A permissividade dos discursos do trote: caso UNISA

Registro da importunação sexual feito por estudantes de medicina
Importunação sexual por estudantes de medicina. Fonte: Folha de São Paulo

 O caso dos estudantes de medicina da UNISA expulsos por importunação sexual escancara problemas sobre as práticas violentas normalizadas nas universidades.

As redes sociais e a mídia foram tomados por uma cena desprezível e extremamente problemática nestas últimas semanas. Homens, estudantes de medicina de uma faculdade particular, em um evento esportivo, saíram nus e se masturbaram publicamente durante uma partida de vôlei feminino. No meio de uma multidão de pessoas, sem alarde e sustos por parte daqueles presentes, toda esse escárnio com a normalidade toma palco em um evento universitário. 20 estudantes já foram expulsos pelo crime, que ocorreu em abril e só tomou repercussão agora em setembro. Incrivelmente, a justiça já reverteu a decisão de expulsar os estudantes.

As análises e críticas (necessárias e até mesmo escassas) tomaram um rumo sobre o simbolismo, a possibilidade desse tipo de importunação sexual acontecer de forma impune; o privilégio dos estudantes, homens brancos, cometerem crimes e só repercutir meses depois na mídia. Sim, todas essas críticas são extremamente importantes e necessárias, principalmente na conjuntura machista, racista e extremamente problemática que temos nas nossas faculdades. Mas um ponto me chamou muito a atenção, que foram as defesas dos acusados.

Defender o indefensável, normalizar o abjeto: a função do trote universitário

Após toda a repercussão inicial, a defesa dos estudantes e da universidade começaram a se armar para possibilitar uma contra argumentação ao caso, buscando uma solução. A universidade alega que a situação toda não passava de um trote, pedindo até o arquivamento da apuração que estava sendo conduzida. A defesa dos estudantes identificados no caso também usaram do mesmo argumento, alegando que eram todos calouros e que foram coagidos através do trote a realizar os atos obscenos e criminosos. Como não sou juiz e nem atuo com direito criminal, não vou pesar sobre a veracidade e o julgamento da defesa. Mas vejo como uma reflexão necessária: você aqui que lê, acredita que seja completamente impossível que isso tenha acontecido? 

A discussão que proponho aqui é que o trote universitário, a sua estrutura, história e formas de existir possibilitam que essa defesa deste crime deplorável através dele. Se existe o trote, enquanto esta instituição de perpetuação e normalização da violência, da humilhação, da hierarquização, esses argumentos nefastos continuarão existindo. 

Parece-me óbvio o problema aqui. O arcabouço jurídico utilizado pela defesa dos acusados só é possível pois o trote existe como ele é hoje. Este discurso problemático da defesa existe porque o trote existe. Neste processo, perde-se o ponto daquilo que foi registrado: homens importunando sexualmente outras pessoas. A universidade, os advogados e toda a argumentação da defesa se baseia unicamente na existência do trote. Veja, a existência do trote serviu justamente o seu propósito em um dos níveis mais grotescos da sociedade. Ele normalizou crimes, defende atitudes abjetas, desumaniza todos aqueles ao seu redor. 

A pequena resposta não resolve o problema todo 

Logo, mostra-se mais um ponto do porque o seu fim é extremamente necessário para preservarmos as universidades brasileiras. Contudo, para além da possível verdade sobre o trote ou não neste caso viral, as estruturas das relações universitárias que passam pelo trote precisam ser reestabelecidas para que este tipo de defesa não exista mais. Para que não passemos pano para crimes por uma prática “tradicional”.

E o fio condutor desta problemática toda continua sendo a frágil e patética defesa da existência do trote enquanto brincadeira integradora. Já existe uma base teórica expondo que o trote, enquanto prática universitária, só causa a formação de discursos e atitudes machistas, racistas, LGBTQIAfóbicas, com o troco de um sentimento muito superficial de pertencimento e exclusividade. 

Obviamente, cabe aqui reforçar que não, acabar com o trote não vai acabar com todos os problemas que foram citados aqui. Porém, o seu fim possibilita a existência da diversidade nas universidades e exima a existência da defesa do indefensável, a normalização do absurdo, a humilhação gratuita que forma profissionais imersos nestes discursos. É um passo pequeno, mas é um passo necessário.

 

Para saber mais:

G1 (Setembro, 2023). Após decisão judicial, Unisa vai reintegrar os 15 alunos expulsos

UOL (Setembro, 2023). Polícia investiga dois possíveis crimes em caso de estudantes nus da UNISA.

CNN (Setembro, 2023). UNISA trata atos de simulação de masturbação como “trote” e pede para MEC arquivar apuração.

G1 (Setembro, 2023). Nudez na quadra: alunos de medicina dizem que foram expulsos sem direito de defesa

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Sobre Matheus Naville Gutierrez 12 Artigos
Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.

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