Ciência fundamental ou ciência aplicada?

Em referência à postagem anterior, o texto a seguir foi publicado no Jornal da Ciência, 1998, 13 (395), 7, sem as citações finais em inglês. O mais inusitado é que o então diretor científico da FAPESP, Prof. José Fernando Perez, publicou texto relacionado ao mesmo tema no mesmo número do Jornal da Ciência, 1998, 13 (395), 6. Não encontrei versões on-line destes textos. Assim, escaneei e disponibilizei ambos no blog Química de Produtos Naturais.

Ciência fundamental ou ciência aplicada?

Pure and applied science are inseparable and can only grow together.”
 Charles H. Townes, Nobel de física em 1964

Tal questão têm sido frequentemente levantada, porém com muito mais ênfase na última década visto que o investimento na pesquisa científica atingiu números sem precedentes. A fusão das indústrias farmacêuticas Glaxo Wellcome e SmithKline Beecham, por exemplo, levará as mesmas a aplicar um montante equivalente a 2,34 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento durante os próximos anos, e deverá constituír uma companhia com valor de mercado estimado em 125 bilhões de dólares (The Globe and Mail, 02.03.98) . Se por um lado o setor empresarial privado internacional não mede esforços para desenvolver novos produtos e processos, por outro lado pouco se sabe sobre investimentos dessa natureza no mercado brasileiro. Seja porque pouco se divulga sobre esse assunto ou porque tal investimento é negligível.

No Brasil, tanto a pesquisa científica quanto tecnológica são essencialmente financiadas por órgãos públicos estaduais e federais de fomento. Este financiamento é e continuará sendo por muito tempo absolutamente imprescindível. Porém, este é um quadro em mudança: atualmente, estimula-se a elaboração de projetos de pesquisa científica e tecnológica em parceria com o setor privado, de tal maneira que o conhecimento adquirido ou gerado possa levar ao desenvolvimento de processos e produtos de utilidade para a sociedade. Essas iniciativas só podem ser vistas com bons olhos, tendo-se em vista necessidades regionais de desenvolvimento científico e tecnológico. Contudo, ainda questiona-se a eficácia de tais programas pois acredita-se que o financiamento de pesquisa por parte do setor privado possa limitar o campo de atuação da ciência que obtenha este tipo de financiamento. A história nos mostra, porém, que cabe ao próprio cientista conduzir o trabalho de investigação científica. De acordo com sua filosofia de trabalho, o cientista poderá caracterizar sua investigação seja por um caráter mais fundamental, seja por um caráter mais aplicado, ou ainda por uma mistura de ambas, denominada “pesquisa fundamental orientada à aplicação”.

Como exemplo da primeira, poderíamos citar: a) o trabalho de Niels Bohr, físico alemão que dedicou-se a estudar a estrutura do átomo no início do século; b) as pesquisas de Linus Pauling sobre a natureza das ligações químicas e a estrutura das proteínas; c) as descobertas de Albert Einstein sobre a teoria da relatividade e a LASER (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation), ou; d) a descrição por Bloch e Purcell do fenômeno de Ressonância Magnética Nuclear (RMN) no fim dos anos 40. Interessante, porém, é notar que todos estes exemplos serviram de base para o desenvolvimento posterior de inúmeros projetos de ciência aplicada, os quais modificariam o rumo da história: no caso de Bohr e outros físicos e químicos que se dedicaram ao estudo das partículas fundamentais da matéria, ao desenvolvimento e aplicação da energia atômica; no caso de Pauling, ao desenvolvimento da biologia molecular e em última instância da biotecnologia; no caso de Einstein, a teoria da relatividade, em conjunto com outras descobertas, permitiu a implantação dos programas de exploração espacial e a LASER levou à descoberta da MASER (Microwave Amplification by Stimulated Emission of Radiation) a qual, por exemplo, é utilizada em leitores de discos compactos e códigos de barra; e no caso de Bloch e Purcell, ao desenvolvimento das inúmeras técnicas de RMN tanto em estado sólido como em estado líquido, dentre as quais a geração de imagens em medicina. Fato interessante, quando Einstein descreveu a LASER, o fenômeno foi considerado de “interesse puramente teórico, sem qualquer utilização prática”.

Como exemplo da segunda forma de utilização da ciência, de caráter essencialmente aplicado, poderíamos citar a descoberta da técnica de polymerase chain reaction (PCR), descrita por Kary Mullis (prêmio Nobel de química de 1993), e as inúmeras invenções de Thomas Edison. No primeiro caso, Mullis estava preocupado em como obter maior quantidade de material genético, sem ter que se limitar a extrair DNA durante semanas a partir da fonte original do mesmo. As decorrências da descoberta da técnica de PCR são inúmeras, como, por exemplo, para a realização do Projeto Genoma Humano. No caso de Edison, é notório o fato deste cientista não ter se preocupado em estudar a natureza do fenômeno elétrico, mas apenas em desenvolver uma enorme gama de aparelhos que pudessem ser úteis. Tanto em um caso como em outro, a visão de ciência essencialmente aplicada foi essencial para descobertas revolucionárias.

A terceira forma de utilização da ciência, que combina pesquisa fundamental e aplicada, poderia ser exemplificada pelos trabalhos de Louis Pasteur. Por possuir ligações familiares com produtores leiteiros, Pasteur esteve inicialmente inclinado à trabalhos de natureza essencialmente aplicada. Contudo, com o intuito de melhor compreender a contaminação do leite e outros alimentos, Pasteur rapidamente iniciou estudos de caráter fundamental para encontrar as razões para tal e dos fenômenos microbiológicos em geral, bem como para as causas de doenças infecciosas e da natureza quiral do átomo de carbono. Mesmo assim, Pasteur nunca perdeu de vista a aplicação prática de seus conhecimentos na indústria de alimentos, por exemplo, que consequentemente levou à descoberta do método de pasteurização do leite.

