Desenvolvimento de Microrreatores – Uma breve introdução

Olá querido leitor! Já faz algum tempo que nós não conversamos sobre os fundamentos da Microfluídica e da Engenharia Química. Eu sei que às vezes pode ser um pouco chato esses textos. Entretanto, entender esses fundamentos é essencial para explorar melhor as ferramentas dessas áreas e assim desenvolver microdispositivos cada vez mais complexos e dessa maneira, em um futuro próximo, construímos unidades industriais inteiras baseadas em microdispositivos.

Os reatores químicos são conhecidos como o coração dos processos químicos industriais, podendo ser o responsável pelo fracasso ou o sucesso econômico. Mas o que são reatores químicos? São equipamentos nos quais ocorrem reações químicas e são encontrados em dois tipos básicos: tanques ou tubos. Nesse segundo tipo é que se enquadram os microrreatores.

Podemos definir os microrreatores como dispositivos compostos por microcanais interligados, em que pequenas quantidades de reagentes são manipuladas, reagindo por um determinado tempo. Dependendo do tipo de reação, o desenvolvimento de microrreatores incluem as etapas de design de microcanais, elementos de controle térmico, estruturas catalíticas, sensores químicos e micromisturadores (Nguyen and Wereley, 2006). Nesse texto nós iremos avaliar os aspectos relacionados aos microcanais e um pouco de micromisturadores.

Como apresentado anteriormente, microrreatores são compostos por microcanais que algumas vezes são utilizados para o transporte de reagentes ou diretamente como reatores. Para o desenvolvimento de reatores de microcanais é preciso a análise das seguintes características: tamanho da secção transversal do canal; tempo de residência requerido; comprimento longitudinal do microcanal e design do micromisturador.

Tamanho da secção transversal do microcanal

Para a determinação do tamanho da secção transversal do canal, alguns livros textos (Nguyen, 2012; Nguyen e Wereley, 2006) utilizam números adimensionais para o cálculo da secção transversal.

Embora isso seja verdade, esses cálculos não levam em conta o tipo de fabricação que será utilizado. Por exemplo, até o ano de 2016, nossos microrreatores eram fabricados no Laboratório de Microfabricação do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano – Campinas/SP) utilizando o processo de litografia macia (esse processo de fabricação foi detalhado em um texto anterior, disponível aqui). Nesse processo, nós não tivemos dificuldade em fabricar microdispositivos com alturas que variavam de 50 a 200 µm e larguras de 100 a 1500 µm. É claro que essas dimensões podem variar com utilização de algumas técnicas podendo ser alcançadas dimensões laterais de até 30 nm (Xia and Whitesides, 1998). Então, para determinar o tamanho da secção transversal devemos levar em consideração o processo de fabricação disponível e a partir dessa informação começarmos nossos cálculos, para não corrermos o risco de desenvolver um microrreator e não termos como fabricá-lo ou o custo de fabricação ser demasiadamente elevado.

Outra observação é sobre o tamanho reduzido da secção transversal. Por exemplo, para a síntese de biodiesel através da reação entre óleos vegetais e álcoois, é observado dos trabalhos da literatura que a conversão do óleo vegetal em biodiesel em microrreatores é afetada pelo diâmetro hidráulico dos canais – tamanho da secção (Guan et al., 2010; Sun et al., 2008).

Isso significa que quanto menor o tamanho da secção transversal, mais próximo as moléculas de triglicerídeos (óleo vegetal) e de etanol estarão e assim um maior rendimento será obtido. Entretanto, quanto menor for a secção transversal, maior será a perda de carga (perda de energia do fluido) e dificuldade de operação dos microdispositivos. Soma-se a isso, a grande quantidade de microdispositivos que são necessários para a obtenção de uma produção comercial, uma vez que quanto menor a secção transversal menor a taxa de escoamento.

