Marie Curie esteve aqui! A famosa e mais antiga Reserva Biológica do Brasil

Por Israel Mário Lopes

A vila histórica de Paranapiacaba (antigamente Alto da Serra), situada no extremo do município de Santo André, no estado de São Paulo, fazendo limite com os municípios de Cubatão, Santos e Mogi das Cruzes, foi implantada pela necessidade de alojar trabalhadores da ferrovia que aproximou a produção cafeeira no interior paulista ao porto de Santos. Sua gênese se deu em 26 de abril de 1856, por meio de um decreto imperial que autorizou o Barão de Mauá, o Marquês de Monte Alegre e o Conselheiro Pimenta Bueno a incorporar uma companhia para sua construção e operação.

A Sao Paulo Railway Company foi inaugurada em 1867, o mesmo ano de inauguração do Alto da Serra. Não raro, há quem diga que os engenheiros dessa ferrovia escolheram o local pelo nevoeiro que até hoje encobre a vila durante boa parte do ano.  Na prática, foi a falha geológica do vale do rio Mogi, a melhor, apesar de difícil, passagem entre a planície e o planalto, e também a necessidade de organizar, disciplinar e controlar todo o espaço de trabalho e por isso aproximando lar, lazer, consumo e trabalho nesse trecho mais difícil e complexo da ferrovia. É realmente possível que o clima tenha agradado alguns do alto escalão, mas desagradado muitos e muitos trabalhadores que estiveram assentando o leito da ferrovia em constantes dias de chuva e cerração. Para quem está um tanto longe e desconhece a vila, sugiro assistir aos filmes “Parada 88 – O limite de alerta” (1977) e “Doramundo” (1978). Notem que o primeiro, uma distopia ecológica, é  escura e cheia de névoa,  já no segundo em que não me recordo de ter visto céu azul na tranquilidade de Cordilheira, o drama está imerso num ambiente tão misterioso e tão úmido quanto ainda é a nossa Paranapiacaba.

A ferrovia atraiu muitos em busca de trabalho bem remunerado, mas tão penoso que faz jus a sua origem etimológica, tripalium, um instrumento de bater trigo e depois com o mesmo nome um instrumento medieval de tortura. Dos meus três tios-avôs que vieram entre o final da década de 40 e início de 1950, um faleceu em trabalho, outro desistiu e voltou em seguida à lavoura das Gerais e décadas depois ainda reclamava sobre o frio de Paranapiacaba, outro ainda sorri ao contar algumas histórias daquele tempo.

Home-office já era coisa de engenheiro, enquanto o comum ia ralar debaixo de sol e chuva, no calor e no frio, entre fumaças e mosquitos hematófagos, suportando o peso do ferro durante as brincadeiras inadequadas para o risco, narradas por meu pai e apresentada em um momento do filme Doramundo,  equilibrando-se em lama e pedras, muito semelhante aos trabalhos pesados dos dias atuais.

A Baixada Santista e o Morro da Boa Vista chamando a atenção à esquerda da foto / Crédito: Israel Mário Lopes

No conforto dos carros (trens de passageiros) que desciam ou subiam, os arredores não passavam despercebidos aos olhos dos viajantes que após a região de campos, viam uma ampla e não mais monótona paisagem descortinar-se ao iniciarem a descida da serra: as escarpas à direita, o morro da boa vista à direita os relevos aparecendo um a um atrás do outro e cobertos por diferentes tons de verde como uma pintura. Esses relevos marcam a memória assim como o Pico do Jaraguá (que completou dia 03 de maio de 2021, seus 60 anos como Unidade de Conservação) marcou seus observadores.

Suspeito que o arrepio causado por essa paisagem naquele tempo era tão marcante quanto o apito de partida da maria-fumaça ainda na presença dos familiares que se despediam em São Paulo. 

Vista da outra face do Vale do Rio Mogi, a partir da Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba / Crédito: Israel Mário Lopes

Entre aqueles passageiros esteve um alemão de barba volumosa que certo dia de 1908 desembarcou naquela antiga estação do Alto da Serra, em Paranapiacaba.  O então diretor do Museu Paulista, o médico naturalista  Hermann Frederich Albrecht von Ihering foi um dos visitantes, enquanto conduzido por Mathias Wacket verificava a possível aquisição de áreas para a criação de um Parque, uma área que seria como já existia em outros países, protegida da devastação onde seria mantida uma floresta protetora: produtora de águas, além de servir à pesquisa e amostra às futuras gerações daquilo que é um pequeno trecho do bioma em seu estado mais conservado.

