Por: Leonardo Dias Nunes
O ano de 2022 termina e consolida um ano de minha participação no Blog Sobre Economia. Durante esse período me propus a escrever artigos relacionados à história do desenvolvimento econômico no Brasil na segunda metade do século XX. Nesse artigo, apresento algumas das referências relevantes que ocupam posições distintas nessa área do conhecimento e ressalto que tais referências se diferenciam no que tange aos seus posicionamentos sobre a superação do subdesenvolvimento.
A apresentação desse conjunto de leituras foi dividida em três partes. Apresento referências sobre as possibilidades e impossibilidades de superação do subdesenvolvimento no Brasil respectivamente na primeira e na segunda parte e, na terceira, apresento uma referência que trata da busca pela transição e construção de um sistema social pós-capitalista.
Possibilidades
Iniciei minha participação no Blog com o artigo sobre as dimensões do progresso em Juscelino Kubitschek. Artigo resultante da pesquisa que buscou apreender e reconstituir, através das Mensagens ao Congresso Nacional e dos Discursos de Juscelino Kubitschek, como a noção de progresso foi entendida e disseminada à época [1]. Posteriormente, junto a Ulisses Rubio Urbano da Silva, publicamos o artigo A inflação no Brasil durante a segunda metade do século XX com o objetivo de mostrar as diferentes expressões do fenômeno inflacionário na economia brasileira e, com o objetivo futuro que ainda se pretende materializar, de escrever sobre a inflação originada no contexto posterior à pandemia [2]. Em seguida, publiquei um artigo em duas partes sobre a relação entre a produção do conhecimento científico e a superação do subdesenvolvimento de acordo com o pensamento do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto [3].
Esses artigos buscaram reconstituir, por diferentes recortes, um período histórico em que era entendido como possível superar o subdesenvolvimento [4]. Os pensadores que se debruçaram sobre essa temática foram chamados de intérpretes do Brasil e tinham em comum o pressuposto de que, para transformar a realidade brasileira, primeiro seria necessário compreender a sua estrutura econômica, social, política e cultural. A compreensão das diferentes interpretações do Brasil é um conhecido campo de pesquisa e o livro Intérpretes do Brasil – clássicos, rebeldes e renegados dele faz parte. Seus editores apresentaram a diversidade intelectual que foi criada após a década de 1920 e os diferentes tipos de críticas realizadas por esses intérpretes ao processo de desenvolvimento econômico brasileiro [5].
Ainda que de forma muito distinta ao que ocorria na segunda metade do século XX, a discussão sobre as possibilidades e os caminhos para o desenvolvimento econômico continua sendo realizada atualmente. No primeiro capítulo do livro A economia brasileira de Getúlio a Dilma – novas interpretações, Carlos Pinkusfeld Bastos e Bruno Rodas de Oliveira [6] apresentam o contexto histórico e os aspectos teóricos da teoria do desenvolvimento, as experiências concretas de desenvolvimento e as críticas heterodoxas e marginalistas à teoria do desenvolvimento. Os autores também apontam para os desafios existentes para as políticas indutoras do desenvolvimento no século XXI. Já Paulo Nogueira Batista Jr., em seu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém [7], defende propostas para um projeto de desenvolvimento nacional no século XXI, apresenta a relevância do Brasil no cenário internacional e critica enfaticamente a alienação intelectual existente no pensamento econômico nacional.
Impossibilidades
Nem todos os pensadores brasileiros defendiam que a superação do subdesenvolvimento era possível. Entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970 surgiram produções teóricas que defendiam a impossibilidade de superação do subdesenvolvimento nos marcos do capitalismo, como é o caso da teoria marxista da dependência [8].
A reflexão sobre a impossibilidade de superação do subdesenvolvimento continua atual e pode ser apreendida em trabalhos de autores de diferentes orientações teóricas. No livro O colapso do figurino francês, Nildo Ouriques parte da teoria marxista da dependência para criticar as ciências sociais no Brasil devido à ausência da discussão do nacionalismo popular e para apontar para os limites da política econômica realizada na primeira década dos anos 2000 [9]. Outros autores dessa orientação teórica publicaram recentemente um dossiê sobre a atualidade da teoria da dependência [10].
Continuando no campo da impossibilidade de superação do subdesenvolvimento, vale citar o livro O novo tempo do mundo, obra em que Paulo Arantes [11] realizou uma profunda reflexão sobre o tempo histórico da modernidade. Para o autor, atualmente vivemos no tempo da emergência, o tempo da conjuntura perene. Esse tempo apresenta características opostas ao período do pós-guerra, o qual o autor considera ter sido um período de trégua da crise do progresso, um momento histórico em que o consenso keynesiano abriu a possibilidade para ações e reflexões sobre a superação do subdesenvolvimento no Brasil.
Com a entrada da sociedade brasileira em uma nova crise na segunda década do século XXI, muitos trabalhos foram publicados com o objetivo de analisar as diferentes dimensões dessa crise. Uma dessas dimensões dialoga com a impossibilidade do desenvolvimento capitalista conduzido por uma política de conciliação de classes realizadas por governos de centro-esquerda no período neoliberal e apresenta os paradoxos criados por esses mesmos governos ao subordinarem as políticas sociais ao capital financeiro [12].
Transições
A reconstituição das produções intelectuais que argumentaram sobre as possibilidades e as impossibilidades de superação do subdesenvolvimento, por um lado, fazem parte da história do pensamento econômico. Por outro lado, as produções atuais fazem parte do debate contemporâneo.
