Beija-flores e plantas na Mata Atlântica: Interações no cenário das mudanças climáticas

Beija-flor rabo-branco-de-garganta-rajada (Phaethornis eurynome) se alimentando de uma planta do gênero Heliconia sp. Crédito: Sergio Gregorio

Por Alejandro Restrepo-González, Fernanda T. Brum, Thais B. Zanata e Isabela G. Varassin

Edição de Vinícius Nunes Alves

Os beija-flores são pequenas aves conhecidas pelas penas brilhantes e o seu rápido voo. Pertencem à família Trochilidae, composta por mais de 300 espécies que habitam o continente Americano, sendo encontradas desde o Alasca, nos Estados Unidos, até a Terra do Fogo, no sul da Argentina. Este grupo de aves tem uma estreita ligação com as flores, das quais obtêm sua principal fonte de alimento, o néctar. Este tipo de interação é conhecida como mutualismo, uma vez que os dois grupos envolvidos obtêm vantagem, ao se alimentarem do néctar, os beija-flores levam pólen de flor em flor, polinizando e facilitando a reprodução das plantas. A forte dependência entre beija-flores e plantas, junto à grande adaptação dos beija-flores aos diferentes ecossistemas e tipos de flores, permitiram a estes animais ocupar uma ampla variedade de habitats, desde as terras baixas, até os cumes das montanhas nos Andes. 

Devido ao elevado número de espécies que podem ser encontradas em um mesmo local, é comum observar diferenças morfológicas nas espécies que ocorrem juntas, como por exemplo diferenças no comprimento e curvatura do bico, ou diferença no tamanho corporal (Figura 1). Estas diferenças estão associadas a diferentes estratégias de alimentação. Geralmente, observamos que beija-flores de bicos longos se alimentam principalmente de flores com corolas compridas, enquanto que beija-flores de bico curto visitam flores de corola curta. A curvatura do bico é outro fator que influencia o tipo de flores visitadas, uma vez que flores curvas podem ser de difícil acesso aos beija-flores de bico reto. Essas diferenças além de ajudar na diminuição da competição entre as espécies de beija-flores, também tornam a polinização das plantas mais eficiente e são resultado de anos e anos de interações e da pressão seletiva dos dois grupos.

Figura 1. Alguns dos beija-flores encontrados na Mata Atlântica, mostrando a variação no comprimento e curvatura do bico. A. Macho do beija-flor-de-topete-verde, Stephanoxis lalandi (Alejandro Restrepo). B. Macho do beija-flor-roxo, Chlorestes cyanus (Sergio Gregorio). C. Fêmea do beija-flor-rubi, Heliodoxa rubricauda (Sergio Gregorio). D. Macho do beija-flor-rajado, Ramphodon naevius (Sergio Gregorio). E. Beija-flor rabo-branco-de-garganta-rajada Phaethornis eurynome (Sergio Gregorio). F. Beija-flor de rabo-branco-pequeno Phaethornis squalidus (Sergio Gregorio)

No Brasil, podemos encontrar 89 espécies de beija-flores, ocupando habitats ao longo dos biomas brasileiros, desde a Amazônia até o Pampa. Na Mata Atlântica, ocorrem 45 espécies de beija-flores, das quais 11 são endêmicas do Brasil, ou seja, só são encontradas no país. Essas 45 espécies visitam mais de 400 espécies de plantas (Figura 2), sendo importantes para o equilíbrio do ecossistema. A Mata Atlântica é um bioma bastante degradado, o que coloca as espécies em risco de extinção devido à perda de habitat e à fragmentação. Assim, muitas espécies de beija-flores têm populações em declínio e quatro espécies estão classificadas em risco de extinção, três em perigo: rabo-de-espinho (Discosura langsdorffi langsdorffi), rabo-branco-de-margarette (Phaethornis margarettae) e beija-flor-de-costas-violeta (Thalurania watertonii), e uma como vulnerável: balança-rabo-canela (Glaucis dohrnii).

