Epistemes e alienígenas: uma discussão científica

Miriam Espacio https://unsplash.com/@miriamespacio

Europa? Não… Os Aliens curtem mesmo a América!

Desde o meu tempo de escola (falou o velho), me lembro de discutir ciência com o professor de história. Falávamos muito sobre as hipóteses de aliens terem visitado o Egito ou a América Latina antigamente. Ele defendia as teorias e sempre vinha com novos argumentos e exemplos. Eu, como nunca fui muito de acreditar nessas coisas, rebatia. E assim, passávamos aulas e aulas discutindo sobre (hoje em dia penso: será que ele fazia só para me desafiar, ou acreditava mesmo?).

Mesmo cético, sempre me interessei pelo assunto. De qualquer forma, acho uma loucura a forma com que os pesquisadores defendem as hipóteses de que alienígenas visitaram nossos antepassados (essas teorias ficaram conhecidas como Teorias dos antigos astronautas).  Por isso, vez ou outra assisto a série “Alienígenas do passado” do History Channel. Em primeiro lugar, iremos tentar articular conceitos ou discussões que fazem parte dos estudos na História e Filosofia da Ciência, com elementos da suposta vinda dos ET’s (extraterrestres) até o nosso planeta. Em seguida, vamos conversar sobre o conceito de episteme e levantar alguns pontos relacionados à descontinuidade histórica.

A série e as problemáticas

A série “alienígenas do passado” (ou ancient aliens em inglês), é uma série televisiva do canal History Channel. Estreou em 2010 e já conta com oito temporadas. O foco é: apresentar possíveis evidências de que alienígenas tenham visitado nosso planeta no passado. Os pesquisadores exploram desde desenhos antigos e substâncias químicas até construções gigantescas que, segundo eles, só podem ser obras dos Et’s. Além disso, a série conta com um forte elenco, trazendo nomes que são referência na área da Ufologia como Giorgio Tsoukalos que já participou de seminários e congressos inclusive no Brasil.

Não sou o fã número 1 da série, mas já assisti alguns episódios. Algo que comecei a reparar é que os lugares explorados são na maioria das vezes África, América ou Ásia. Nunca vi um episódio que fosse “Aliens em Roma” ou “Aliens na Grécia”. Comecei então a buscar pela internet outras pessoas que também questionassem isso e encontrei o vídeo do canal Nerdologia no youtube sobre a série. O vídeo é apresentado e roteirizado pelo historiador Filipe Figueiredo e alguns conceitos que ele trabalha lá, também irei focar aqui.

Tão antiguinhos… Como eles conseguiam?

Uma das coisas que fica clara nas teorias dos antigos astronautas é a postura adotada perante às possíveis evidências. Por exemplo, As pirâmides do Egito construídas por volta de 2500 a.C. Pesquisadores de diversas áreas já nos mostraram várias técnicas que os egípcios podem ter utilizado para construí-las [1]. Além disso, já existem estudos capazes de examinar o DNA e até mesmo os órgãos internos das múmias egípcias e, acredite se quiser: nenhum deles encontrou vestígios vindos de outros planetas.[2]

Acima de tudo, a postura adotada pelos pesquisadores que propõem as hipóteses de alienígenas é de esnobar o passado (considerando que por serem muito antigas, as pirâmides eram impossíveis de serem construídas) ou idealizá-lo (como um período grandioso, maravilhoso e desconhecido). Essa postura é adotada não só em relação às pirâmides do Egito, mas também em relação às pirâmides encontradas na América Latina e em outros casos espalhados mundo afora.

Na Europa é fácil…

O que me parece interessante observar é que ninguém duvida da capacidade dos gregos terem construído o Templo de Ártemis em 550 a.C por exemplo. O Peterson Kepps escreveu aqui no blog um texto que fala sobre a forma que interpretamos as narrativas históricas na contemporaneidade e nos ajuda a entender algumas coisas aqui.

Temos documentado que o templo passou por duas grandes destruições ao longo de sua história e por isso, hoje restam apenas as ruínas.

A Grécia Antiga, por exemplo, faz parte da história contínua do mundo ocidental. A Grécia se desenvolveu, depois veio Roma, e a Europa foi se desenvolvendo. Tudo isso é documentado e registrado, por isso, nem pensamos na hipótese de que um Et visitou a Terra e construiu o coliseu para ver os humanos se digladiando.