Assim, na minha opinião, a utilização de microdispositivos com secção transversal maior é preferível para resolver os problemas listados acima. Porém, dos nossos trabalhos (Santana et al., 2015a; Santana et al., 2015b) quanto maior a secção transversal menor é a eficiência de mistura dos reagentes em microcanais sem obstruções/micromisturadores. Dessa maneira, para a utilização de microcanais com secção transversal maior é indispensável a aplicação de micromisturadores, os quais serão discutidos posteriormente.

Tempo de residência requerido

O tempo de residência necessário para a completa conversão dos reagentes pode ser determinado através de dados experimentais ou analisando alguns tempos característicos. O primeiro é o próprio tempo de residência médio dos fluidos dentro dos microdispositivos apresentado na Equação 1:  Em que L é o comprimento longitudinal/total do microcanal e ü é a velocidade média. O tempo característico que depende da cinética de reação é o tempo de reação. Esse tempo para uma reação de primeira ordem com volume constante é expresso pela Equação 2:Em que k é a constante de reação. Para outros tipos de reação consulte as referências Nguyen e Wereley (2006) e Flogler (2006). A razão entre o tempo de residência e o tempo de reação é frequentemente chamado de número Damköhler (Kockmann et al., 2006) como mostrado na Equação 3:

Para valores elevados de DaI (DaI»1) as espécies químicas possuem tempo suficiente para reagirem nos microdispositivos e a reação estará completa na saída do microcanal.

Por exemplo, para uma reação entre o óleo vegetal de Jatropha curcas (Pinhão Manso) e etanol na presença de hidróxido de sódio (0.8%), Tapanes et al. (2008) encontrou uma constante de reação igual a 0,1830 s-1. Assim, o tempo de reação é de 5,46 s. Se os fluidos ficarem dentro do microrreator um tempo inferior a esse valor os reagentes não possuíram tempo suficiente para reagirem e a reação não está completa na saída do microrreator ocasionando baixos rendimentos reacionais.

Comprimento longitudinal

O comprimento longitudinal pode ser calculado diretamente da Equação 1. O tempo de residência médio pode ser estimado por ensaios experimentais ou por tempos característicos e assim para encontrarmos o comprimento longitudinal basta saber a velocidade média dos fluidos. Porém, algumas vezes o cálculo dessa velocidade média pode ser uma tarefa difícil.

A maneira mais fácil de se calcular a velocidade média dentro dos microrreatores é através da vazão de entrada dos reagentes (Q) e a área do microcanal (A). Através da relação ü = QA, pode-se obter a velocidade média nos microrreatores e por consequência o comprimento longitudinal.

A velocidade também pode ser obtida por modelos físicos. O escoamento de fluidos em macrocanais é descrito pela conservação da massa, energia e equilíbrio de forças, assumindo que o fluido pode ser considerado como contínuo. Em microescala os fluidos, líquidos em especial, podem ser considerados contínuos, também. Nguyen e Wereley (2006) mostraram que em um canal de 10 µm de comprimento de escala pode haver 30.000 moléculas de água, número suficiente para considerar o escoamento como contínuo. Assim, as equações de transporte em estado estacionário descritas pela equação da continuidade (Equação 4) e pelas equações de Navier-Stokes (Equação 5) podem ser utilizadas para obter o perfil de velocidade, sendo apresentadas a seguir:

Em que ρ é a massa especifica (kg m-3), U é o vetor velocidade (m s-1), p é a pressão (kg m-1 s-2), µ é a viscosidade dinâmica (kg m-1 s-1) e g aceleração da gravidade (m s-2). Na Equação 5, o termo do lado esquerdo representa a aceleração espacial do fluido, enquanto que os termos do lado direito representam o gradiente de pressão, as tensões viscosas e as contribuições da força do corpo.

A Equação 5 pode ser simplificada e obtida uma solução analítica para a velocidade média no canal. Soluções analíticas para o perfil de velocidade em microcanais com secções transversais de vários formatos (circular, retangular, elíptica etc) podem ser encontradas em Nguyen (2012).

