Mulher: um ato político

“a ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história” (Hannah Arendt, 1999, p.16-17).

Neste mês em que a mulher torna-se pauta, em função do dia 8 de Março ser considerado Dia Internacional da Mulher, de uma ou outra forma nos dedicamos com um pouco mais de afinco a pensar sobre como nossa vivência no mundo afeta diversos setores da sociedade e cultura e como estes setores (ou instâncias) nos afetam de volta.

Falando especificamente da ciência e do papel da mulher na produção científica, há tanto para se falar que nos perdemos frente às multiplicidade de pautas possíveis. Quem são as cientistas do país? Trabalham em que instâncias e produzindo que conhecimento? Quando pensamos em alguém das áreas próximas às nossas, é delas que lembramos primeiro? Nossa produção de conhecimento se dá de que forma e com que tipo de atravessamentos?

Tendo em vista debates recentes decidi-me por pensar acerca dos silenciamentos dentro e fora da academia (e dentro e fora de qualquer instância…). Nas questões pertinentes ao ser mulher, um sentimento constante é o do silenciamento. Termos histórias que se relacionam a centenas de outras mulheres ao nosso redor, mas isto não ser visto como válido como parte de uma configuração social, que fixa (ou tenta fixar) as mulheres em lugares definidos.

Michelle Perrot, historiadora francesa, diz no texto “Os silêncios do corpo da mulher” que há tempos as mulheres são esquecidas, “as sem-voz da história”. Paradoxalmente, Perrot narra também como nosso corpo é onipresente nos discursos de toda ordem (poetas, músicos, políticos, médicos, na academia, nos espaços públicos). Mas não somos nós, as mulheres, que costumamos falar do nosso corpo e da nossa história e vivências. De todas as personagens existentes nas narrativas, são os homens que protagonizam o contar, delineando características, verdades, belezas, deveres e permissões.

Ao propor este texto de hoje, a ideia era pensar sobre como ser mulher e feminista em atos cotidianos não é “apenas levantar uma bandeira”. Também não é traçar um diálogo teórico com o mundo, tendo um viés que distorce acontecimentos. Tampouco é olhar por um viés e ignorar questões que acontecem independente de gênero. Por fim, não é querer trocar de lugar com quem nos impinge dor e opressão, ou culpabilizar “o outro” por todos os males. Ser mulher hoje, em nosso país, é lutar para ocupar espaços sociais constantemente, que nos são negados historicamente. Ser mulher, ciente de si: é um ato político!

E, aqui, já digo de antemão que atos políticos não são partidários. Muito antes disso, são ações que demonstram um posicionamento no mundo, uma perspectiva que nos move cotidianamente, nos coloca em conflito – conosco mesmo e com outros. Política é parte de nossa constituição enquanto sujeitos no mundo, dentre todos os acontecimentos que nos formam.

Ao organizar o pensamento sobre a mulher na ciência, Hannah Arendt se fez marcante – certamente uma das maiores e mais importantes personalidades intelectuais do século XX. Em seu livro clássico “A condição humana”, uma frase, particularmente, me causa impacto. Arendt diz que: “todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política”.

E de todos os aspectos da condição humana, ela propõe que a “ação” corresponde à condição humana da pluralidade e ao fato de que vivemos na Terra e habitamos o mundo. A pluralidade, diz Arendt, é a condição de toda vida política.

E em duas semanas tão turbulentas como este março, em que o corpo da mulher vira centro do debate (mais do que em outros momentos), somos silenciadas por enxurradas de dizeres, ao menor sinal de que estamos dispostas a falar de nós, nos acomete: o silenciamento ruidoso. Rasga o ar, a pele, sangra a fala, derrama suor e lágrima. Marielle Franco, extirpada de nós.

Mulher, negra, socióloga, produtora e narradora de saberes de si e de uma população e região marginalizadas, posicionando-se no mundo. Marielle, que adentra espaços legitimados de fala e os usa para denunciar exatamente os silêncios que são impostos historicamente, em uma formação acadêmica, falando da Maré. Marielle, feminista, militante: mulher. Seu corpo, seu sorriso, sua fala, sua força. Mulher: sumariamente executada.

Marielle, socióloga, negra, mulher, enfrentou o silenciamento. Narrou seu território e a ocupação do Estado, sem meias palavras:

Há duas ações predominantes no Estado, frente aos territórios populares: tornar-se ausente, ou não se faz absolutamente presente. Significa que o Estado sintetiza outra face. As duas opções demonstram a escolha feita pelo Estado, quando sob a prerrogativa da garantia de direitos, opta por baixos investimentos e poucos equipamentos. E/ou marca a presença com o uso da força e da repressão, principalmente por meio da ação policial. Reforça-se, assim, a visão predominante de que favelas e periferias são locais de ausência, carência, onde predomina a “vagabundagem”, ou a narrativa do assistencialismo, em um espaço considerado território de “pobres coitados”. (Franco, Marielle, 2014, p. 15).

Não somente todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política como disse Arendt, mas a partir da pluralidade. E a pluralidade, esta semana (como em tantas outras anteriores a esta) vem sendo marcada como diferença, o exterior, o que não se quer.

E, para Marielle Franco, uma semana após o dia internacional da mulher, que dedico toda a luta por nossa voz: nenhuma voz a menos, nenhuma mulher a menos.; nenhuma bala dissipará nossa voz, nenhum ato humano calará nosso grito.

Marielle, presente!

Para saber mais:

ARENDT, Hannan. 1999. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

FRANCO, Marielle. 2014. UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFF. Dissertação de Mestrado. Disponível em: < https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/2166/1/Marielle%20Franco.pdf>. Acesso em: 15/03/2018.

PERROT, Michelle. 2003. Os silêncios do corpo da mulher. In: Matos, Maria IIzilda Santos e Soihet (org). O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 13-29.

 

Sobre Ana Arnt 55 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

2 Comentários

  1. Excelente reflexão, pertinente como poucas.

    É com grande arrepio que lemos a narração da Marielle Franco. Um diagnóstico profético da doença fatal que levou ao próprio fim.

    Estamos juntxs nessa luta, e nos juntamos às palavras finais com especial compromisso.

    Nenhuma voz a menos, então.
    Nenhuma mulher a menos.
    Nenhuma bala dissipará nossa voz, nenhum ato humano calará nosso grito.

    • Muito obrigada pelas palavras! É com imenso pesar que escrevi - e seguirei escrevendo - sobre estas questões. A inconformidade que nos marca deve ser, também, a que nos move!

      Sigamos: em luta!

      Abraço

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