
Houve um período da minha graduação em Letras que me tornei extremamente frustrado com a área. Vou tentar explicar o porquê. Quando uma pessoa se forma em Medicina, ele recebe uma ‘certificação’ do Conselho Regional de Medicina. Esse documento simples assegura que somente pessoas certificadas pelo conselho podem exercer a profissão de médico. Apesar das receitas caseiras da mamãe para curar furúnculo e dor de cabeça, tenho certeza que o CRM não daria à ela uma certificação para atuar como médica. Ademais, o cara que se forma em medicina passa grande parte da sua vida estudando e se preparando tecnicamente para exercer a profissão. O reconhecimento é justo!
Agora a Lingúística! Essa ciência (sim: CIÊNCIA) trata dos diversos aspectos relacionados à linguagem humana. Uma pessoa formada em Linguística supostamente tem o conhecimento técnico dos aspectos que explicam por que uma palavra significa o que ela significa, por que a gramática é do jeito que é, como uma língua evolui, etc. Assim como o médico tem conhecimento técnico e profissional para atuar em assuntos de medicina, o lingüista tem conhecimento técnico e profissional para tratar de assuntos relacionados à linguagem.
A minha frustração surgiu exatamente por que a coisa não funciona assim na Linguística. O fenômeno conhecido como “
Illusion of Explanatory Depth” parece ser bem mais proeminente na Linguística. Todo mundo parece ser
expert em linguagem. Todo mundo — principalmente as pessoas formadas em
alguma coisa — sabe tudo sobre Português, gramática, como que a língua evolui, etc. Eis um fato recente que ilustra o que quero dizer.
Começou a circular em Março pela internet, o seguinte texto que reproduzo na íntegra:
Tenho notado, assim como aqueles mais atentos também devem tê-lo feito, que a candidata Dilma Roussef e seus apoiadores, pretendem que ela venha a ser a
primeira presidenta do Brasil, tal como atesta toda a propaganda política veiculada na mídia.
Presidenta???
Mas, afinal, que palavra é essa totalmente inexistente em nossa língua?
Bem, vejamos:
No português existem os particípios ativos como derivativos verbais. Por exemplo: o particípio ativo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendigar é mendicante… Qual é o particípio ativo do verbo ser? O particípio ativo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade.
Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.
Portanto, à pessoa que preside é PRESIDENTE, e não “presidenta”, independentemente do sexo que tenha. Se diz capela ardente, e não capela “ardenta”; se diz estudante, e não “estudanta”; se diz adolescente, e não “adolescenta”; se diz paciente, e não “pacienta”.
Um bom exemplo do erro grosseiro seria:
“A candidata a presidenta se comporta como uma adolescenta pouco pacienta que imagina ter virado eleganta para tentar ser nomeada representanta.
Esperamos vê-la algum dia sorridenta numa capela ardenta, pois esta dirigenta política, dentre tantas outras suas atitudes barbarizentas, não tem o direito de violentar o pobre português, só para ficar contenta”.
Por favor, pelo amor à língua portuguesa, repasse essa informação…
Bobagem! Lembro que postei um comentário obviamente rejeitando o posicionamento do texto, mas recebi uma resposta dizendo que “foi legal a minha problematização, mas linguagem é utilizada como estratagema político”.
??? (whatever that means….)
Mas cá pra nós, uma vez que a internet é terra de ninguém e está mesmo cheia de bobagens como essa, não liguei muito! Eis que hoje, vejo a seguinte coluna publicada no jornal O Tempo em Belo Horizonte — quem assina a coluna é o jornalista Vittorio Medioli. Reproduzo a coluna na íntegra.
“Entre inovar para pior e manter a postura correta, a segunda hipótese será sempre a melhor. Uma marca, uma diferenciação que a pessoa decida adotar, precisa ser sopesada e analisada por diferentes ângulos, especialmente quando se trata de um Chefe-de-Estado – mais alto exemplo para nação.
A presidente da República decidiu se apresentar “presidenta” Dilma Rousseff. Contrariando regras gramaticais, que destoam até aos ouvidos mais rudes.
A gramática do nosso vernáculo é clara. Quando se deseja identificar uma pessoa para exercer o que o verbo expressa, devem-se adicionar à raiz verbal os sufixos: “ante”, “ente” ou “inte”, independentemente do indivíduo ser de sexo masculino ou feminino.