Nesse debate ainda há um conjunto de autoras e autores que refletem sobre as possíveis formas de transição para um sistema econômico pós-capitalista. Sobre esta temática, vale a pena conhecer o filósofo argentino Enrique Dussel, autor que em 1992 publicou a obra 1492 – El encubrimiento del outro – hacia el origen del “mito de la Modernidad”. Nesse livro, Dussel critica a falácia desenvolvimentista fundamentada no colonialismo intelectual. Mais recentemente, nos dois volumes da obra Política da libertação, Dussel mostra a necessidade de se realizar um giro descolonizador para que se busque ir além da modernidade, pois esse período histórico não conseguiu e nem conseguirá realizar as suas promessas de transformação social [13].
Considerações finais
Ao iniciar a escrita desse artigo, eu já sabia que apresentaria um trabalho incompleto, pois entre o Brasil de Celso Furtado e o de Paulo Nogueira Batista Jr. há uma infinidade de autoras e autores para serem apresentados. De Ruy Mauro Marini até Lena Lavinas há uma imensa quantidade de crítica ao modo de produção capitalista para ser organizada. Ademais, Enrique Dussel não está sozinho na busca por uma transição para uma sociedade pós-capitalista já que não faltam pensadoras e pensadores buscando práticas e construindo teorias em busca da superação das contradições existentes no interior da sociedade capitalista.
As referências citadas acima auxiliam na construção de uma teia interpretativa que abrange, por um lado, a reconstituição das possibilidades e das impossibilidades de superação do subdesenvolvimento e, por outro, o conhecimento das possíveis transições que estão sendo vividas e analisadas atualmente.
As leituras sobre a transformação econômica e social foram apresentadas acima de forma bastante sintética. Para observar de forma mais palpável os problemas do subdesenvolvimento em um texto não acadêmico e não por isso menos relevante, vale a leitura da obra Quarto de despejo escrita por Carolina Maria de Jesus [14], autora que demonstrou com objetividade e sensibilidade como o processo de industrialização e urbanização levava os frutos do progresso apenas para uma pequena parcela da sociedade brasileira. A fome, as moradias precárias, a violência urbana, o racismo, os limites da infraestrutura pública e outras características da sociedade brasileira foram destacadas por Carolina Maria de Jesus ao final da década de 1950. Enquanto os problemas citados pela autora ainda existirem no Brasil contemporâneo, existirá a necessidade de se atualizar as versões desse artigo com o intuito de questionar seriamente as possibilidades e as impossibilidades de superação do subdesenvolvimento e de refletir com criatividade e responsabilidade sobre projetos de transição para além da modernidade.
Créditos da fotografia que ilustra este artigo: Pexels.
Notas
[1] O artigo do Blog pode ser lido aqui e o artigo resultante da tese (NUNES, 2022a) pode ser lido aqui.
[2] Esse artigo pode ser lido aqui. Para uma interpretação do processo inflacionário no período posterior à pandemia de covid-19, ver aqui o artigo de (VAROUFAKIS, 2022).
[3] Esses artigos podem ser lidos aqui e aqui. Para mais informações sobre esse autor, acesse o site da Rede Álvaro Vieira Pinto aqui.
[4] Para duas referências sobre o conceito e o processo de subdesenvolvimento, ver (FURTADO, 1961) e (PINTO, 1963). Para o debate existente entre 1930 e 1964, ver (BIELSCHOWSKY, 2000). Para as relações entre Brasil e Estados Unidos nesse período, ver o livro (YOUNG, 2014) e para a resenha de (SILVA, 2017) desse livro acesse aqui.
[5] Para mais informações sobre o livro, ver (PERICÁS; SECCO, 2014). Duas resenhas do livro podem ser acessadas aqui (BICHIR, 2015) e aqui (NUNES, 2016).
[6] Para mais informações sobre esse tema, ver (BASTOS; OLIVEIRA, 2021).
[7] Para mais informações sobre o livro, ver (BATISTA JR., 2019). A resenha (NUNES, 2022b) desse livro pode ser acessada aqui.
[8] Para uma referência sobre esse tema, ver (MARINI, 2005).
[9] Para mais informações sobre o livro, ver (OURIQUES, 2014). A resenha (NUNES; SANTOS, 2015) desse livro pode ser acessada aqui.
[10] Para mais informações sobre o dossiê, ver a primeira parte aqui e a segunda parte aqui.
[11] Para mais informações sobre esse livro, ver (ARANTES, 2014).
[12] Para mais informações sobre esses debates, ver os livros (SAFATLE, 2017), (LAVINAS, 2017) e (FAUSTO, 2017). Uma resenha desses livros foi realizada em (NUNES, 2019).
[13] Para mais informações sobre os livros citados, ver (DUSSEL, 1994), (DUSSEL, 2014) e (DUSSEL, 2020). Para mais informações sobre o autor, acesse o site do autor aqui. A resenha (NUNES; GABIONETA, 2021) do livro Política da libertação 1: história mundial e crítica pode ser acessada aqui.
[14] (JESUS, 2014).
Referências
ARANTES, Paulo Eduardo. O novo tempo do mundo: e outros ensaios sobre a era da emergência. 1a. ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
BASTOS, Carlos Pinkusfeld; OLIVEIRA, Bruno Rodas. Políticas econômicas, teorias econômicas e contextos sociais. In: ARAUJO, VICTOR LEONARDO DE; MATTOS, FERNANDO AUGUSTO MANSOR DE (Org.). A economia brasileira de Getúlio a Dilma: novas interpretações. 1a. ed. São Paulo: Hucitec, 2021. p. 21–51.
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BICHIR, Maíra Machado. Resenha: Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. Crítica marxista, v. 41, p. 191–193, 2015.
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DUSSEL, Enrique. Política da libertação 1: história mundial e crítica. Passo Fundo: IFBE, 2014.
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FAUSTO, Ruy. Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.
JESUS, Maria Carolina De. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.
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