Por fim, o comprimento longitudinal também pode ser calculado por números adimensionais, como mostra a Equação 6:

Em que W é a largura do microcanal, Fo é o número de Fourier (Dτd L-2 – em que D é o coeficiente de difusão e τd é o tempo de difusão) e PeW é o número de Peclet baseado na largura do microcanal (üLD-1).

Nguyen (2012) mostra que os valores típicos do número de Fourier são 0,1 < Fo < 1 e o número de Peclet varia entre 10<PeW<10.000. Assim, a variação da Equação 6 é 10<L/W<10.000. Utilizando essa relação, o comprimento longitudinal para uma largura de 100 µm fica entre 100 µm<L<1 m, enquanto para uma largura de 1500 µm o comprimento fica entre 15 mm<L<15 m. Esses valores nos mostram que quanto maior a largura do microcanal, maior é o comprimento longitudinal requerido para a completa difusão das moléculas.

Esse problema pode ser contornado com o uso de micromisturadores acoplado ao microrreator.

Design do micromisturador

A literatura sobre micromisturadores é muito ampla e foi revisada por vários autores (Lee et al., 2016; Nguyen, 2012; Suh and Kang, 2010). Em outra oportunidade eu pretendo abordar só a questão dos micromisturadores. O que precisamos saber agora é que a mistura dos reagentes influência diretamente na eficiência reacional e assim quanto maior a eficiência de mistura do micromisturador mais eficiente será o microrreator.

No desenvolvimento de micromisturadores ferramentas computacionais podem fornecer de forma rápida análises qualitativas e quantitativas sobre o comportamento de espécies dentro desses microdispositivos, otimizando o processo de desenvolvimento. Vários softwares podem ser utilizados nesse processo, como o ANSYS CFX, COMSOL, OpenFOAM entre outros. Independente da ferramenta computacional escolhida, o parâmetro que pode ser utilizado para avaliar o grau de mistura é o índice de mistura.

Esse índice é uma medida da eficiência de mistura entre os fluidos, sendo baseado no conceito de intensidade de segregação, que se baseia na concentração das espécies químicas e concentração média (Ansari and Kim, 2009; Kockmann et al., 2006). Ele pode ser calculado com base no desvio padrão da fração mássica de um dos fluidos presentes, em uma seção transversal normal à direção do escoamento de acordo com a Equação 7:

Em que σ é a variância da fração mássica, Yi é a fração mássica do ponto de amostragem i,  ¨Y é a média da fração mássica e N é o número de pontos de amostragem dentro da seção transversal. A eficiência da mistura entre os fluidos então é calculada utilizando o índice de mistura:

Em que M é o índice de mistura e σmax é a variação máxima ao longo do intervalo de dados. A variação é máxima para fluidos não misturados (no ponto inicial de contato entre os fluidos) e mínima para fluidos completamente misturados.

Na Equação 7, aparece o termo Y que é calculado à partir da conservação da massa para a espécie química i e expressa por:

Em que Yi é a fração mássica da espécie química i, Di é o coeficiente de difusão cinemática da espécie química i e Si é a fonte de massa da espécie i devido a reações químicas. Nos estudos envolvendo o índice de mistura em que é considerado um escoamento não-reativo, esse termo é igual a zero.

E com isso nós enceramos essa parte introdutória. Desculpem-me pelo texto enorme e por alguns termos mais técnico. Eu tentei ao máximo simplificar o assunto, mas alguns termos podem gerar dúvidas. Se esse for o caso, deixem suas dúvidas nos comentários que nós conversaremos sobre ela.

Até semana que vem querido leitor!


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Referências

Nguyen, N-T., Wereley. S. T. Fundamentals and applications of microfluidics. 2nd ed. Boston/London: Artech House; 2006. 497 p.

Nguyen, N-T. Micromixers. Fundamentals, Design and Fabrication. 2nd ed. Waltham, MA, USA: William Andrew Applied Science Publishers/Elsevier; 2012. 353 p.

