O dia virou noite na América do Sul

Foto: Paulo Muzio

No meio da tarde do dia 19 de agosto de 2019, o dia virou noite na capital paulista. Por volta das 15 horas da tarde o céu estava escuro. Isto não é comum nas linhas dos trópicos. A realidade dos dias de hoje está deixando a ficção no chinelo.

Eclipse

Há pouco mais de um mês, no dia 02 de julho, ocorreu um eclipse do sol que fez com que o dia virasse noite em algumas regiões da América do Sul. Este fenômeno ocorre quando a lua fica entre o sol e a Terra, bloqueando os raios solares.

O eclipse me transportou para a época da minha primeira adolescência, quando assitia aos programas de noite da TV Cultura. Fugindo do clichê de divulgador científico, o Mundo de Beakman não era meu preferido. Eu gostava mesmo era das Aventuras de Tintim, desenho animado adaptado dos quadrinhos do belga Hergé.

Em um dos episódios, o jornalista aventureiro Tintim descobre que os Incas ainda existem escondidos nos Andes. O enredo da história o leva a ser capturado e condenado ao sacrifício. Sabendo, pelo jornal, da ocorrência de um eclipse solar, o repórter pede para ser sacrificado na data e horário do fenômeno. Deste modo, consegue escapar da morte fazendo uma encenação e dizendo aos Incas que era a vontade do deus Sol. É notório que a obra de Hergé apresentava uma série de preconceitos e discursos xenofóbicos. Muitos dos povos da América pré-colombiana eram sociedades avançadas em termos de ciência e tecnologia, inclusive no que tange à astronomia.

O fato é que o eclipse não teve nada a ver com o fenômeno ocorrido em São Paulo nesta semana. Mas em tempos de cortina de fumaça, é preciso ficar atento às tangentes sem perder o foco.

Brasília-DF / Foto: Paulo Muzio

Penumbra

Para entendermos, temos que voltar alguns meses no calendário e lançarmos um olhar sobre o cenário político nacional.

No final de 2018, após o resultados das eleições presidenciais no Brasil, o então futuro ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo desqualificou as questões sobre mudanças climáticas e disse que tratava-se de ideologia inventada pela esquerda. Para ele não importa que exista o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), uma organização de governos membros das Nações Unidas e da Organização Meteorológica Mundial, que tem atualmente 195 membros e a contribuição de milhares de técnicos e cientistas de diferentes áreas do conhecimento de todo o mundo.

O governo escalou ainda Ricardo Salles para a pasta de Meio Ambiente, um advogado ligado ao agronegócio e com condenação na justiça por fraude em Plano de Manejo de uma Unidade de Conservação paulista. Após oito meses à frente da pasta, não é a toa que Salles foi vaiado ao participar da Semana Latino-Americana e Caribenha sobre Mudança do Clima, realizada em 21 de agosto deste ano, em Salvador/BA.  Para o Ministério da Agricultura, foi chamada Tereza Cristina, deputada que leva o singelo apelido de “Musa do veneno” ou “Rainha do veneno”. Até onde consegui acompanhar, já foram liberados 290 novos agrotóxicos somente neste ano.

Crônicas de Fogo e Mata

No dia 02 de agosto de 2019, aconteceu a exoneração de Ricardo Galvão do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (INPE). Seu “crime” foi divulgar dados sobre o desmatamento da Amazônia, o que desagradou o atual presidente da república. Os dados do Deter, sistema rápido de alertas do INPE, indicavam  que o desmatamento na Amazônia cresceu 50% em 2019. De acordo com o Observatório do Clima, “o sistema Deter foi criado em 2004 é considerado um dos responsáveis pela redução da velocidade do desmatamento da Amazônia – que caiu em 83% entre 2004 e 2012.”

No dia 05 de agosto, fazendeiros do Pará anunciaram o “Dia do Fogo”, no qual “botariam pra queimar” por estarem amparados pelo presidente do país. No dia 10, o INPE registrou uma disparo no número de queimadas. O presidente, com seu discurso raso característico, colocou a culpa pelos incêndios nas ONGs. E a cada dia que passa a coisa só piora. De janeiro até 18 de agosto, o número de queimadas aumentou 82% em relação ao mesmo período do ano passado. A fumaça chegou a mais de 2 mil quilômetros de distância.

Mais recente imagem do satélite NPP, de 20 de agosto de 2019. Cada cruzinha é uma detecção de fogo na vegetação / Fonte: Banco de Dados de Queimadas do INPE

E é por isto que a tarde do dia 19 de agosto virou noite na capital paulista. Em parte por causa da umidade, mas também por conta da devastação com fogo promovida na floresta. De acordo com o Climatempo, “a fumaça era de grandes focos de queimadas que há vários dias são observados sobre  a Bolívia, em Rondônia, no Acre e no Paraguai.” Uma mudança na direção do vento, fez com que fosse para o estado de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. Já o pesquisador Alberto Setzer, do Programa de Queimadas INPE, acredita que os incêndios pouco influenciaram na escuridão de Sampa, dando mais ênfase a questões meteorológicas.

A América do Sul é palco de um evento meteorológico interessante: os rios voadores. A grosso modo, a floresta amazônica transporta um grande volume de água que evapora do Oceano Atlântico, desde o litoral até o oeste sul-americano. Ao ser barrado pela Cordilheira dos Andes, o fluxo segue na direção sul. Sem os rios voadores, haveria um grande deserto na região centro-sul do continente. O problema é que desta vez o vento trouxe pra cá uma surpresa: material particulado das queimadas.

O dia escureceu em tom sépia. Tornou-se uma noite quase tão assustadora quanto o “mundo invertido” da série Stranger Things. E o final desta história com certeza ainda será muito mais criticado que o de Game of Thrones.

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