O uso de tecnologias e a modernização do ensino: qual o objetivo?

Se eu te pedir para lembrar dos tempos de escola, muitos momentos marcantes podem ser recordados. Os amigos, as brincadeiras, as mudanças da vida, angústias e preocupações que todos passamos neste período. Além dessas memórias afetivas, algo normal que lembramos da escola é a relação não muito amistosa com os conteúdos disciplinares. A decoreba, as provas chatas e informações que sempre julgamos como desnecessárias no nosso cotidiano. E, com isso, surgem também vontades de mudar a forma que a escola é construída e trabalhada. Será que inserir novas tecnologias e tecnologias da informação na escola é suficiente para isso?

Facilmente encontramos em vídeos e discursos na internet que é necessária a modernização, a atualização da escola, e o desenvolvimento das tecnologias de comunicação são a principal peça de quem almeja a mudança. O objetivo das escolas é serem “modernas”. Isto é, possuírem lousas digitais, projetores de alta resolução, tablets para alunos, aplicativos para acompanhar as notas e de resolução de exercícios, atualização pelas mídias sociais, jogos eletrônicos que ajudem o aprendizado. É o prato cheio das propagandas de escolas particulares e o que almeja gestores públicos escolares. A tecnologia sendo usada a favor da educação e a modernização da escola finalmente acontecendo.

O nosso atual modelo escolar segue ideais da revolução industrial, estabelecida no século XIX. Assim, no ápice da revolução industrial, buscava-se formar o indivíduo em um ambiente totalmente ordenado, controlado e mecânico. Ou seja, silenciamento coletivo, a manutenção da ordem pré-estabelecida pelos gestores escolares, a busca do resultado já determinado, a imposição dos horários, a competição interna entre os melhores resultados e a recompensa ao melhor comportamento. Tais hábitos mantem a relação de poder institucional e também visavam a colocação da pessoa no ambiente industrial. Portanto, a escola possuía como base a manutenção de um poder construído em outros meios. E isso resultou no silenciamento e nas estruturas de poder que acompanhamos e analisamos ainda hoje.

O mundo se atualizou e a escola não acompanhou essas mudanças. E, assim como em outras instituições sociais, a base do pensamento escolar manteve-se a mesma do século XIX. Consequentemente a isso, esse sentimento que temos que a escola precisa urgentemente de mudanças. E claramente a escola precisa de mudanças, pois não cumpre quaisquer que seja seu objetivo, seja a formação para o trabalho e manutenção do atual modo de produção ou a formação crítica, em que se vê necessária a transformação social.

Sim, entendo os benefícios e gosto das inovações tecnológicas, que podem muito bem aprimorar o ambiente escolar. Mas as tecnologias da informação e comunicação, como qualquer instrumento de ensino, precisam ser pensadas. Se não trouxerem consigo uma mudança na relação com o conteúdo disciplinar, nas relações interpessoais, na episteme pedagógica dos educadores, a escola continuará a mesma. Mas, mudar as técnicas e os instrumentos, sem mudar o objetivo, sem refletir e criticar sobre o mundo construído pelos homens, só serve de manutenção do mesmo sistema de poder que moldou a escola na revolução industrial. Assim, criaríamos formas de ensinar, mas que manteriam a mesma estrutura escolar, sendo um avanço para o nada.

O objetivo da escola continuará o mesmo: formar para o silenciamento, para a manutenção do modelo social, formar para a passividade social, para o trabalho sem criticidade. Antes, era necessário apenas trabalhadores adestrados nos horários impostos. E, consequentemente, quando avanços na produção e novas relações de trabalho surgirem, novamente a escola seria moldada para o trabalho. Todavia, o pensamento escolar não pode estar completamente dependente da produção e do trabalho no modelo econômico em que vivemos.

A escola precisa buscar a práxis transformadora. Uma formação em que aproxime o conhecimento da vivência social dos estudantes, buscando-se a transformação da sociedade. Podemos usar Paulo Freire, no momento em que pensamos apenas a implementação de tecnologias, consideramos um “mundo sem homens”. Pensamos nas relações do trabalho com a tecnologia. Mas não pensamos as questões sociais, culturais e históricas envolvidas nesse processo. Precisamos entender que a relação entre homem e mundo se dá pela transformação da sociedade através do pensamento científico. Assim, a escola tem a função de entender o mundo dos homens e transformá-lo.

A escola não vai mudar simplesmente colocando-se tecnologias de informação e comunicação nelas. Precisamos mais: uma nova relação com os conteúdos, em que se interprete de forma histórica, crítica e social a construção humana científica, artística e filosófica, e que com essa base os estudantes possuam os instrumentos para repensar e alterar o mundo, e possa se libertar das antigas relações de opressão. Nesse sentido, caso não apostemos em uma postura diferente, a consolidação de um modelo sempre deixará a escola desinteressante de tempos em tempos. Em suma, o pensamento escolar precisa mudar, e, para isso, todas as tecnologias de informação são instrumentos, e nunca fim, de uma educação transformadora.

Para saber mais:

Papel da Educação na Humanização, Paulo Freire: http://acervo.paulofreire.org:80/xmlui/handle/7891/1128

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Sobre Matheus Naville Gutierrez 12 Artigos
Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.

4 Comentários

  1. Acredito que novos modelos de escola estão sendo pensados. A escola da Ponte é um bom exemplo. Concordo que as tecnologias precisam fazer parte do cotidiano escolar, fazer parte dos processos de formação. Espero que exista investimento para que tenhamos uma escola melhor no futuro. Que não forme para o silenciamento, tão pouco para a manutenção do modelo social. Abço

  2. Lembro-me dos trabalhos de escola, feitos com base em pesquisas na velha enciclopédia Delta da minha vó. Hoje, ao toque de um clique, surgem milhares de informações, distorcidas, reais, exatas ou não. Mas o que importa é a rapidez que a informação atravessa o mundo.

  3. Caro Matheus,

    obrigado pelo importante alerta. O que você coloca me lembra de visões do futuro expressas em cartões postais no início de século passado. O uso de tecnologia sem repensar a escola estava previsto. Passo um link de uma dessas imagens:

    http://singularityhub.com/wp-content/uploads/2012/10/transfer-of-knowledge.jpg

    um abraço,

    Peter

    • Incrível a imagem, nos faz refletir que a questão da tecnologia em sala de aula está presente nas discussões por mais tempo que pensávamos, e de maneira que beira o bizarro. Sempre importante continuarmos refletindo sobre essa relação para não chegarmos a tal nível.

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