Em 26 de abril de 1909, Ihering conseguiu pôr em prática o seu objetivo, criando com recursos privados o Parque Cajuru em uma daquelas áreas avistadas por quem passava de trem. Mais adiante o local foi nomeado como Estação Biológica do Alto da Serra e atualmente denominado Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba, a unidade de conservação mais antiga do país, a primeira estação biológica da América do Sul e a primeira Reserva Biológica do Brasil. Anos antes o presidente de São Paulo, Bernadino de Campos  decretou a desapropriação de uma área na Pedra Branca, na zona norte da capital paulista, para a criação de uma área com outro fim, um horto botânico, o que hoje é o famoso horto florestal, o Parque Estadual Alberto Löfgren contíguo ao Parque Estadual da Cantareira.

Importantes pesquisas foram feitas na Reserva Biológica, onde até hoje tem o acesso muito restrito, como previsto no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e certamente despertava a curiosidade dos moradores que chamavam-na simplesmente de museu.

Foi principalmente após a passagem para a administração do estado, em 1912, anos depois durante a gestão do criador do Jardim Botânico de São Paulo, o naturalista Frederico Carlos Hoehne entre 1917 e 1952, que a Reserva Biológica recebeu as efêmeras pegadas de visitantes ilustres como Marie Skłodowska Curie e Irène Joliot-Curie (em 1926), Adolpho Lutz, Bertha Maria Júlia Lutz, Nikolai Ivanovich Vavilov (no Natal de 1932), Margaret Mee, entre outros. Efêmeras porque as pegadas nessa área podem durar menos de 24 horas, sendo lavadas pelas chuvas e as gotas que se acumulam e escorrem se soltando no ápice das folhas.  Essa chuva que hoje assusta e espanta muitos turistas na atualidade, foi admirada por muitos, como Marie Curie que junto a filha, desejava ir embora mais tarde se possível e foi deixada pelo grupo que a acompanhava na visita.

A Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba é uma unidade de conservação pequenina se comparada a outras como o Parque Estadual da Cantareira e o Parque Estadual Serra do Mar, mas tem sua relevância histórica, pelas pegadas deixadas, apesar de efêmeras. Uma unidade de conservação é importante pela fauna e flora que preserva, pelas águas que produz, e sua história deve ser mais um dos motivos para sua celebração. Mas em vez de construir uma calçada da fama que conserve por centenas de anos suas pegadas, a estrela da vez é a própria área que merece ser conservada o mais próximo daquilo que os visitantes ilustres admiraram e um dia diremos aos nossos netos ou outras crianças que ali estiveram tais pessoas que registraram seus nomes na história e na ciência.

Ao noticiarem o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ocorrido em 02 de setembro de 2018, a visita de Madame Curie, em 29 de julho de 1926, frequentemente foi e é lembrada.  Em 2016, por exemplo, o Museu Nacional criou um evento em celebração aos 90 anos da visita de Madame Curie, intitulado “Mulheres na Ciência e na história – 90 anos da visita de Marie Curie ao Museu Nacional”. Para ilustrar a página estão na foto alguns homens Alípio Miranda Ribeiro, Hermillo Bourguy de Mendonça, Alberto Betim Paes Leme, um não identificado  e as mulheres Heloísa Alberto Torres, Madame Curie, Irène Joliot-Curie e Bertha Lutz.         

Está claro que a Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba é de grande importância para a conservação e a história da conservação da natureza no Brasil colocando Paranapiacaba em destaque na história nacional, além disso  é tombada no conjunto da Serra do Mar pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) em 1985. Por fim, cinco dias antes do seu aniversário de 112 anos, a Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba ganha um espaço no Diário Oficial com a Portaria de número 003.04.2021. O presidente do Conselho Municipal de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arquitetônico-Urbanístico de Santo André e a Secretaria de Cultura deliberam: está aberto o processo de estudo do tombamento desta Reserva e da Casa do Naturalista. A Casa do Naturalista foi construída durante a gestão de Frederico Carlos Hoehne para substituir uma outra casa do Cajuru.

Que a sociedade valorize cada vez mais não apenas a nossa biodiversidade, mas o caminho percorrido para chegar até aqui. A história tem sua importância não somente ao falar das cidades, mas também das florestas.

 

Israel Mário Lopes é monitor ambiental e cultural de Paranapiacaba (Santo André – SP), guia de turismo e educador socioambiental.

 

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1 Comentário

  1. Obrigado Israel por mais essa aula maravilhosa sobre a nossa região. Não conheço todos que vc mencionou mas adorei o texto e as fotos.

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