Figura 2. Plantas visitadas por beija-flores na Mata Atlântica, mostrando a variedade de cores e formas. A. Vriesea nudicaulis. B. Canistropsis seidelii. C. Vriesea ensiformis. D. Nematanthus  villosus. E. Fuchsia regia. F. Heliconia farinosa. G. Câmera posicionada à frente da planta Costus spiralis. H. Câmera posicionada à frente da planta Vriesea incurvata. Fotos do projeto EPHI Brasil

Além das ameaças de extinção pela degradação do habitat, as espécies de beija-flores podem sofrer pelas mudanças climáticas. Alterações dos padrões do clima podem fazer com que as espécies sejam extintas localmente. Por outro lado, é possível que algumas espécies consigam se dispersar para novos locais climaticamente adequados. Como consequência, é esperada uma variação futura nas espécies que ocorrem em um dado local. Também é possível observar efeitos indiretos das mudanças climáticas, como por exemplo alterações nos padrões de floração das plantas, fenômeno que pode afetar a sobrevivência dos beija-flores por falta de recursos.

Considerando o cenário de mudanças climáticas e o efeito negativo na diversidade biológica, é importante entender como estas alterações afetam os beija-flores e seus recursos. Uma metodologia que pode ser utilizada para isso são os modelos de distribuição de espécies, os quais auxiliam na predição da distribuição potencial das espécies com base em variáveis ambientais (Figura 3). Uma vez que os modelos são calibrados com as variáveis ambientais, é possível fazer previsões da distribuição futura das espécies, entendendo possíveis extinções e mudanças na composição das comunidades. 

Figura 3. Passos básicos para realizar a modelagem de distribuição de espécies

A extinção dos beija-flores na natureza pode fazer com que a reprodução de muitas plantas não seja realizada, causando diminuição destas espécies na natureza. Além de perdermos as espécies de plantas, pode ocorrer um efeito em cascata sobre outros animais, causado pela menor disponibilidade de alimentos para vários animais.

Como  estudar as interações entre beija-flores e plantas?

As redes de interações são uma metodologia muito utilizada para estudar a relação entre diferentes espécies, como mutualismo e parasitismo. É uma metodologia amplamente utilizada para estudar as interações entre beija-flores e plantas, por meio das ligações entre as espécies, geralmente organizadas em dois níveis (Figura 4). As redes de interações são importantes para conhecer a organização da comunidade de espécies e podem ser utilizadas para entender mecanismos evolutivos das espécies e definir estratégias de conservação. 

Figura 4. Rede de interações entre beija-flores e plantas na Mata Atlântica. Do lado direito em azul são representadas 38 espécies de beija-flores, do lado esquerdo, em verde, são representadas as mais de 300 espécies de plantas visitadas por estes beija-flores

No laboratório de Interações e Biologia Reprodutiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenado pela professora Isabela G. Varassin, estudamos as interações dos beija-flores da Mata Atlântica, com parceria de outros institutos de pesquisa nacionais e internacionais. O projeto Ecologia das interações planta-beija-flor (Ecology of plant-hummingbird interactions, EPHI) é liderado pelo Instituto Federal Suíço de Pesquisa (The Swiss Federal Research Institute), em parceria com a Universidade Estatal a Distancia (Universidad Estatal a Distancia, Costa Rica), a Fundação Aves e Conservação (Aves y Conservación, Equador) e a UFPR, com o objetivo de registrar a variação temporal e espacial das interações planta-beija-flor.

Para construir as redes de interações, são necessárias observações das espécies que interagem. No projeto EPHI, utilizamos armadilhas fotográficas posicionadas à frente de plantas com flores para identificar os beija-flores que as visitavam (Figura 2 G, H). Nos três países (Brasil, Costa Rica e Equador) registramos mais de 68 mil interações entre 72 espécies de beija-flores e mais de 400 espécies de plantas, sendo o Equador o país com maior número de espécies registradas, seguido pela Costa Rica e o Brasil. Esses dados ainda estão sendo analisados e permitirão explorar os padrões e processos por trás das interações entre beija-flores e plantas. Para conhecer mais sobre o desenvolvimento do projeto EPHI visite o site.

Com um futuro preocupante para beija-flores e suas plantas visitadas na Mata Atlântica… O que podemos fazer?

Foi utilizando os modelos de distribuição de espécies que encontramos que as mudanças climáticas serão responsáveis por alterar a distribuição das espécies de beija-flores da Mata Atlântica, afetando a composição das comunidades e as diferentes dimensões da diversidade: taxonômica, funcional e filogenética. Por exemplo, além de encontrarmos que no futuro muitos locais terão espécies diferentes, encontramos também que essas espécies terão características morfológicas diferentes das atuais, como comprimento e/ou curvatura do bico, isto é, uma alteração na diversidade funcional. Também observamos que haverá mudança na composição da história evolutiva representada pelas espécies da comunidade, isto é, uma alteração na diversidade filogenética.

