro de uma cultura, está longe de ser isenta de vieses daqueles sujeitos que a produzem. Quando temos um grupo social majoritário, que socialmente possui privilégios historicamente construídos, conduzindo grande parte das regras às quais todos temos que cumprir, teremos vieses também. 

E eu gostaria de ressaltar aqui a palavra “privilégio” novamente. Com a força que esta palavra tem e precisa ter neste debate. Para bell hooks,

Essa definição é fundamental para situarmos que não é apenas sobre nascer em famílias que possuem condição econômica e não ter obstáculos sociais para alcançar patamares importantes na vida – como carreira, cargos hierárquicos, por exemplo. Estamos falando literalmente de definir quais são as regras do jogo e como elas devem funcionar para todas as pessoas, a partir da percepção de um só tipo de pessoa no mundo. E, mais do que isso, um tipo de pessoa que não têm obstáculos, descrevendo as regras e, eventualmente, produzindo obstáculos às demais pessoas, dentre a diversidade que existe em nossa sociedade.

Ser uma pessoa que possui útero, dentro do meio acadêmico, é ter uma série de obstáculos que delimitam nossa jornada como imposição. Ter a carreira constantemente atravessada por decisões acerca de gestar ou não uma criança, faz parte dessa trajetória, mesmo quando não se quer engravidar.

Mas o tomar a decisão de engravidar – ou levar adiante uma gestação – é inserir períodos de pausa na vida acadêmica para a maternagem, que retomam a ideia do início deste texto. 

Segundo Maffia, existem barreiras criadas pela própria ciência. Ou seja, como conteúdo descritivo da natureza feminina, que se fundamentam em ideologias, construções culturais – ou pseudociência mesmo “que se naturalizam em uma falta de condições cognitivas que as expulsam necessariamente de todos os lugares de produção de conhecimento” (Maffia, 2002, p.33).

Dentro da lógica apresentada pelo parecerista, tal como o que aponta Maffia, no parágrafo acima, gestações atrapalham o desempenho acadêmico. Isso acontece uma vez que gestações causariam déficit de condições às mães e às pessoas com útero que decidem pela gestação e cuidado aos filhos.

Seria verdade que as gestações atrapalham o desempenho acadêmico? Seria a academia um local acolhedor e tranquilo para qualquer ser humano – que não da categoria social “homem, branco, heterossexual, cisgênero” – adentrar e se estabelecer?

Qualquer pessoa que já se embrenhou na leitura do livro As Cientistas: 50 mulheres que mudaram o mundo, pode perceber que por um longo período, para ser mulher cientista, no início do século passado, muitas vezes era necessário fugir dos pais e dos maridos. 

Por muito tempo, para milhares de meninas que estudavam ciência na escola, só existia um nome a se espelhar, quando falávamos de ciência: Marie Curie.

Todavia, é preciso mais. Ou seja, exemplos e representatividade de uma diversidade de pessoas e culturas que produzem conhecimento válido fazem parte de uma luta social constante e fundamental para mudar o cenário atual da ciência e dos privilégios que ainda são legitimados neste meio.

E há grupos que vêm fazendo isso, há um tempo…

Parent in Science

Quando falamos especificamente da questão da maternidade e paternidade, junto à carreira científica, é preciso que se fale do grupo Parent in Science (PiS). Este grupo é formado por cientistas mães e pais que debatem o cuidado e a parentalidade e a carreira científica.

“O Parent in Science surgiu com o intuito de levantar a discussão sobre a parentalidade dentro do universo da academia e da ciência. Iniciamos nossas ações para preencher um vazio, de dados e de conhecimento, sobre uma questão fundamental: o impacto dos filhos na carreira científica de mulheres e homens.”

Mais do que um grupo aleatório que brada sem motivos, o PiS busca analisar de que forma filhos impactam na carreira das pessoas. Isto é, um grupo que apresenta dados e discute-os publicamente em seus resultados que têm consonância com resultados encontrados em outros países. Em termos gerais, após a primeira gestação, a quantidade de publicações cai brutalmente, para pessoas com útero. Isso acontece especialmente no primeiro ano após o parto. No entanto, esta queda perdura por três anos, em média.