Mas… e o resto? Todas as outras histórias também estavam sendo escritas, porém, elas entram na descontinuidade histórica que forma o nosso mundo. A história não é uma linha reta e única, ela é formada por várias e várias linhas.

Ao considerarmos apenas as construções europeias como construção humana, é como se estabelecêssemos uma metanarrativa ou uma lei que generaliza e abrange todas as construções do mundo. Nela, só o jeito europeu é aceito como humano, os outros são extra terrestres. Como os registros daqui não batem com os europeus, os pesquisadores que acreditam nas visitas interestrelares, se tornam um tanto quanto etnocentristas ao preencherem as lacunas formadas na história com as Teorias dos antigos astronautas. De certa forma, posicionando os latinos ou africanos como incapazes de desenvolverem suas próprias construções.

Eurocentrismo na ciência

O que nos chama atenção também são os pensamentos eurocêntricos que muitas vezes se relacionam com também as discussões científicas. A ciência moderna se origina justamente na Europa, e por isso, as coisas lá se encaixam perfeitamente na história contínua que aprendemos desde a escola. Durante muito tempo nos foi ensinado que apenas na Europa a verdadeira ciência era produzida. As principais ideias e teorias, vinham de lá, mas isso não quer dizer que só lá era produzido conhecimento. O que vinha de fora, era interpretado quase que como se não fosse produzido por seres humanos (isso parece um pouco familiar?!?!?!…)

No episódio: “Ciência nas crônicas de Machado” do podcast Oxigênio, Lais Toledo e Thais Oliveira, contam com a presença de Ana Flávia Cernic Ramos, professora da Universidade Federal de Uberlândia e pesquisadora dessa parte mais científica das obras de Machado de Assis [3]. Ela relata como o autor participava dos debates científicos do século XIX, problematizando as metanarrativas científicas que tentavam totalizar e estabelecer teorias gerais, capazes de englobar tudo. Em seus textos, Machado questionava por exemplo, como era inviável que as teorias europeias explicassem as desigualdades sociais no Brasil no período da escravidão. Isso dá assunto para outros textos, mas o que quero destacar é que a ciência estava sendo pensada e produzida aqui também, porém o autor brasileiro era acusado até de não ter uma “educação científica” simplesmente por não ter formação europeia.

Epistemes

Mas, com o estabelecimento da ciência no século XVII, a forma de pensar mudou. O ser humano começa a se entender como produtor de conhecimento, busca realizar seus estudos e testes da forma mais racional possível e por isso, acaba abandonando (em partes) a religião e as crenças mais antigas. No decorrer da história, diferentes conjuntos de regras/normas determinaram as formas de produzir conhecimento. Cada um desses “conjuntos de regras” é uma episteme. Elas vão se modificando de acordo com o contexto histórico ou lugar. Perceba: até dado momento histórico, se pensava de uma forma, a filosofia e a forma de ver o mundo eram outras. Com o estabelecimento da ciência, isso muda completamente. Mudamos a episteme de tal forma, que hoje é difícil para nós entendermos ou pensarmos como os gregos ou romanos pensavam antes.

No livro “As Palavras e as Coisas”, Michel Foucault [4] nos dá um exemplo disso. Bem no começo do livro (é bem no início mesmo, no Prefácio, vai lá olhar) o autor cita um texto de Borges que situa uma classificação que supostamente faz parte de uma enciclopédia chinesa.

A enciclopédia organiza os animais em:

(a) pertencentes ao Imperador, (b) embalsamados, (c) domesticados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães em liberdade, (h) incluídos na presente classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, (l) et cetera, (m) que acabam de quebrar a bilha, (n) que de longe parecem moscas

Tudo bem, pode rir, até Foucault riu. Porém, dentre as discussões feitas no livro, ele nos atenta para o motivo de acharmos graça disso tudo: a incapacidade que temos de pensar dessa forma.

