The Shape of Enrichment: a história de um veículo híbrido de publicação científica e divulgação de ciência em bem-estar animal

Lontra interagindo com enriquecimento ambiental (cubo de água congelada com sangue contendo cenoura). Créditos: Edu Fortes

Por Caroline Marques Maia e Vinícius Nunes Alves

O que você acha de uma onça que fica andando de um lado para o outro em um recinto apertado e vazio? Nessa condição, com certeza o animal não está bem… Mas, se a mesma onça estiver agora interagindo com caixas fechadas e penduradas contendo carne, você já deve imaginar um animal em melhor estado de bem-estar. Isso é o enriquecimento ambiental, uma técnica que ajuda a melhorar a qualidade de vida dos animais em cativeiro. A revista The Shape of Enrichment (A Forma do Enriquecimento) é um veículo que divulga ideias de enriquecimento pelo mundo e que apresenta uma história peculiar… Ela mistura publicação e divulgação de ciência sobre ideias de enriquecimento. Mas, para melhor compreender essa história, é importante entender como a ciência do bem-estar animal evoluiu ao longo dos anos.

Histórico da ciência do bem-estar animal

O bem-estar animal frequentemente está envolvido em questões polêmicas. Um bom exemplo se refere a descoberta de uma rinha de cães da raça Pit Bull que resultou no resgate de 33 animais maltratados e na prisão de 41 pessoas envolvidas, caso que recebeu ampla atenção midiática. Outra questão polêmica se refere à existência de zoológicos, que têm sido posta em xeque com argumentos radicalmente contrários, enquanto outros argumentam a favor de sua importância, um debate explorado na reportagem Devemos fechar todos os zoológicos? do jornal El País. Quando tratamos de questões polêmicas, é fundamental levarmos em conta o embasamento científico na área.

Os estudos sobre bem-estar animal tiveram início na década de 1960 com a publicação do livro Animal Machines (1964), de Ruth Harrison, que denunciou práticas que ignoravam o bem-estar dos animais de produção. Um ano depois, o relatório Brambell, com resultados da pesquisa liderada por Francis Brambell do Reino Unido fez recomendações para a manutenção de animais de produção sob condições mínimas de bem-estar. As recomendações só seriam incorporadas em 1979, quando o Conselho UK Farm Animal Welfare Council formalizou a inclusão das cinco liberdades, posteriormente ampliadas para os cinco domínios: nutrição, ambiente, saúde, comportamento e estados mentais dos animais.

Mas como medir o bem-estar do animal? Antes da busca por evidências científicas, veterinários e fazendeiros consideravam que animais fisicamente saudáveis e que estivessem se reproduzindo estavam em bem-estar. Posteriormente, conforme aponta a pesquisadora Felicity Huntingford, da Universidade Glasgow na Escócia, e colaboradores em um artigo publicado na revista Journal of Fish Biology em 2006, estados fisiológicos associados às respostas de estresse foram incluídos.

Outra contribuição importante foi a do pesquisador Donald Broom, publicada em seu artigo (acesse aqui) de 1991 na revista Journal of Animal Science, destacando que o estado de um animal varia desde os níveis mais pobres até os níveis mais elevados de bem-estar, de acordo com os esforços necessários ao seu ajuste ao ambiente. Ou seja, não são apenas fatores fisiológicos que determinam o bem-estar animal, mas o comportamento natural também passou a ser considerado como um indicador de bem-estar.

Entretanto, Ronald Swaisgood do zoológico de San Diego e David Shepherdson do zoológico do Oregon, ambos nos Estados Unidos, sugeriram em artigo (na revista Zoo Biology, 2005) que comportamentos naturais não devem ser necessariamente esperados em cativeiro, já que as condições nesses ambientes também não são naturais. Mas o que seria um comportamento natural versus anormal não é fácil de ser definido, como constatou Gilson Volpato e colaboradores em artigo publicado na Oecologia Brasiliensis (2009). Fatores emocionais também devem ser considerados, como previsto pelas cinco liberdades. O bem-estar foi até definido como o estado emocional dos animais pela pesquisadora Marian Dawkins em seu livro Animal Suffering, publicado em 1980.

Enriquecimento ambiental e a organização The Shape of Enrichment, Inc.

Com relação aos fatores emocionais, além de evitar sofrimento, é importante oferecer estímulos que propiciem prazer aos animais. Para ajudar animais de cativeiro a expressarem comportamentos naturais a partir de estímulos fornecidos que agreguem algum prazer, a partir da década de 1980 se multiplicaram estudos sobre enriquecimento. De acordo com o pesquisador Robert Young da Universidade de Salford nos Reino Unido em seu livro Environmental Enrichment for Captive Animals (2003), o enriquecimento ambiental envolve o uso de materiais ou dispositivos que aproximem o ambiente cativo de situações naturais de vida livre, de modo a aumentar o repertório comportamental e o uso positivo do ambiente pelos animais. “Isso é feito por meio de estímulos sociais, cognitivos, físicos, sensoriais ou alimentares.” Aponta Eliana Ferraz Santos, bióloga que trabalha no Departamento de Proteção e Bem-Estar Animal da Prefeitura de Campinas (SP).