Vamos a algumas produções do PiS?

Os estudos também mostram que as pessoas que desempenham papéis de cuidado, trabalho doméstico e/ou maternagem enfrentaram dificuldades em continuar com um ritmo de publicações acadêmicas, por exemplo, durante o período da pandemia de Covid-19. Neste mesmo período se viu um aumento de submissões de artigos por parte de homens – pais ou não.

Tal cenário, todavia, não têm como “causa” a falta de competência e condição destas pessoas em fazer ciência de qualidade. Tampouco existe algum déficit na capacidade de escrita e produção de artigos, por exemplo.

São fatores que compõem o que chamamos de teto de vidro, já apontado anteriormente. Ou seja, fatores que se vinculam a estereótipos de gênero, preconceitos (conscientes ou não), estrutura dos espaços acadêmicos para abarcar às demandas de quem está retornando da licença e possui crianças pequenas sob seu cuidado e responsabilidade.

Este resultado, aponta para o que já acontecia previamente a este momento histórico, em que estes grupos sociais possuem um tempo, em média 73% maior, dedicado a tarefas domésticas, quando comparado a homens, por exemplo.

Neste sentido, o PiS volta-se também para um debate acerca das políticas públicas sobre a maternidade e o estabelecimento da carreira científica destas pessoas que gestaram e estão retomando seu campo de atuação. Assim, no site do grupo há uma série de guias que indicam como as instituições podem efetivamente oferecer um suporte que possibilite um espaço de equidade dentro da ciência. Isso inclui, obviamente, editais.

E por que trazer isso agora, mais de um mês depois do caso de Carlotto?

Algumas pessoas podem me perguntar, “qual o motivo de este debate novamente”, sendo que “após repercussão do caso da professora Maria Caramez Carlotto, CNPq estende período de avaliação da produtividade por dois anos para cada parto ou adoção”?

Ao que tudo indica, após “ganhar” este tempo a mais, não há mais o que ser questionado ou batalhado no campo da cultura científica e cotidiano, não é mesmo?

Dia 30 de Janeiro de 2024, eu acompanhava o evento de minha pós-graduação, GBMeeting (Encontro Anual da Pós Graduação em Genética e Biologia Molecular da UNICAMP). Ao final da mesa, uma pergunta sobre equidade de gênero foi endereçada ao Professor Ricardo Galvão, presidente do CNPq. Na ocasião, ele trouxe à tona esta questão específica e não havia como eu deixar passar…

“A análise dessa distribuição de bolsas de produtividade de pesquisa, inclusive em casos [de bolsas] mais alto, não pode ser feita “tábula rasa”, dizendo que tem 50% da população brasileira é mulher, então 50% de bolsa de pesquisa [para elas]. Isso claramente está errado do ponto de vista científico.”

“O que as mulheres querem, quando reclamam disso [desigualdade de gênero], as que são produtivas, não é que sejam tratados de forma paternalista, isso não é o ponto. elas querem que o trabalho e qualidade seja reconhecido igualmente aos homens.”

“Eu tenho recebido, e vou dizer claramente, uma que me atrapalha muito, a organização Parent in Science, que eles mandam o tempo todo requisições ao CNPq que criam processos de bolsas separados para mulheres e julgamento separados para mulheres, isso não vai ajudar a ciência brasileira”

O professor mencionado apontou literalmente e nominalmente o movimento PiS como aquele que atrapalha ele, pessoalmente, e, aparentemente, o CNPq na construção de políticas de equidade de gênero. Ainda nesta fala, o Prof. referiu-se ao fato de que o teto de vidro estaria nas instituições e não no CNPq.

Isso se daria, conforme a fala destacada, em função de pedir políticas que são erradas do ponto de vista científico, pois estaria pedindo um julgamento e processo separado. Em outras palavras: como se o PiS estivesse pedindo editais segmentados. Ironicamente, Galvão reproduz o que sofreu durante o governo Bolsonaro. Fez isso ao tomar dados de pesquisas científicas publicadas em periódicos renomados e apresentar uma interpretação peculiar aliada a sua opinião pessoal sem evidências sobre “o que as cientistas brasileiras querem”. (artigos e documentos publicados podem ser conferidos aqui, aqui,e aqui, por exemplo).

