Bactérias halofílicas de 30.000 anos

A sobrevivência de microrganismos em ambientes extremos constitui uma característica incomum de bactérias e de outros tipos de seres microscópicos, muitas vezes denominados de micróbios.

Abre parêntese: “micróbio” é uma designação bastante antiga, até mesmo “out-of-date”, de microrganismos como bactérias, fungos, cianobactérias, além de inúmeros outros organismos que só podem ser observados em microscópios. O termo micróbio deveria ser definitivamente abandonado, pois tem um significado muito geral, que não quer dizer nada. É muito melhor que se especifique a qual tipo de microrganismo se refere: se bactéria, fungo, ou outro qualquer. Fecha parêntese.

Fato é que um tipo particular de bactérias é o das halófilas, ou halofílicas, bactérias que se desenvolvem em ambientes com alta concentração de sais, particularmente cloreto de sódio (NaCl). Vem daí o seu nome, uma vez que cloro é um halogênio (halo: de halogênio; filo: afinidade). A presença de bactérias halófilas já foi detectada em sedimentos ricos em sais, datados de mais de 250 milhões de anos. Porém, a viabilidade celular de tais bactérias tem sido continuamente criticada (ou seja, se estas bactérias ainda permaneceram vivas depois de todo este tempo), levantando-se a hipótese de que uma manipulação menos cuidadosa teria levado à contaminação destas amostras com bactérias “atuais” e vivas.

Em estudo publicado neste ano na revista Geology, pesquisadores da State University of New York conseguiram isolar e cultivar bactérias que estavam até então “dormentes”, na forma de esporos, de minerais ricos em sais datados de entre 22.000 a 34.000 anos. Junto com tais bactérias os pesquisadores encontraram fragmentos de algas do gênero Dunaliella. O tamanho das células das bactérias encontradas, muito menor do que o tamanho “normal” das células de bactérias comuns, indica que as bactérias que permaneceram todo este tempo em contato com altas concentrações de sais entraram em estado de desnutrição extrema (starvation), podendo manter-se unicamente por se aproveitar da matéria orgânica fornecida pelas algas com as quais permaneceram em contato. As bactérias isoladas mostraram ser do grupo das Archea, um dos grupos mais primitivos de microrganismos, e foram classificadas como pertencentes aos gêneros Halorubrum, Natronomonas e Haloterrigena. Em seu trabalho os autores tomaram cuidados extremos para evitar qualquer tipo de contaminação com bactérias atuais, e comprometer suas análises.

Microfotografias em branco e preto, e em cores, de células de Dunaliella em fissuras com fluidos em cristais salinos. A: células de Dunaliella (flechas brancas) e células de procariontes (flechas pretas) obtidas em sedimentos de 17,8 metros da superfície (e com cerca de 34.000 anos); B: carotenos cristalinos incrustantes e saindo de células de Dunaliella (14,5 me da superfície, antigas de 26.000 anos), F.I.: limite da inclusão fluídica produzida por Dunaliella; C: células de Dunaliella de 17,8 metros de profundidade (34.000 anos), algumas com carotenos incrustados.

O estudo começou com a coleta de amostras de sedimentos de 90 m de profundidade, na região do Vale da Morte na Califórnia (EUA), contendo altas concentrações de sais. Foram obtidos cristais com orifícios muito pequenos, alguns com menos de 1 micrometro de abertura. Fluidos coletados destes orifícios apresentaram células de vários procariontes (microrganismos desprovidos de membranas dentro de suas células, ou seja, membranas que delimitam o núcleo celular, por exemplo, como é o caso de bactérias). Além disso, os pesquisadores verificaram que tais microrganismos são abundantes nos fluidos de cristais de sais da região em que foram coletados.

Para se ter uma idéia da concentração da solução de sais utilizada pelos pesquisadores para o crescimento das bactérias isoladas, de até 4,3 moles de sal/litro, a concentração de NaCl em uma solução fisiológica (utilizada para colírios, nariz e tratamento de diarréia em crianças, p. ex.) é de 0,15 moles/litro. Não é qualquer tipo de bactéria que cresce em um meio de crescimento contendo uma concentração de sais tão alta. Somente bactérias muito bem adaptadas a um meio tão salino crescem nestas condições. Esta concentração de sais também evita a contaminação por bactérias “atuais”. Os autores processaram 881 cristais coletados em sedimentos do Vale da Morte, e conseguiram isolar bactérias a partir de 5 destas amostras. As bactérias isoladas demoraram 3 meses para “aparecer” nas placas de Petri (onde as bactérias são isoladas em laboratório). Uma vez que conseguiram isolar as bactérias, os pesquisadores analisaram uma parte do seu RNA ribossômico, chamada de 16S. Esta região do RNA ribossômico é muito utilizada para a classificação de bactérias. Estas análises forneceram informações sobre a classificação das bactérias isoladas, como partencentes ao grupo das Archea halofílicas.

Os autores também encontraram nos mesmos cristais salinos fragmentos de algas do gênero Dunaliella, que são conhecidas por produzir glicerol para manter o equilíbrio osmótico destas algas no ambiente salino em que se encontram. Este mesmo glicerol pode servir de fonte de carbono a organismos procariontes que vivem associados a estas algas. De fato, os pesquisadores observaram que as bactérias halofílicas isoladas dos cristais coletados são capazes de crescer em placas contendo unicamente glicerol como nutriente. Além disso, também verificaram que as algas Dunaliella presentes nos cristais secretam material intracelular para o interior das fissuras dos cristais quando se encontram na presença das bactérias. O fluido secretado pelas algas pôde ser visualizado sob condições naturais, pois contém carotenos, que são substâncias coloridas, visíveis até mesmo a olho nú, que cristalizam quando em contato com os cristais salinos. Segundo os autores, a quantidade de glicerol liberada no fluido de uma única célula de Dunaliella é capaz de ser utilizada por uma única célula de procarionte para manter seu DNA em boas condições durante 12 milhões de anos.

Os autores concluiram seu trabalho afirmando que fissuras em cristais salinos contendo fluidos com material orgânico constituem microambientes ideais para a longa sobrevivência de microrganismos halofílicos. Isso porque a constituição salina destes cristais diminui a probabilidade de ocorrência de danos no DNA dos microrganismos ali presentes. Também verificaram que tais microrganismos não entram em “estado de dormência”, mas sim em miniaturização, de maneira a diminuir ao máximo suas necessidades metabólicas, para o qual somente glicerol produzido por algas basta para a sua sobrevivência por longos períodos de tempo.

A referência completa deste trabalho é Brian A. Schubert, Tim K. Lowenstein, Michael N. Timofeeff and Matthew A. Parker, How do prokaryotes survive in fluid inclusions in halite for 30 k.y.?, Geology, 2009, 37, 1059-1062. Veja aqui.

Agradeço ao Prof. Brian Schubert, quem gentilmente me enviou uma cópia de seu trabalho (I wish to thank prof. Brian Schubert who kindly sent me a pdf copy of his article). Este é um belo exemplo de processo adaptativo via seleção natural, ocorrido há milhares de anos, que favoreceu a “permanência” de apenas algumas espécies de bactérias em ambientes muito adversos.

Discussão - 1 comentário

  1. Joâo Carlos disse:

    Ponto para Fred Hoyle e para a panspermia... 😉

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