Portanto, no caso de Dilma se adota “presidente”, com a raiz de presidir e o sufixo “ente”.
Há quem defenda o termo como uma espécie de “licença poética” – permissão dada ao autor para transgredir regras gramaticais como concordância e regência. Não cabe a uma definição de cargo, recorrer a poesia ou a prosa para transgredir a gramática. Aqui tem o certo ou errado, sem espaço para licenças e devaneios.
A definição de presidente Dilma, trata-se do uso correto do vernáculo..
Para quem tem proximidade e familiaridade com o latim, que originou a língua portuguesa, a “presidenta” chega a ficar ainda mais estridente, já que depois de três mil anos de história e de milhões de tratados não se encontra uma variante mais incorreta para uma Chefe de Estado.
Na assessoria da augusta presidente, estranhamente, o erro é aceito e repetido. O chefe tem sempre razão! Esse é primeiro mandamento quando ele ou ela é tão resoluto como Dilma.
Se a moda pegar teremos que estender a novidade para inúmeras designações: mulher gestante será gestanta, a adolescente, adolescenta, a estudante, estudanta e a parturiente de “parturienta”, tudo para rimar com presidenta.
Peguei uma conversa de um apedeuta que concluía com marretadas um ignóbil raciocínio: “senadora e deputada acabam com “a”, portanto….”. Haja ignorância. Não se tem uma raiz de verbo que leve ao sufixo “ente”, ou existe “senadar” ou “deputadar”? Pode-se e deve-se nesses casos finalizar a palavra com a letra “a”, indicando nela a condição feminina da ocupante (não ocupanta) do cargo.
Provavelmente, o apedeuta em questão vive num ambiente em que se adota: chama ardenta, lua nascenta ou carta faltanta. Claro.
Dilma teve um bom começo de mandato, não precisa disso. Ainda dá para corrigir.”
Agora a coisa ficou séria. A bobagem foi publicada em jornal de grande circulação e assinada por um… jornalista. Eis o ponto onde quero chegar. Um linguista certamente não foi consultado acerca do assunto (na verdade foi, mas who cares?). Basicamente, qualquer pessoa pode escrever sobre linguagem, língua, sem correr o risco de “exercer uma profissão da qual não tem formação”. E isso é frustrante. Passar quatro anos na universidade e depois mais alguns de mestrado e doutorado e competir com a grande população leiga é frustrante.
Mas para repudiar a bobagem que o Medioli escreveu, publico na íntegra a resposta à matéria dele, escrita por um amigo meu, linguística e que tem todo o respaldo profissional e técnico para falar sobre o assunto:
Pedro Perini-Santos (Doutor em Linguística, UFMG/Univeristy of California)
Realmente não faz parte da minha postura profissional usar da titulação como mecanismo de argumentação. No entanto, dada a discrepância publicada pelo jornal O Tempo, abro meu comentário assinando-o como “mestre e doutor em linguística”, porque o que o articulista Medioli publicou está errado. Interessantemente, o próprio Tempo em 05/02 deste ano publicou um artigo por mim e por um colega linguista sobre o tema. A forma “presidenta” está correta, porque todos nós entendemos muito bem; entendemos mais do que entendemos “apedeuta”; não serão geradas a partir dela “estudanta”, “eleganta” ou “jornal A Tempa”… Tudo leva a crer que “presidenta”, assim como acontece em outras várias línguas, será uma formulação cristalizada e que não será modelo pra outras derivações, mas demonstra a importância de trabalharmos nas Universidades e na Imprensa por um mundo menos machista e menos agressivo. Certamente, “depois de três mil anos de história e de milhões de tratados” há muitos, muitos e muitos erros ou variantes consideradas “incorretas”; isso não é grave. Grave é a agressividade do texto publicado. Posturas assim geram desinteresse pelos estudos gramaticais, inibem a produção textual de crianças, adolescentes e adultos e fazem com que busquemos algo que nunca existiu e nunca existirá: um idioma perfeito e regular.
Essa informação sim, deve ser repassada! 🙂
Referência:
Croft, W. (2010). The origins of grammaticalization in the verbalization of experience Linguistics, 48 (1), 1-48 DOI: 10.1515/LING.2010.001