Teto de vidro e o contrassenso do privilégio

O PiS lançou no dia 31 de Janeiro uma Nota Pública de Repúdio. Nesta nota, incluiu como referência o informativo As Bolsas de Produtividade em Pesquisa: uma Análise do Movimento Parent in Science.

Ao olharmos este informativo, as análises nos indicam que realmente, as mulheres submetem menos pedidos [de bolsa produtividade] do que os homens. Todavia, ao observarmos a taxa de aprovação destes pedidos, as mulheres apresentam menor taxa de sucesso na aprovação, do que homens.

Ou seja, mesmo considerando a existência de um teto de vidro dentro das instituições, ainda assim mulheres aprovam menos bolsas do que homens. 

Apontar um viés de gênero nas aprovações e colocar isto para debate é, exatamente, questionar que apesar de haver qualidade na produção das mulheres, existem outros fatores que permeiam a seleção do edital.

No informativo ainda consta que:

Parece-nos fundamental ressaltar que o PiS não é um grupo que atrapalha políticas públicas, em especial um gestor de políticas públicas científicas. Há uma iniciativa que reitera que as políticas públicas precisam ser equitativas e, além disso, indica caminhos, pautados pela ciência nacional e internacional.

Ao conversar com Fernanda Staniscuaski, fundadora e coordenadora do Movimento Parent in Science, ela reiterou que

“O Parent in Science vem, desde sua criação, trabalhando por uma reforma na academia. Não estamos em busca de privilégios, não estamos esperando favor de ninguém. O que queremos é uma academia verdadeiramente justa e que valorize as diferentes trajetórias acadêmicas. Nossa luta é reconhecida internacionalmente e já promovemos mudanças efetivas no ambiente acadêmico. E assim seguiremos fazendo.”

Um trabalho que só pode ser pensado como intencionalmente atrapalhando alguém, se atrapalhar for sinônimo de debater, com ciência e produção de conhecimento, como privilégios de homens brancos heterossexuais e cisgênero, estabelecidos em suas longas carreiras, criam barreiras sociais efetivas para uma sociedade mais justa e empática.

Por fim, o que deveríamos esperar de alguém que preside uma instância científica brasileira, além de observar demandas e reparar desigualdades dentro e fora do âmbito acadêmico e, com afinco, gerar, produzir e lutar por políticas públicas neste aspecto que levassem conhecimento científico em consideração?

Para Saber Mais

Carpes, P. B. M, Staniscuaski, F, Oliveira, Lde, & Soletti, RC (2022). Parentalidade e carreira científica: o impacto não é o mesmo para todos Epidemiologia E Serviços De Saúde, 31(2), e2022354. 

HOOKS, bell (2022) Escrever além da raça, São Paulo: Elefante, 2020.

Maffia, D (2002) Crítica feminista à ciência. In: COSTA AAA e SARDENBERG, CMB (org) Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: REDOR/NEIM-FFCH/UFBA, p.25-39

Martinez ED, Botos J, Dohoney KM, Geiman TM, Kolla SS, Olivera A, Qiu Y, Rayasam GV, Stavreva DA, Cohen-Fix O. Falling off the academic bandwagon. Women are more likely to quit at the postdoc to principal investigator transition EMBO Rep, Nov;8(11):977-81.

PARENT IN SCIENCE (2023) As Bolsas de Produtividade em Pesquisa: uma Análise do Movimento Parent in Science, Porto Alegre: Parent in Science, 2023.

Staniscuaski F, Kmetzsch L, Soletti RC, Reichert F, Zandonà E, Ludwig ZMC, Lima EF, Neumann A, Schwartz IVD, Mello-Carpes PB, Tamajusuku ASK, Werneck FP, Ricachenevsky FK, Infanger C, Seixas A, Staats CC and de Oliveira L (2021). Gender, Race and Parenthood Impact Academic Productivity During the COVID-19 Pandemic: From Survey to Action, Front Psychol 12:663252.

Staniscuaski, F, Machado, AV, Soletti, RC et al (2023) Bias against parents in science hits women harder. Humanit Soc Sci Commun 10, 201 (2023). 

Sobre Ana Arnt 55 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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