Essa classificação, além de antiga, faz parte do mundo Oriental. Outros paradigmas (ou epistemes). Nós, do Ocidente, pensamos de forma totalmente diferente. Até a forma de escrever é diferente. Podemos articular esse mesmo raciocínio com as hipóteses que citam os aliens, já que, as construções exploradas foram desenvolvidas em epistemes diferentes da que os pesquisadores se encontram. Por se tratarem de construções muito antigas, ou em lugares do mundo com culturas bem diferentes dos padrões europeus, os pesquisadores não conseguem nem imaginar como os arquitetos planejaram a construção.

“Mas é porque as pirâmides são muito antigas… Não teria como eles construírem”

A nível de curiosidade, te mostro algumas estruturas construídas pelos supostos aliens e o ano aproximado em que foram construídas, respectivamente. [5]

Pirâmide de Quéops por volta de 2550 a.C

Teotihuacán entre 100 a.C e 250 d.C

Linhas de Nazca entre 400 e 650 d.C

Sacsayhuaman por volta de 1400 d.C

Lembra que eu falei do templo de Ártemis (aquele que ninguém duvida)? Algumas estruturas que listei aqui foram construídas mais de mil anos depois dele, e mesmo assim, ainda acreditam que foram aliens? Será que realmente os únicos capazes de desenvolver obras arquitetônicas incríveis eram os gregos? Ou os aliens que não curtiam muito a Europa e preferiam a América?

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Apenas algumas ressalvas…

Mesmo assim, com todas as problemáticas que discutimos, não quero dizer que não acredito na possibilidade de vida fora da Terra. Nosso universo é gigantesco e o conhecimento que temos sobre ele ainda é pouco. Com a infinidade de galáxias e planetas existentes, acredito que em algum lugar por aí, podem sim existir formas de vida. Porém, o que quero mostrar com esse texto é a forma que a história se diversifica. Diferentes civilizações em diferentes épocas encontraram diferentes formas para construir seus monumentos e desenvolver suas próprias sociedades (uso o adjetivo “diferente” repetidas vezes para destacar a diversidade gigantesca).

Não podemos cair na ideia de que as civilizações de fora da Europa eram incapazes de fazer qualquer coisa. Desde que começaram a surgir as primeiras hipóteses de aliens, muito conhecimento foi produzido e as teorias foram se atualizando. Novas descobertas são feitas todos os dias. Um estudo publicado quarta (22/07/2020) na revista Nature por exemplo, traz novos dados vindos de escavações recentes para as pesquisas relacionadas à ocupação humana no continente americano[6]. Ainda assim, os pesquisadores ou pseudo-pesquisadores fãs dos “verdinhos”, continuam com a ideia de que os Et’s resolveram disponibilizar um pouco do seu precioso tempo para dar uma mãozinha para a galera aqui da Terra.


Para saber mais…

[1] Cientistas explicam técnicas de egípcios para construir pirâmides https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/05/140502_piramides_areia_lk

[2] Escâneres revelam segredos de múmias milenares do Egito https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140410_mumias_exposicao_bg

[3] Livro da professora Ana Flávia Cernic Ramos: As máscaras de Lélio – Política e humor nas crônicas de Machado de Assis (1883-1886) escrito em 2016.

[4] Livro em que Foucault cita essa classificação e analisa a constituição do sujeito moderno: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas – 8ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[5] Lugares antigos que as pessoas acreditam ser obra de extraterrestres https://www.natgeo.pt/viagem-e-aventuras/2018/05/7-lugares-antigos-que-pessoas-acreditam-ser-obra-de-extraterrestres

[6]Pesquisa revela que América foi ‘descoberta’ milhares de anos antes do que se pensava https://www.bbc.com/portuguese/geral-53504712

Posts de blog/podcasts

Narrativas históricas na contemporaneidade

#91 Oxilab: Ciência nas crônicas de Machado

Sobre Pedro Leal 3 Artigos
Olá! Meu nome é Pedro Leal, sou estudante de Biologia pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Atualmente, pesquiso sobre a História e Filosofia da Ciência (HFC) e faço parte do grupo PEmCie.

2 Comentários

  1. Discussão muito importante pra gente questionar essa ideia de que grandes feitos sempre saíram primeiro da Europa né. Isso me fez lembrar da própria origem da matemática, por exemplo. O problema é que a historia que se conta muitas vezes é a dos vencedores da corrida do capitalismo e da modernidade...

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