Li hoje alguém comentando sobre não ser um dia para conseguir sorrir. Nossa história, nosso parco cotidiano para que o conhecimento seja importante e de acesso a todos, o trabalho de dois séculos para novas gerações saberem de nós, as pesquisas, a construção pelo conhecimento: se esvaiu. Em nossa história, registros apagados de descaso conosco mesmo. Parece clichê descrever o que o Museu Nacional representava: o quinto maior museu do mundo, em acervo, foi perdido. Nosso espaço histórico de pesquisa e educação se perdeu em meio às chamas.
O longo tempo de descaso, exposto no incêndio do dia 2 de setembro, nos indica o quanto temos falhado como sujeitos em nossos rumos. Pelas informações que nos chegam, os projetos de recuperação do museu rondam a década de 1990. Dessa forma, passou por baixas e altas de verbas e incentivos. Assim como abriam e fechavam exposições em captações específicas de fomentos e investimentos. Enquanto isso, infiltrações e cupins se instalavam sem pedir licença.
Li hoje desde cedo as notícias incrédula e triste. Li, também, notas administrativas e burocráticas governamentais palavras vazias de lástima. Já de saída, afirmo: não me bastam lástimas governamentais. Não tem como não pensar no quanto é simbólica essa destruição, de um monumento que completara 200 anos, em um ano em que decidiremos boa parte do andamento de nosso futuro. Assim, penso ser pertinente o questionamento: que valor vocês dão à ciência, ao conhecimento, à educação? Que prestígio e propostas estão em pauta pelos candidatos de vocês? Que prioridades existem nas discussões de teus votos?
Cabe, sim, buscar responsabilidades acerca do fato. Bem como pesquisar as fontes de financiamentos e orçamentos negados, as negligências de todos os lados. Também cabe, em um ano como o que estamos, correr atrás das propostas dos candidatos à presidência.
Assim como dos governos estaduais e das vagas de deputados estaduais, federais e ao senado. Atentarmo-nos às suas ideias, propostas de implementações, prioridades no campo da educação, ciência e cultura, dentro do seus planos de governo, observando com cautela as possibilidades de implementação (e não apenas dizeres vazios sobre as intenções de valorização).
No entanto, mais do que todos os tons acusatórios, ver o Museu queimando um dia antes do dia do Biólogo (3 de setembro), remete-me a tudo o que eu acredito e como eu – e tantos outros colegas – temos trabalhado a partir da ideia de que o conhecimento vale a pena. Novamente, parece clichê barato falar que o Museu abrigava cerca de 20 milhões de itens catalogados.
Então falarei um pouco sobre esse espaço, que era também, a casa de Luzia. Era lá, meus caros, em seus corredores que residia parte de nossa história. Em salões e paredes, achávamos narrativas sobre a morada do Império. Bem como, seus primeiros investimentos na ciência e na produção de conhecimento nacional. Por lá caminhávamos pela pesquisa brasileira, nos tornávamos herdeiros e construtores de saberes múltiplos. Todavia, eu gostaria de falar de áreas que tocam a biologia. Na casa de Luzia, em seus 21.000 m2 residiam, também, a maior coleção botânica do país (cerca de 550.000 amostras de plantas), coleções fósseis (mais de 26 mil exemplares) e mais de 6 milhões de exemplares na coleção zoológica.
O dia inteiro busquei mais e mais informações e conversei longamente com amigos pesquisadores e divulgadores científico. Com a voz embargada, vários apresentaram consternação com tudo isso… Li, exaustivamente, colegas que trabalham e/ou pesquisavam lá narrando seu empenho cotidiano com o que lá existia. Antes de ser a casa de Luzia, o museu recebeu Marie Curie, em 1926. Pode parecer tietagem boba, breguice non sense ou apego sentimentalista desta que vos fala… Mas nossa história científica tinha a assinatura dela, que é uma das cientistas mais importantes de todos os tempos, em seus cadernos de visitações. Antes de ser a casa de Luzia, era o espaço, portanto, de quem batalhava, como parte de sua rotina, pelo conhecimento.
Como professora e divulgadora da ciência, me pego pensando no quanto nos cabe o compromisso de batalhar para que o conhecimento seja uma meta na vida das pessoas e que a ciência seja do alcance de todos.
Mais do que um clichê, é a utopia máxima minha. Isto é, o desejo de que a ciência e o conhecimento sejam ferramentas básicas para a vivência rotineira das pessoas, que nossa cultura seja compreendida, respeitada, vivida dentro do que produzimos nesses espaços. Utopia, em suma, que o conhecimento não seja restrito a poucos. Tampouco seja destruído por ganhar migalhas, ou queimado em seu cárcere ignorado.
Ontem, meus amigos, queimou nosso orgulho, luta e história. Queimou parte de nós, quem somos, o que fomos e o que queríamos ser. Incineramos a nós mesmos: passado, presente e futuro.
Ao ler mensagens de quem lá trabalhava, ao ler as reportagens com listas do acervo perdido, ao ouvir os áudios de funcionários aos prantos, ao ver imagens de trabalhadores enfrentando o fogo para resgatar o acervo e salvar itens inestimáveis, tenho a plena certeza que neste dia do biólogo, toda a palavra se faz vazia, todo o choro parece pouco, todo o luto virou pó.
À casa de Luzia, ao palácio imperial, ao nosso cantinho de sapiência, a um dos lares da pesquisa brasileira: meu mais triste adeus.
Para chorar junto:
Andrade, Rodrigo, (2018) Para voltar aos velhos tempos, Revista Fapesp, Edição 267.
Takata. Museu Nacional (1818-2018). Gene Reporter.
Uma tragédia pra um povo que tem sua identidade cambaleante.
Não consigo nem descrever o sentimento de tristeza que tomou conta de mim desde que eu li a primeira notícia sobre esta tragédia... e essa sensação só foi piorando ao longo do dia! É quase inacreditável, um pesadelo... Uma perda incalculável para toda a humanidade! 🙁
E o pior foi relembrar de todos os outros incêndios recentes que destruíram patrimônios históricos, culturais e científicos, e perceber que a comoção gerada por essas tragédias costuma durar apenas alguns dias, e depois, o discurso do "novo" retorna, e o passado volta a ser ignorado. E nada é aprendido. Clássico. Mais uma daquelas tragédias anunciadas que ficamos apenas aguardando acontecer. E agora? Não dá mais para ficar esperando a próxima tragédia.
Que tal nos reunirmos (nós dos blogs) para levantar algumas ideias sobre o que podemos fazer???
Sim, Carol!!! Também tenho essa sensação de impotência e incredulidade...
Estava pensando, além do coletivo sobre política que vem aí, começarmos a articular ações com outros coletivos de divulgadores e cientistas para cobrar propostas e políticas mais precisas sobre o nosso trabalho...
Mas ainda acho pouco. Acho que sabemos cobrar pouco e divulgamos muito pouco ainda...
Apoio a ideia de catalogar os fomentos negados e por quem, ainda admitindo como brasileira, que também parte desse sangue está em minhas mãos. Grato pelo artigo Ana.