Outra área que combina conhecimentos de pesquisa fundamental e aplicada é a descoberta de novos medicamentos. Inúmeros cientistas estão atualmente envolvidos em projetos para melhor entender o funcionamento do sistema imunológico, de resistência de microorganismos e na descoberta de novas substâncias farmacologicamente ativas, para que estes conhecimentos possam contribuir para melhorar a qualidade de vida de uma forma geral. Particularmente neste último caso, a natureza inter- e multidisciplinar da pesquisa em saúde humana é tão ampla que deixou de ser tema de áreas exclusivas do conhecimento e passou a integrar ecologia, biofísica, medicina, farmacologia, antropologia, química, bioquímica e biologia.

O ponto fundamental é que, tanto a ciência aplicada como a ciência fundamental mantêm entre si laços bastante estreitos para serem separadas como se fossem dois ramos extremos da atividade científica. Tal separação foi proposta por Vanevar Bush, quando da elaboração de um plano nacional norte-americano para o financiamento de pesquisa científica, solicitado pelo então presidente Franklin D. Roosevelt após a 2a Guerra Mundial. Além do plano de Bush ter sido bastante criticado pelos seus pares, o plano sugeria que se fortalecessem estudos principalmente na área de agricultura, engenharia mecânica e para a fabricação da gasolina sintética, a qual, acreditavam, estaria sendo desenvolvida pelos alemães. Em essência, a comissão que elaborou o plano solicitado por Roosevelt priorizou estudos
que já vinham sendo desenvolvidos, pois é praticamente impossível prever novas e importantes descobertas. Dentre aquelas que surgiram nos anos seguintes (e que passaram “despercebidas” à referida comissão) estão os antibióticos, então já descritos por Fleming, mas completamente ignorados, os jet aircraft (“carros flutuadores”), os foguetes e a exploração espacial, os computadores, o transístor, a MASER, a engenharia genética, entre outras.

O estabelecimento de prioridades para a pesquisa científica é uma realidade. Do mesmo modo, os próprios cientistas não devem perder a convicção de que a pesquisa fundamental é absolutamente necessária. Como complemento, voltar os olhos para a aplicabilidade do conhecimento científico deve ser uma das metas daqueles que são responsáveis pela formação de profissionais altamente qualificados, bem como pela geração de conhecimento.

A integração universidade-setor privado, porém, ainda é vista com extrema cautela por diversos setores da comunidade científica. Talvez por falta de experiência, acredita-se que o desenvolvimento de projetos de ciência aplicada deixará de lado a busca de questões fundamentais. O caso de Pasteur mostra que não é esse o caso. Cabe ao cientista combinar os elementos necessários, sejam eles de caráter fundamental ou aplicado, para o desenvolvimento de um projeto em particular. Também, cabe à iniciativa privada levantar questões e problemas, bem como estimular a busca de soluções de caráter aplicado que possam contribuir para o aprimoramento de um setor produtivo mais competitivo, menos imediatista e que se integre de forma muito mais efetiva à comunidade científica e ao desenvolvimento da nação.

Para terminar, aproveitaria para citar o livro, “Science and Society”*, o qual reúne uma série de palestras proferidas por ganhadores de prêmios Nobel por ocasião das “John C. Polanyi Nobel Laureates Lectures” em 1994 na Universidade de Toronto. Os textos contém menções interessantes sobre a questão ciência basica e ciência aplicada:

“Nature speakes in many tongues. They are all alien. The task of the scientist pursuing “curiosity-driven” research is to try to discover something of the vocabulary and the grammar of one or more of these languages. To the extent that the scientist succeeds, we gain the ability to decipher many messages that nature has left for us, blithely or coyly. No matter how much human effort and money we might invest to solve a practical problem in science or technology, failure is inevitable unless we can read the answers that nature is willing to give us. The basic research that provides such understanding is the most practical investment we can make.” (no capítulo The Shape of Molecular Collisions, por Dudley R. Herschbach, prêmio Nobel de química de 1986).

“Science and technology can bring about changes within a decade or so. Young people can expect to see profound changes in their lifetime. No one knows now what they will be – making it difficult to plan for them – but they will take place, and science will play a major role in producing them. How can we devise a plan to accomplish important tasks if we do not know where the changes will be? A look ahead reveals nothing very clearly about presently unknown and new discoveries. Contrary to what most people believe, scientists do not possess the ability to predict the future, despite their intensive knowledge.” (no capítulo Unpredictability in Science and Technology, pelo prêmio Nobel de física de 1964, Charles H. Townes).

“We do not know exactly what research will pay off, what will build up, but we do know, historically, that important discoveries will occur and that they will have a major effect on technology and business.” (idem)

 “Society must be interested in ideas and must value them; it must be excited by them and by new discoveries. We must accept a long-range approach. We must accept failures by encouraging trial and error, because no person can plan what scientific research is going to be successful. We must support people in a variety of situations, especially people with different ideas, because the different ideas are most likely to lead to something new. There must be a diversity of approach, a diversity of situations, a diversity of people. There must also be a lot of interaction among them so they can exchange their thoughts.
The places where the activity is high, where many scientists are interacting, where there are outstanding people, where many factors are just right – those are the circumstances that are going to pay off the most. That doesn’t mean we don’t need the others, but we must see that there are places where the important factors all add up; that’s where we can expect to find the most intensive productivity.” (idem)

*(editado por Martin Moskovits, editora da Universidade de Toronto, 1995, ISBN 0-88784-589-4)

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