A retomada da hegemonia do dólar e o reajuste industrial das empresas norte-americanas (parte 3)

Siderúrgica norte-americana, Bethlehem Steel Works, abandonada (foto com alterações: Enciclopédia Britânica, acesso: 31/08/2024. Disponível em: https://www.britannica.com/place/Rust-Belt.) Presidente Ronald Reagan - 1981-1989 (foto com alterações: Mark Reinstein, disponível em Shutterstock).

Introdução

Dando continuidade à discussão anterior sobre a retomada da hegemonia do dólar no âmbito da economia internacional, buscaremos mostrar uma das vantagens obtidas com o movimento perpetrado pelo banco central norte-americano (Fed), que elevou as taxas juros da dívida pública a partir de 1979, promovendo uma fuga para o dólar e confirmando novamente a moeda como meio monetário central nas transações financeiras e comerciais internacionais. A vantagem a que nos referimos é o rearranjo da produção industrial norte-americana. Neste texto, portanto, ainda não nos aprofundaremos em outros desdobramentos financeiros decorrentes da ação sobre a taxa de juros estadunidense, mas buscaremos mostrar consequências relevantes para o desenvolvimento da grande indústria norte-americana após este evento. Faremos, dessa maneira, um breve panorama do pós-guerra, da crise subsequente e então discutiremos as mudanças em questão.

O desafio à grande indústria norte-americana

Logo após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em termos industriais, os Estados Unidos foram a única nação industrialmente desenvolvida que restou intacta em seu território após o conflito. Essa indústria havia inclusive, em função do esforço de guerra, renovado tecnologias em termos de bens e serviços, produtividade e processo de fabricação. O sistema financeiro, por sua vez, despois da Crise de 1929[1], havia sido regulado e passou, em grande medida, a desempenhar um papel mais subalterno de apoio ao financiamento da expansão industrial. Como já levantado em texto anterior[2], com o estabelecimento do dólar-ouro como moeda internacional em 1944[3], empresas norte-americanas – que faturavam em dólares – não necessitavam de acúmulo prévio de moeda estrangeira para penetrar nos mercados europeu e asiático naquele que seria o bloco capitalista reconstruído. A moeda em que faturavam já era a moeda internacional. A reconstrução dos países capitalistas no pós-guerra contou, por sua vez, com um suporte econômico e financeiro substancial por parte do governo norte-americano[4], permitindo a recuperação das empresas locais (europeias e japonesas), dada a política de apoio à restauração do capitalismo em contraposição à recuperação dos países do bloco comunista. Este é o chamado período da Guerra Fria, mas também o dos anos dourados[5], em função da prosperidade alcançada com o crescimento econômico dos Estados Unidos e dos países que vinham se recuperando da destruição causada pela Segunda Guerra.

No início dos anos 1970, depois de duas décadas de avanço econômico, as empresas europeias e japonesa haviam se recuperado e vinham ampliando a concorrência pelos mercados de bens e serviços industrializados. Passaram, assim, a competir com empresas norte-americanas, ofertando diversos produtos e serviços de tecnologia mais avançada e custo relativamente mais baixo[6]. Nestes países, a reconstrução do pós-guerra foi realizada em bases tecnologicamente mais avançadas que as anteriores ao conflito. Os anos 1970, portanto, foram um período desafiador para o poder industrial americano. A consequência mais visível nos EUA era um crescente déficit comercial e, em média, uma redução nas taxas de lucro das empresas industriais norte-americanas.

O que a questão da retomada do poder financeiro tem a ver com a questão industrial?

Como buscamos apresentar anteriormente[7], na década de 1970, também existiu um questionamento por parte dos países centrais[8] em relação ao uso do dólar (uma moeda emitida por um só Estado) como moeda internacional para a grande maioria das transações comerciais e financeiras internacionais. Ao reafirmar a centralidade do dólar dentro do sistema financeiro, e para o comércio internacional, com uma forte e deliberada alta de juros a partir de 1979, o governo dos Estados Unidos não só tornou o dólar muito procurado, dada sua valorização contínua, mas também, no período que se seguiu, tornou papéis financeiros comercializados no mercado norte-americano muito mais atraentes já que denominados e remunerados naquela moeda. Há, como consequência, um afluxo crescente de capitais para dentro do mercado financeiro norte-americano que dali por diante passaria a financiar a renovação produtiva e tecnológica industrial estadunidense.

Num movimento em que se somaram o exercício do poder sobre a disponibilidade de moeda internacional (o juros sugaram dólares para a economia americana) e a pressão pela liberalização econômica global, o governo dos EUA gestou a renovação industrial norte-americana. Depois da alta de juros, num momento imediatamente posterior, o governo dos Estados Unidos passaram a exercer fortes pressões políticas pela desregulação e abertura financeira e pela abertura comercial[9] que permitiriam que as empresas transnacionais norte-americanas mudassem sua estratégia produtiva. Com base na nova fonte de financiamento, puderam estabelecer uma estratégia de relocalização das plantas produtivas para regiões periféricas (no sentido de explorar salários e recursos a preços mais baixos), de terceirização de etapas de menor valor agregado e de renovação das tecnologias de seus bens, serviços e processos produtivos.