Onça-parda interagindo com o enriquecimento. Créditos: Rogério Capela

Entretanto, conforme apontado pelo pesquisador David Shepherdson e seus colaboradores no livro Second nature: Environmental enrichment for captive animals (1998), não há consenso sobre qual é a melhor forma de avaliar os programas de enriquecimento. “Apesar disso, é sempre importante comparar o comportamento do animal antes, durante e depois da implementação do enriquecimento”, destaca Eliana. É nesse cenário que surge a The Shape of Enrichment, Inc.organização internacional, sem fins lucrativos, que fomenta, desde sua fundação, melhorias no bem-estar animal através da educação e do intercâmbio internacional entre teoria e aplicação sobre enriquecimento.

Logo da organização The Shape of Enrichment, Inc.
Créditos: ©2020, The Shape of Enrichment, Inc.

A revista The Shape of Enrichment

Uma das iniciativas dessa organização internacional foi a fundação da revista The Shape of Enrichment. A publicação recomenda aos autores que apresentem as razões da aplicação do enriquecimento e, principalmente, descrevam como os animais reagiram em curto e longo prazos. Curioso é que a revista não exige artigos bem elaborados ou mesmo completos antes da submissão, como é praxe no meio acadêmico, mas garante apoio dos editores para aperfeiçoarem o artigo pós revisão.

Entre 1992 e 2015, a revista trimestral teve formato semelhante ao de uma revista científica, sendo uma publicação oficial da Conferência Internacional sobre Enriquecimento Ambiental. Os artigos científicos publicados, até então, não tinham acesso aberto, sendo disponibilizados apenas aos assinantes ou sobre compra online, sendo as vendas revertidas para apoiar oficinas, conferências e aqueles que trabalham cuidando de animais.

Exemplo de artigo publicado na revista entre 1992 e 2015

Com uma história distinta, a The Shape of Enrichment foi reformulada em formato de Blog – temporariamente fora do ar. De acordo com Cristiane Pizzutto – coordenadora do polo regional da Shape no Brasil, “o blog era de acesso mais amplo e possibilitava as pessoas terem mais acesso à informação”. Assim, a transformação para o formato de Blog foi um provável reflexo do fato que o público alvo da revista não ser apenas formado por acadêmicos, mas por “pessoas interessadas em criar enriquecimento para seus animais. Não importa se são tratadores, técnicos, diretores de zoológicos”, exemplifica Cristiane.


Exemplo de artigo publicado no Blog da revista a partir de 2015

Este público mais amplo reflete também o perfil de pessoas que publicam ideias na revista, algumas com um caráter mais científico. “O foco da revista é para técnicos de zoológico, de centros de reabilitação, de centros de triagem, de criadouros conservacionistas. Mas isso não impede uma pessoa que goste e queira fazer um bom enriquecimento ambiental de ler essa revista e se inspirar em ideias que foram bem-sucedidas”, comenta Eliana, que usa a revista.

O caráter científico que a revista adquiriu nos primeiros anos talvez refletisse também a necessidade do debate ganhar credibilidade, pois ainda hoje, conta Cristiane, algumas pessoas não veem fundamento científico no enriquecimento ambiental. “Parece que você está simplesmente jogando brinquedinhos, fazendo entretenimento com o animal, sem nenhum fundamento técnico-científico”, conta Cristiane.

Nesse cenário, a revista The Shape of Enrichment pode ser compreendida como um veículo híbrido entre revista científica e de divulgação de ciência. “Os artigos publicados na Shape são uma pincelada de cada um. Algumas pessoas que têm um cunho científico se preocupam em publicar com discussão e citações. Mas a revista não coloca isso em momento algum como regra”, pontua Cristiane. Sendo mais científicas ou não, as publicações na revista The Shape of Enrichment inspiram seus leitores com ideias de enriquecimento que podem aplicar para melhorar a qualidade de vida dos animais. “Muitas vezes eu me inspirei em algumas ideias que eu vi na revista e que foram bem-sucedidas em alguns zoológicos e em centros de reabilitação. No meu atual trabalho onde o foco são gatos domésticos, eu me inspiro em enriquecimentos que já vi com felinos e com bons resultados”, finaliza Eliana.

Os autores desta matéria são pós-graduandos no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor/UNICAMP e agradecem à Profa. Germana F. Barata pelas sugestões feitas ao longo do texto, seja quanto à forma ou quanto ao conteúdo.

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