Também encontramos que as redes de interação planta-beija-flor no futuro estarão conformadas por menos espécies, principalmente no número de plantas, o que pode afetar a competição e a aptidão dos beija-flores e plantas. Portanto, as mudanças climáticas são também um fator de risco para as espécies de beija-flores ameaçadas de extinção na Mata Atlântica. Para atenuar esses cenários futuros, precisamos conservar os remanescentes atuais da Mata Atlântica e criar novas unidades de conservação que permitam conservar a diversidade de beija-flores deste bioma e garantir o equilíbrio do ecossistema.

Como as mudanças climáticas afetarão a diversidade de beija-flores e plantas na Mata Atlântica, precisamos focar nos estudos ecológicos que permitam desenhar planos de conservação para mitigar o efeito das mudanças climáticas e preservar a maior diversidade possível. O sul da Mata Atlântica merece um olhar especial para conservação dos beija-flores e plantas, mas também precisamos conservar e reflorestar os remanescentes da Mata Atlântica no nordeste. A realidade é que o clima e os ecossistemas estão mudando, então precisamos somar esforços que contemplem a conservação do maior número de espécies possíveis, mantendo assim as interações entre as espécies. 

Alejandro Restrepo González é biólogo pela Universidad de Antioquia (Colômbia), mestre e doutor em Ecologia e Conservação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem interesses em ecologia de comunidades e conservação de aves, atualmente trabalha com interações entre beija-flores e plantas e os efeitos das mudanças climáticas.

Fernanda Thiesen Brum é bióloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre e doutora em Ecologia pela UFRGS. Atualmente trabalha como cientista de priorização espacial na The Nature Conservancy, trabalha com desenvolvimento, suporte, treinamento e divulgação da plataforma online de priorização espacial Marxan.

Thais Bastos Zanata é bióloga pela UFPR, mestre e doutora em Ecologia e Conservação pela UFPR. É professora no Departamento de Botânica e Ecologia da Universidade Federal do Mato Grosso e coordena o Laboratório de Interações e Síntese em Biodiversidade. Atualmente tem como linha de pesquisa redes de interação, macroecologia e lacunas de conhecimento envolvendo interações entre animais e plantas.

Isabela Galarda Varassin é bióloga pela Universidade Federal do Espírito Santo, mestre e doutora em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas. É professora associada da Universidade Federal do Paraná, e professora orientadora nos programas de Botânica e de Ecologia e Conservação da UFPR. É membro do comitê gestor da Rede Brasileira de Interações Planta-Polinizador (REBIPP). Atualmente tem atuado em duas linhas de pesquisa: uma que trata das interações planta-beija-flores e outra sobre polinização de áreas agrícolas.

Para saber mais

Tese de doutorado Alejandro Restrepo González. Beija-flores da mata atlântica: mudanças climáticas e interações mutualísticas. Universidade Federal do Paraná. 2023.

Leimberger, Kara G., Bo Dalsgaard, Joseph A. Tobias, Christopher Wolf, and Matthew G. Betts. 2022. “The Evolution, Ecology, and Conservation of Hummingbirds and Their Interactions with Flowering Plants.” Biological Reviews 97 (3): 923–59.

Iamara‐Nogueira, Joice, Natália Targhetta, Gina Allain, Adriano Gambarini, Alessandra R. Pinto, Ana Maria Rui, Andréa C. Araújo, et al. 2022. “ATLANTIC POLLINATION: a data set of flowers and interaction with nectar‐feeding vertebrates from the Atlantic Forest.” Ecology 103 (2). https://doi.org/10.1002/ecy.3595.

Sonne, Jesper, Pietro K. Maruyama, Ana M. Martín González, Carsten Rahbek, Jordi Bascompte, and Bo Dalsgaard. 2022. “Extinction, Coextinction and Colonization Dynamics in Plant–Hummingbird Networks under Climate Change.” Nature Ecology & Evolution 6 (6): 720–29.

Agradecimentos: O projeto EPHI conta com apoio do European Union ‘s Horizon 2020 research innovation program (Grant No. 787638) e do Swiss National Science Foundation (Grant No. 173342), concedidos a Catherine H. Graham. Agradecemos também à CAPES pela bolsa de doutorado para o desenvolvimento do projeto de pesquisa do Alejandro Restrepo González (Código de Financiamento 001).


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