Xia, Y.; Whitesides, G. M. Soft Lithography. Annual Review of Materials Research . 1998;28:153-184.

Sun, J.; Ju, J.; Zhang, L.; Xu, N. Synthesis of Biodiesel in Capillary Microreactors. Industry Engineering Chemistry Research. 2008;47:1398-1403.

Guan, G.; Teshima, M.; Sato, C.; Son, S.M.; Irfan, M.F.; Kusakabek, K.; Ikeda, N.; Lin, T.-J. Two-phase flow behavior in microtube reactors during biodiesel production from waste cooking oil. AIChE Journal. 2010;56(5):1383-1390.

Santana, H. S.; Silva Jr, J. L.; Taranto, O. P. Numerical simulation of mixing and reaction of Jatropha curcas oil and ethanol for synthesis of biodiesel in micromixers. Chemical Engineering Science. 2015;132:159-168.

Santana, H. S.; Silva Jr, J. L.; Taranto, O. P. . Numerical simulations of biodiesel synthesis in microchannels with circular obstructions. Chemical Engineering and Processing: Process Intensification. 2015;98:137-146.

Fogler, H. S. Elements of chemical reaction engineering. 4th ed. Upper Saddle River, NJ, USA: Prentice Hall PTR; 2005. 1080 p.

Tapanes, N. C. O.; Aranda, D. A. G.; Carneiro, J. W. De M.; Antunes, A. C. A. Transesterification of Jatropha curcas oil glycerides: Theoretical and experimental studies of biodiesel reaction. Fuel. 2008;87:2286-2295.

Lee, C-Y.; Wang, W-T.; Liu, C-C.; Fu, L-M. Passive mixers in microfluidic systems: A review. Chemical Engineering Journal. 2016;288:146-160.

Suh, Y. K.; Kang, S. A Review on Mixing in Microfluidics. . Micromachines. 2010;1:82-111.

Ansari, M. A., Kim, K-Y. A Numerical Study of Mixing in a Microchannel with Circular Mixing Chambers. AIChE Journal. 2009;55(9):2217-2225.

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Sobre Harrson S. Santana

Doutor em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com enfoque em Microfluídica, Simulação Numérica e Biodiesel. É também especialista em Impressão 3D de microdispositivos. • Atuou como Prof. Dr. da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) na área da Termodinâmica Aplicada e Operações Unitárias`; Foi Professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) na área de Microrreatores; Professor Visitante na Universidade de São Paulo (USP) e no Instituto ESSS. • Atuou como Pesquisador na UNICAMP nas áreas de Microfluídica, Manufatura Aditiva, Simulações Numéricas e Processos Químicos. • Ministrou Cursos e Workshops acerca de diversos temas, tais como Modelagem e Simulação de Dispositivos Microfluídicos e Impressão 3D de Dispositivos Microfluídicos, a convite de diversas instituições como Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Espírito Santo. Também foi palestrante convidado de diversas conferências nos temas de Biotecnologia, Energia, Microfluídica entre outros. • Foi editor dos livros "Process Analysis, Design, and Intensification in Microfluidics and Chemical Engineering" e "A Closer Look at Biodiesel Production". • Atualmente atua como editor convidado dos periódicos “JoVE Journal” e “Frontiers in Chemical Engineering”. • Participou até o momento de 18 projetos de pesquisa, como coordenador e integrante gerando como resultados 33 artigos científicos em importantes periódicos internacionais, 6 patentes depositadas e 7 programas de computador com registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). • É criador do blog Microfluídica & Engenharia Química, onde apresenta conteúdos dessas duas áreas e como elas influenciam a nossa sociedade. Seu interesse científico se concentra em fenômenos de transporte, engenharia das reações química, simulações numéricas de dispositivos microfluídicos aplicados em processos químicos, físicos e biológicos, impressoras 3D e bioimpressão, além de sistemas robóticos.

3 respostas para Desenvolvimento de Microrreatores – Uma breve introdução

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