Em grande medida, a liberalização comercial associada a liberalização e desregulação financeira, que seriam fortemente apoiadas pelo governo norte-americano a partir dos anos 1980, permitiu que as empresas daquele país investissem seu capital em praticamente qualquer região do mundo, explorando uma mão de obra infinitamente mais barata e contanto com o retorno de lucros e capitais sem impedimentos legais. A liberalização comercial, além de favorecer a venda dos bens finais que passaram a ser produzidos na periferia, facilitava o acesso de matérias primas que poderiam vir de qualquer região do mundo, permitindo a construção de estabelecimentos fabris de grande dimensão, proporcionando ganhos crescentes de escala[10]. O resultado destas iniciativas foi a melhoria e o barateamento dos bens produzidos nestas novas regiões. No âmbito tecnológico, os centros de pesquisa e desenvolvimento permaneceram em solo nacional (nos países centrais)[11], reforçados pelo afluxo de capitais que crescia com o depósito dos novos superávits originários das novas regiões de produção industrial.

As empresas americanas, com o apoio do Estado e vinculadas aos recursos de um agigantado setor financeiro privado[12], puderam assim retomar a liderança em vários setores industriais, criando ao mesmo tempo novos produtos e mercados como na área de tecnologia da informação[13]. Tal processo foi percebido e acompanhado pelos concorrentes europeus e asiáticos. Verifica-se, portanto, nos países centrais, reforço na participação de mercado e ampliação da acumulação de capital no setor financeiro e produtivo, conformando novos conglomerados produtivos-financeiros ao mesmo tempo em que há um processo contínuo de desindustrialização nos próprios países desenvolvidos.

Conclusão

Em suma, as transformações por que passou a indústria norte-americana respondiam, por um lado, ao desafio em termos de custo e de tecnologia imposto pelas empresas europeias e japonesas recuperadas do pós Segunda Guerra Mundial e, por outro, às possibilidades propiciadas pelo exercício de poder do governo americano sobre o dólar e sobre o comércio mundial que, ao mesmo tempo, reforçou as empresas norte-americanas financeiramente, permitiu acesso a matérias primas mais baratas e abriu mercados para sua expansão. Esse processo culmina com uma nova fase de acumulação de capital dada, em grande medida, pela grande empresa norte-americana agora intimamente vinculada e comandada pelo setor financeiro no que se refere a sua expansão produtivo industrial a nível global.

Referências:

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[1] Em 1933, por meio do Glass-Steagall Act, o governo norte-americano estabeleceu forte regulação sobre o setor financeiro daquele país.

[2] Ver texto: De onde vem a hegemonia do dólar? (parte 1)

[3] Ver acordos de Bretton Woods de 1944.

[4] O Plano Marshall, a partir de 1948, é o mais conhecido dos programas de ajuda norte-americana para os países afetados pela guerra.

[5] Ver Hobsbawn (1995).

[6] Nos Estados Unidos, a massa de estruturas produtivas constituídas durante a guerra ainda passava pelo devido processo de depreciação antes que fosse renovada.

[7] Ver texto: Crise do dólar e retomada da hegemonia financeira americana (parte 2).

[8] Aqui consideramos os países do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália e Japão)

[9] A partir do governo de Ronald Reagan (1981-1989), os Estados Unidos passam a pressionar, mediante o uso da alta de juros, os governos de países centrais e periféricos para que aderissem ao receituário econômico liberalizante, que inclui a desregulação financeira, a livre circulação de capitais e o livre fluxo de bens e serviços. Trata-se da chamada agenda neoliberal. Ver Young (2018).

[10] Ganhos crescentes de escala: referem-se a uma situação em que, à medida que uma empresa ou organização aumenta a sua estrutura produtiva, o custo médio por unidade produzida tende a diminuir. Há, em princípio, numa única e grande unidade concentradora de recursos uma melhor utilização destes, proporcionando uma redução significativa nos custos de produção.

[11] Nos países centrais, há, portanto, elevação no nível de emprego em setores de mão de obra altamente especializada, enquanto maior nível de desemprego nas vagas de manufatura.

[12] Em função do espaço limitado que temos para um maior aprofundamento, podemos dizer que, a partir deste período, em função de um maior controle sobre os recursos financeiros por parte do setor financeiro, as empresas passam a se desenvolver mediante uma lógica de ganhos mais financeira do que produtiva, ou seja, a taxas de lucro pré-definidas e prazos mais curtos para a realização desses ganhos. O que muitas vezes desconsidera limitações físicas e temporais de realização produtiva. As empresas passam também operar e obter ganhos diretamente no mercado financeiro, fundindo-se e/ou tornando-se predominantemente empresas financeiras.

[13] Em termos tecnológicos, este setor levou à assim chamada Terceira Revolução Industrial, ou seja, ao aparecimento das novas tecnologias na área de informação, tratamento de dados e telecomunicações que permitiram elevados aumentos na produtividade da economia mundial.

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